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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

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a qualquer genealogia sendo a sucessão de pais para filhos. Acrescente-se ainda que a afirmativa do verso 9 ("Então engendraram-se deuses no seu interior", isto é, no interior de Apsu-Tiámat) não diz respeito apenas aos que se nomeiam nos versos seguintes, mas, como já foi salientado, há uma multidão de outros deuses gerados. Não interessa, contudo, ao autor referir-se a todos eles, pois seu objetivo é a genealogia de Márduk, num poema dedicado à glória deste deus, não fazendo sentido, por outro lado, referir-se a deuses que não fossem seus ancestrais.

O significado dos nomes Anšar e Kišar é transparente a partir dos termos sumérios de que se compõem: 'an', 'céu'; 'ki', 'terra'; 'šar', 'totalidade'. Assim, trata-se, respectivamente, da 'totalidade do céu' e da 'totalidade da terra', ou, conforme Claus Wilcke, do 'círculo do céu' e do 'círculo da terra' (WILCKE apud GABRIEL, 2014, p. 119, n. 44). Não parece, contudo, que a etimologia dos nomes corresponda à função cosmogônica que os dois deuses têm no poema, pois 'céu' e 'terra' só muito mais à frente serão criados por Márduk, a partir do cadáver de Tiámat, por ele partido em dois.

Da perspectiva teogônica, chama a atenção que Kishar não apareça em nenhum outro ponto da narrativa. Anshar, pelo contrário, tem uma atuação de bastante destaque, já que, antes da entronização de Márduk, é ele quem atua como verdadeiro chefe dos deuses. Assim, diante da ameaça de Tiámat, que se prepara para a guerra, é ele quem comissiona para domá-la, primeiro, Ea, que recua, depois, Ánu, que também se declara impotente, e finalmente Márduk (cf. 2, 53 ss); a fim de que este possa desempenhar sua missão, é ainda Anshar quem convoca a assembleia dos deuses que visa a fixar-lhe o destino (3, 1 ss). Destaque-se o verso 2, 148, em que Márduk declara, dirigindo-se a Anshar: "a nuca de Tiámat pisarás tu", o que indica como o destino dos deuses se liga à liderança de Ánshar, de tal modo que se pode dizer que eles se dividiam, então, em dois campos: os que estavam com Tiámat versus os que se alinhavam com Anshar.

A inanição de Kishar como personagem da trama atinge também outras deusas, com exceção de Tiámat. Parece haver, de fato, no poema, um apagamento do feminino, o que se observa mesmo quando da criação