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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

constituiriam uma breve subordinada temporal (“quando, no alto, não era nomeado o céu, embaixo, a terra por nome não era chamada”), a que se segue a oração principal, com um longo sujeito composto (“Apsu, o primeiro, progenitor deles, Matriz Tiámat, procriadora deles todos, suas águas juntos misturavam”, v. 3-5) e uma adversativa (“mas prado não enredavam, junco não amontoavam”, v. 6); b) segue-se nova frase, composta por oração temporal (“quando, dos deuses, não manifesto era algum, e por nome não se chamavam nem fados não fixavam”, v. 7-8) e nova principal (“então criaram-se deuses em seu seio”); cf. Haubold, 2017, p. 224-227; esse é também o entendimento de George, 2016, p. 19.

Tal opção, mais atenta ao sentido das formas verbais estativas que se usam na passagem, tem a vantagem de distinguir as duas situações que se expõem, bem marcadas pelo uso da conjunção enūma (quando): a) quando Apsu e Tiámat mesclavam suas águas, estavam tão entregues a si que isso os impedia de fazer surgir prados e juncos (v. 1-6); b) quando os deuses não se tinham manifestado, não tinham nomes nem fados fixados, então surgiram eles no seio de Apsu-Tiámat (7-9). Não há dúvida de que é a este último movimento – o surgimento dos deuses – que todo trecho visa, mas a situação inicial é exposta em duas etapas, a primeira de caráter cosmológico, a segunda de ordem teológica, dois aspectos importantes do poema, que não pode ser reduzido a apenas uma cosmogonia, tampouco a simples teogonia – tanto que Apsu e Tiámat se apresentam como deuses, com personalidade própria, bem como enquanto os elementos de que se formará o mundo, numa conjunção complexa.

Nos versos iniciais, o que mais ressalta é a repetição enfática do advérbio de negação (não), condizente com a apresentação do que antecede os primeiros movimentos cosmogônicos. Note-se que não se trata de criação ex nihilo (a partir do nada), ideia que parece estranha à maior parte das cosmogonias da zona de convergência do Mediterrâneo oriental, incluindo a bíblica (cf. BOTTÉRO, 1993, p. 165167). Para George, “os habitantes da Mesopotamia antiga, em inadvertida conformidade com a física moderna, criam que nada pode vir do nada. Tem de haver algo desde o princípio” (George, 2016, p. 12). A forma, contudo, de falar do que antecede a cosmogonia propriamente dita só se