Saltar para o conteúdo

Prometeu (José Bonifácio, o Moço)

Wikisource, a biblioteca livre
III


Na cratera de um vulcão
Fiz meu ninho— aguia sublime
Da liberdade a canção
Acompanhou-me no crime.
Por cerrado nevoeiro
O meu cabeço altaneiro
—Ufano cedro enterrei—
Mas veio o raio celeste
Como em Jafa a negra peste,
No chão a face rojei!

Por sobre restos humanos
Ampla estrada ovante abri;

Entre destroços e damnos
Da bala ao silvo dormi!
Os homens todos trèmiam,
Quando meus passos ouviam
Troar n’um brazido acceso;
Mesmo hoje terror infundo,
Nem pòde soffrer o mundo
Das minhas glorias o peso.

Possante a fama agoureira
—Não hei de calar, não calo;
Esmaguei a terra inteira
C’o as patas do meu cavallo!
Abri mappas, fiz nações,
Das extinctas gerações
A fria cinza tremeu!
Da gloria sobre os caminhos
Colhi louros dos espinhos,
Vi na terra a luz do ceo.

Rei da victoria, senhor,
Das balas que me seguiam,
Da batalha entre o fragor,
Si eu fallava—ellas fugiam! ...
O vate da Ukranea ouviu-me,
Alegre a Italia sorriu-me,
Caminhei por toda a parte;
Viu-me o turco minarete,
Reluzir meu capacete,
Fluctuar meu estandarte.

Quem sou ? Pergunta á procella
Que nome o raio solettra;
A’s aguas do mar que vela
O que diz a vaga tetra;
O que murmuram sombrias
As azas das ventanias

No medonho esfuziar;
Que mysterio ouve o tufão,
Quando o carvalho no chão
Quebra os ramos no tombar.

Comigo os Alpes dobraram,
Os gelos se derreteram ;
Os homens se libertaram,
E por mim tambem gemeram!
Do rutilo Cezar o astro
Empallideço, se alastro.
O campo ethereo dos ceos!
Não me venceu Alexandre,
Como Annibal fui tam grande,
Fui na terra um semideus!

No correr da vida a morte
Uma epopeia compuz,
Nem de Homero a mente forte
Maior grandeza traduz!
Anjo excelso das batalhas—
Não haveriam mortalhas
P’ra as vidas que decotei!
Fui um Júpiter Tonante,
Joguei thronos n'um instante,
E mil imperios parei.

Tive um palco—a terra inteira,
Vassalos—Papas e Reis !
Té dos meus pés a poeira
Sagravam como suas leis !
N’um dia c’roas pisava,
E n'outro sceptros junctava,
Era o idolo do povo:
Da terra meu vulto ia
Tocar no que luzia,
Outro sol formar de novo—

Sol de Austerlitz brilhante;
Sol de Marengo altaneiro;
Sol horrivel, deslumbrante,
Da victoria audaz luzeiro;
Sol de homericas batalhas;
Sol que ao pé de mortalhas
Faz os mortos reviver;
Sol que ainda assombra a historia;
Sol que se chama gloria;
Sol que não póde morrer!

Hoje tristonho, isolado
N’esta rocha solitaria.
E’ meu silencio inda um brado
Que electrisa a turba varia;
Cantam-me o mar e o vento;
No furacão turbulento
Vai meu nome á eternidade!..
Eis meus bravos generaes—
Na furia dos vendavaes,
Meu clarim—na tempestade

N’este Golgotha—aqui suo
Meu triste suor de sangue;
Aqui na vida, que amuo,
Pende o corpo, a alma não langue;
Aqui tenho o meu destino,
Grande, heroico, divino,
Aqui talvez a vingança;
Sobre esta ilha esquecida,
Na minha campa da vida,
Deus escreveu--esperança!

Quem sabe si a minha raça
Precisava de baptismo;
Se no crisol da desgraça
Depurei o heroismo ;

Si é de minha alma o supplicio,
Do meu crime o sacrificio
A liberdade esquecida;
Se esta minha realeza,
Por nascer da natureza,
Precisava ser ungida!

Quiz ser Deus... oh foi loucura,
Foi horrivel sacrilegio;
Não cobrem a sepultura
As dobras de um manto regio!
Fui cego... os braços erguidos,
A tantos seculos perdidos,

Não avistei de uma cruz!
Ai! não vi n’esta cegueira
Que aquelle sangue a poeira,
Não manchou—encheu de luz.