Quem não quer ser lobo.../IV

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Às ave-marias estava Coelho em casa pronto e preparado para ir à entrevista. Não sabia bem o que lhe aconteceria nessa noite, mas tinha uma tal ou qual confiança no resultado da aventura.

Quase a pôr o pé na rua, surgiram-lhe no espírito duas dúvidas.

Primeiro:

Seria tarde ou cedo a hora da entrevista?

Segundo:

Não iria ele encontrar-se com o outro, visto que a carta já estava aberta, o que era sinal de que ele a houvesse lido?

Durante um quarto de hora, esteve o nosso Coelho indeciso. A empresa chegou a parecer-lhe extravagante.

— O que estou fazendo é absurdo, dizia ele sentando-se no sofá; não se faz isto na vida real, em 1863, na cidade do Rio de Janeiro. Estou simplesmente doido. Isso contado não se acredita.

Mas com estas idéias lhe foram aparecendo outras. Uma voz secreta dizia-lhe que tentasse a empresa, porque o desenlace seria completo. Coelho ainda procurou chamar a razão em seu auxílio, mas era tarde: o destino havia-se apoderado dele.

O jardim tinha uma porta para a rua. Eram oito horas da noite; e, posto que a rua não fosse muito freqüentada, era ainda cedo para poder impunemente penetrar no jardim.

Coelho encostou-se ao muro, e estando a porta aberta, enfiou o olhar para dentro. Descobriu duas janelas, uma fechada e outra aberta; no interior, havia luz.

Entretanto, nem no jardim, nem na casa havia o menor vestígio de gente.

— Naturalmente, está ela na sala, pensava Coelho; o diabo é eu não saber a hora; pode vir alguém e descobrir-me... E se me fecham a porta? O outro talvez tenha alguma chave...

Nesse ponto, ouviu passos na calçada. Um vulto aproximava-se costeando o muro.

— É ele, pensou Coelho.

Sua primeira idéia foi recuar, ou passar para o lado oposto; mas refletiu que esta mesma prevenção podia descobrir o seu intento.

O vulto veio andando, andando, andando, até que enfrentou com ele.

Parou.

Coelho estremeceu.

— Estou perdido! disse ele consigo.

O vulto meteu a mão no bolso sem tirar os olhos de Coelho, sacou um objeto que ele não viu, mas que supôs ser um ferro; tirou o chapéu e disse polidamente:

— Faz favor do fogo?

Coelho respirou.

Deu-lhe o charuto em que o homem acendeu o seu e prosseguiu viagem, sem voltar os olhos para trás.

— Sempre sou um medroso! disse Coelho consigo. Creio que se o homem me lança a mão, eu morreria de medo. Mas também o caso é arriscado; se o meu rival se apresenta, estou perdido; pelo menos, entro em uma luta desagradável.

Neste caminho das suas reflexões, Coelho passou do medo ao terror. Parecia-lhe ver já diante de si o desconhecido namorado, munido de um cacete, ou de um punhal, e ele morto ou espancado, na sala da polícia, interrogado pela autoridade, examinado pelos médicos; e no dia seguinte, o seu nome impresso em todas as folhas, e o caso contado com todos os pormenores.

Quis fugir.

Mas, de repente, sentiu um rumor no jardim.

Era a moça que chegava com estrépito, sem dúvida para dar sinal ao namorado, caso ele estivesse nas imediações.

Coelho não pôde resistir.

Deitou um olhar à rua; ninguém o via nesse momento. Persignou-se e entrou no jardim.

Lúcia viu aparecer à porta o vulto e fez um sinal com o lenço. Coelho aproximou-se cautelosamente da janela, que ficava elevada. A idéia da existência de algum cão atravessou-lhe o espírito:

— Oh! meu Deus! disse ele.

E estacou.

Mas a moça estava presente e não havia recuar.

Continuou a andar na direção da janela.

— És tu, Carlos? perguntou a moça.

— Sou eu, disse Coelho, com voz fraca.

— Não pude vir mais cedo, disse Lúcia, porque minha tia quis por força que eu ficasse na sala. Agora pude sair sem que ela reparasse. A nossa conversa não pode ser longa. Ninguém te viu?

— Ninguém, murmurou Coelho, que não queria ser descoberto pela voz.

— Sabes o que tem acontecido?

— Não.

— Meu tio anda desconfiado do nosso amor.

— Ah!

— Ouvi-o no domingo estar conversando com minha tia e dizendo que havia de saber quem era o brejeiro que andava a namorar-me, e que lhe havia de quebrar as costelas.

Ouviu-se um suspiro; ele pensou que era alguém de casa, mas reparou que era ela mesma.

— Não te parece que estamos mal? perguntou a moça.

— Sim, disse Coelho.

— Mas que tens hoje? disse ela. Estás tão calado! Não me respondes senão com palavras soltas. Sofres alguma coisa?

— Oh!

— É aquela dor de peito que te continua a dar?

— É.

— Pobre Carlos!

Neste momento, ouviu-se um rumor. Era um pisar mansinho na areia do jardim.

— Que será? pensou Coelho.

— Guardei uma flor para ti, disse a moça. Queres?

— Quero, grunhiu Coelho.

— Lá vai.

E Lúcia debruçando-se na janela atirou a flor, que Coelho apanhou e levou aos lábios.

— Céus! que é isto? murmurou a moça.

Era a voz de um cão que se ouvira, e a voz de alguém que animava o cão.

— Há alguém?

— Há, disse Coelho mais morto que vivo.

— Há de ser o preto.

E olhou na direção do latido.

Coelho não queria saber se era ou não o preto; a sua idéia definitiva era dirigir-se à porta e pôr-se ao fresco.

Nesse sentido, começou a recuar; mas o latido do cão aproximava-se e dentro de pouco tempo um vulto de homem e um vulto de cão se apresentaram em frente de Coelho.

O cão parou e pareceu consultar o homem. Este fez um sinal e chegou-se a Coelho.

Coelho encomendou a alma a Deus.

Um grito ouviu-se da janela. Era Lúcia, que desapareceu imediatamente.

— Quem é o senhor? disse o vulto.

— Eu... balbuciou Coelho.

— Sim... diga!

— Eu...

— Eu quem?

E como Coelho não respondesse, o vulto pegou-lhe no braço e procurou arrastá-lo para dentro. Coelho resistiu.

— Vou dizer tudo, gritou ele.

— Venha cá dentro; estaremos mais a gosto.

Era impossível resistir; Coelho acompanhou o vulto.