Página:Ao correr da pena.djvu/280

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esses objetos de outros tempos, que muitas vezes podem ter um caráter histórico.

Continuei a examinar a luneta, levei-a aos olhos, e por acaso fitei o amigo que me acompanhava.

Horresco referens!

Li na boca do meu companheiro, em letras encarnadas, estas formais palavras:

— Forte maçante! Está me fazendo perder o tempo!

Agarrei mais que depressa a minha alma que ia lançar-se à janela; e, disfarçando a minha surpresa, voltei-me para o proprietário.

Através do seu ar amável e cortês, li ainda o seguinte:

— Que extravagância! Com tantos óculos bonitos, ocupar-se com uma luneta velha que não vale nada!

Enfim, olhei para o caixeiro da casa, e vi imediatamente a tradução de um sorriso complacente que lhe assomava nos lábios:

— Ah! se o homem me livra deste alcaide! Dizia o sorriso do caixeiro.

Não havia que duvidar. Tinha em meu poder a célebre luneta mágica de que falam os sábios antigos. Comprei-a por uma bagatela, apesar da insistência do proprietário que não queria abrir preço a um traste velho e sem valia.

Despedi-me do meu amigo, pedindo que desculpasse a maçada, guardei com todo o cuidado a minha luneta, e segui o meu caminho.

Precisava refletir.

Como é que aquele vidro mágico que se perdera na antiguidade, e que depois Frederico Soulié achou nas Memórias do Diabo, o emprestou um instante a Luigi, se achava nesse momento na minha algibeira?

Por que fatalidade o lorgnon de Delfina Gay viera parar ao Rio de Janeiro, e se achava naquela casa, desconhecido, ignorado de todos, podendo cair nas mãos do chefe de polícia, que então se veria obrigado a prender nove décimos da cidade?