Quem conta um conto/III

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Não se pode negar que este prazer era inocente e, quando muito, singular.

Infelizmente, não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? Perguntava o poeta de Jovem Cativa, e eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro.

Luís da Costa experimentou, um dia, as asperezas de seu ofício.

Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja de Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado como homem que vem pejado de alguma notícia. Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois, olhou para todos, e soltou secamente estas palavras:

—Então, fugiu a sobrinha do Gouveia? disse ele, rindo.

—Que Gouveia? disse um dos presentes.

—O major Gouveia, explicou Luís da Costa.

Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.

—O major Gouveia da Cidade Nova? perguntou o desconhecido ao noveleiro.

—Sim, senhor.

Novo e mais profundo silêncio.

Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de queimar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do major ao casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima de moinhos.

O silêncio era sepulcral.

O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão.

Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:

—E quando foi esse rapto?

—Hoje de manhã.

—Oh!

—Das 8 para as 9 horas,

—Conhece o major Gouveia?

—De nome.

—Que idéia forma dele?

—Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a moça é muito bonita...

—Conhece-a?

—Ainda ontem a vi.

—Ah! A segunda circunstância...

—A segunda circunstância é a crueldade de certos homens de certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que se trata dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o major impedi-lo?

—O major tinha razões fortes, observou o desconhecido.

—Ah! Conhece-o?

—Sou eu.

Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois sem saber que iria sair dali. Deste modo, correram cinco minutos.