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Qual dos dois?/IV

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Oito dias depois destas cenas, estando Daniel almoçando em casa, e só, porque eram 11 horas e o velho Marcos almoçava às 8, apareceu Valadares alegre e rubicundo.

Daniel ofereceu-lhe o almoço.

— Aceito, porque ainda não almocei, e confesso que não pretendia fazê-lo por não ter vontade nenhuma. Mas pode ser que a tua companhia me abra o apetite. O velho está cá?

— Não.

Valadares sentou-se à mesa e começou a almoçar.

Durante os primeiros minutos, apenas trocaram raros monossílabos.

Daniel acabou primeiro e acendeu um charuto.

— Que novidade há? perguntou ele.

— Uma grande novidade, respondeu Valadares.

— Imagino.

— Verás: uma novidade incrível e entretanto verdadeira, uma novidade, que não é para ti, porque já te dei parte dela, mas então foi um pouco vagamente.

— Vamos ver o que é.

— Caso-me.

— Ah!

— Caso-me daqui a um mês.

— Estimo muito.

Valadares cruzou o talher e recebeu a xícara de café que lhe ofereceu o servente.

— Caso-me com a Amélia Seabra, e deste modo fico aparentado contigo. Ora, queres que te diga? por muito superior que seja um homem, esta idéia de casamento é sempre uma grande preocupação. De cada vez que me levanto da cama pergunto a mim mesmo se é certo que dentro de pouco tempo estarei eternamente unido a uma mulher. Eternamente! eu que nunca dei ao amor mais de dois meses de vida. Que te parece?

— Nada.

Valadares engoliu rapidamente o café, recuou a cadeira, e acendeu também um charuto.

— Dou um baile, sabes? disse ele a Daniel; e peço-te por especial obséquio que assistas a ele.

Daniel fez um gesto de assentimento.

— Creio que terei muita gente, continuou Valadares; conto já com dois ministros e quatro senadores; são convites de meu sogro. Eu apenas me encarrego de convidar os rapazes. A propósito, lá teremos a pequena da liga.

— Que pequena?

— Ora, aquela que deixou cair a liga na Rua do Ouvidor... não te lembras?

— Ah!

Daniel recordou-se então do incidente da Rua do Ouvidor.

— Que fizeste da liga? perguntou Valadares.

— Creio que a pus na secretária.

Levantaram-se da mesa.

Indo para o seu gabinete, Daniel abriu a secretária e encontrou ainda a liga perdida por Augusta.

— Maganão! disse Valadares, guardaste-a!

— Por distração... respondeu Daniel.

E tornou a fechar a secretária.

Depois do encontro com Augusta, era a primeira vez que ela lhe voltava ao pensamento. Daniel recordava-se do gesto de supremo desdém e indiferença com que ela desviara os olhos e entrara no carro.

Se a preguiça, como quer o moralista, destrói todas as paixões, confessemo-lo que o faz lentamente e não de um lance. Daniel ainda tinha em si uma boa dose de orgulho que resistia à ação do elemento dissolvente. A lembrança de Augusta foi de orgulho ofendido. O seu amor-próprio sofreu naquele momento com a evocação da cena da Rua do Ouvidor.

— Com que então a moça da liga vai ao teu baile...

— Vai; é também convite de meu sogro. Sogro! Acho uma novidade nisto; parece-me que vou mudar da terra. Meu sogro! não pensei nunca que tivesse de dar este nome a alguém. E no entanto... É o que te há de acontecer.

Daniel levantou os ombros.

— A mim? disse ele; se toda a humanidade esperar por mim para casar, podemos dar por extinta a raça humana.

— Era justamente o que eu dizia...

— Importa-me pouco o que tu dizias...

— Verás... verás...

Valadares saiu pouco depois e foi direitinho, não para a casa da noiva, mas para a casa de alguém já indicada neste romance.

Hão de ter notado que Valadares em toda a conversa sobre casamento só de passagem aludira à mulher. Contrário a todos os noivos, a futura esposa não lhe merecera cinco minutos de atenção nas suas expansões com um amigo. Nem mais nem menos, tratava-se de um desses mercados a que, por cortesia, se chama — casamento de conveniência, — dois vocábulos inimigos que a civilização aliou.

Valadares tinha chegado naquele ponto em que se bifurca a estrada da vida de um estróina: de um lado, o casamento de conveniência, do outro a perdição completa. É difícil naquela situação encontrar uma mulher que se disponha a dar a mão ao estróina; achou-a Valadares.

Estas mesmas reflexões fê-las consigo Daniel, apenas se separou do outro, e, fazendo-as, comentou-as por modo que eu estenderia muito estas páginas se quisesse desenvolver as suas reflexões.

Não se davam com Daniel as circunstâncias de Valadares. Daniel era mais que tudo um homem extremamente pessoal. O casamento impor-lhe-ia uma preocupação que ele não queria ter; quanto aos prazeres do lar doméstico, eram coisa frívola para ele.

Quando o velho Marcos, ouvindo dele a notícia de que Valadares se ia casar, insinuou ao filho que o exemplo era bom de seguir:

— Pois não fosse! respondeu Daniel, oferecendo um charuto ao pai.