Qual dos dois?/I

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A Rua do Ouvidor é a gazeta viva do Rio de Janeiro. Ali se fazem planos políticos e candidaturas eleitorais; ali correm as notícias; ali se discutem as grandes e as pequenas coisas: o artigo de fundo dá o braço à mofina, o anúncio vive em santa paz com o folhetim.

Não é, pois, de admirar que ali comece este romance, que é ao mesmo tempo o romance do Dr. Daniel E..., rapaz de vinte e oito anos, formado aos vinte e dois, e regressado há pouco da Europa. Daniel é formado em direito, mas até a idade em que o vemos aparecer não pleiteou um só processo, e, a julgar pelo gênero de vida que leva, não promete ser coisa que preste na ordem judicial. E, no entanto, não lhe falta talento, nem amigos, nem protetores, três elementos capazes de levantar um homem quando ele não tem má estrela. Mas apesar de todas essas vantagens, Daniel não tinha nem gosto nem profissão de advogado, e estava mais longe dela do que o pólo ártico está do pólo antártico.

Falemos verdade: o grande obstáculo que havia em Daniel, não só para a vida forense como para qualquer outra vida ativa, era a preguiça, o poderoso móvel do espírito humano descoberto por La Rochefoucault, isso que Madame de Schönberg dizia ser — “un sentiment si cachê et si véritable”. A preguiça quebrava-lhe os arrojos, como lhe arrancava as paixões; e como felizmente ele possuía bens de fortuna, podia afoitamente dispensar-se de tentar qualquer carreira trabalhosa, ou que simplesmente lhe exigisse atenção.

Indiferente ao movimento público, a queda de um ministério valia para ele tanto como a extinção de um charuto. Nunca lera um discurso parlamentar. Conhecia a Constituição por tê-la lido na academia. Não votava nunca, nem tinha disposição de fazê-lo.

Nenhuma grande ordem de idéias chamava a sua atenção; tinha em pouco as fadigas do gênero humano por bens que lhe pareciam nulos, sem que desse a razão por quê, operação que lhe exigiria certa atividade, que não tinha.

— A vida é um ônibus, dizia ele; cada um paga a sua passagem e desce do veículo na primeira cova que encontra. Ora, num ônibus, anda-se quieto; deixem-me andar quieto.

Vê-se que o sentimento da preguiça aliava-se um pouco a certa filosofia apática, resultando deste consórcio a mais perfeita tranqüilidade de ânimo que jamais entrou num peito daquela idade.

A sua vida era, pois, serena, plana e uniforme. Nem tinha as grandes tempestades que agitam o mar, nem os aspectos sombrios de um terreno cercado de montanhas. Era a quietação do lago e a regularidade da planície. Pode ser que houvesse dentro dele o germe das grandes paixões, mas faltava fecundá-lo.

Vivia Daniel na Rua do Ouvidor; os seus horizontes não passavam da casa do Bernardo ou da livraria Garnier. Fazia algumas excursões a Andaraí, a Botafogo ou à Tijuca, do mesmo modo que se faz a viagem a Buenos Aires ou a Lisboa; mas o seu país natal era a Rua do Ouvidor. Se a Rua do Ouvidor não existisse, dizia ele, era preciso inventá-la. Depois da Rua do Ouvidor, só uma coisa lhe merecia cultos: a alcova em que dormia.

Era elegante por indiferença; vestia o que lhe davam os alfaiates. Ia ao teatro por matar o tempo; entrava sem curiosidade e saía sem comoções.

Não havia memória de que se houvesse zangado alguma vez, nem com os escravos, nem com os amigos, que ele aliás confundia até ao ponto de dizer que via um amigo em cada escravo e um escravo em cada amigo.

Não consta que depois de formado concluísse a leitura de um livro, qualquer que fosse, nem que soubesse o título dos que lia à noite para chamar o sono.

Tinha, entretanto, talento, como disse, e podia ser alguma coisa, na política, no foro, nas letras e até no amor, porque era um tipo singularmente belo, um desses rapazes com que sonham as meninas de 15 anos. Mas não amava, nem era amado.

Vivia com o pai; e completavam ambos toda a família. O contraste era expressivo; tão apático era um, quão ativo era o outro. O velho Marcos era negociante desde longa data; ganhara no comércio todos os seus cabedais; agora, trabalhava para não vadiar. Entendia que o trabalho não era um meio, mas um fim. Quando o filho se dava algumas vezes ao trabalho de provar o contrário, o bom do velho limitava-se a sorrir e a responder:

— Tens razão, meu peralta; tens razão, porque eu não posso admitir que não tenhas razão, mas deixa-me continuar no erro.

Outro contraste: Marcos era sempre folgazão; Daniel ria poucas vezes, menos por misantropia que por indolência. Mas, como não se zangava, também não apresentava nenhum contraste.

Tinha ido a dois ou três saraus em toda a sua vida; não dançou, nem jogou, nem ceou; limitou-se a olhar, a fumar e a trocar algumas palavras. Não se demorou em nenhum deles mais de uma hora.

Tal é o Dr. Daniel a quem os leitores vão ver na Rua do Ouvidor, à porta de uma loja de modas.