Quem não quer ser lobo.../VI

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Fechou-se a porta do jardim. Coelho parou na rua, atônito. Durante um quarto de hora, não pôde dar um passo.

Tudo lhe parecia um sonho.

De duas uma:

Ou tinha de ser metido numa terrível embrulhada, de que era incerto que saísse bem, ou então, a sua felicidade era certa.

Mas como supor a segunda hipótese?

Enganar o tio era possível; mas a sobrinha? Quando esta o visse reconheceria perfeitamente o engano e teria franqueza para dizer ao velho que o seu namorado não era ele mas outro. O velho perdoaria aos dois, e descarregaria sobre ele todo o furor.

Coelho caminhou lentamente para casa meditando no que acabava de ocorrer. Cada vez se lhe entranhava mais no espírito a convicção de que a situação era para ele terrível; e ao mesmo tempo perguntava a si mesmo como pudera crer que fosse possível conseguir alguma coisa nas condições em que lhe apareceu a carta.

— Eu estava doido, sem dúvida, dizia consigo Coelho. Supor que poderia dali sair alguma coisa boa, era realmente ter perdido o juízo.

Quando chegou a casa estava resolvido a abrir mão da sobrinha de Ypsilanti.

— Mas será isso possível? perguntava Coelho a si mesmo; depois do que se passou, conhecendo-me ele, ainda que pouco, é impossível deixar a empresa. Em rigor, eu devo-lhe uma satisfação. Não há remédio. Em que situação me fui colocar!

Depois a idéia dos contos réis de novo lhe apareceu com todo o seu cortejo de gozos e fantasias.

— Rico, dizia ele; rico! Oh! isto é um sonho! Eu posso estar rico daqui a um mês. Foi a minha estrela que me levou lá; está dito. — E poderia satisfazer a sua ânsia de fazer figura.

Pelas quatro horas, conseguiu fechar os olhos.

Mas os sonhos continuaram os cálculos; e o nosso Coelho acordou tarde, bem disposto, risonho e quase rico; pelo menos, rico de imaginação.

O moleque começou a experimentar a feliz mudança operada no ânimo do senhor. Não recebeu o pontapé matinal de costume, e teve o gosto de assobiar uma ária sem medo de interrupção.

Coelho mandou comprar um par de luvas brancas, e encomendar um carro, preparou-se, perfumou-se, e ensaiou-se para a arriscada empresa. Enquanto não saía de casa, tudo parecia ir facilmente, mas apenas se meteu no carro, e este começou a rodar pelas ruas da cidade na direção da casa do grego, tudo se foi alterando no espírito do rapaz.

— Mas eu estou vivendo em pleno romance de ontem para cá, dizia o mísero; isto é uma loucura. A rapariga vai reconhecer-me, adivinhará tudo, ou antes, não adivinhará nada, mas compreenderá ao menos que não sou eu o namorado, e tudo se desfaz e eu estou em pior posição do que ontem. O velho, apesar da confissão que lhe fiz, não me há de perdoar a audácia, desde que souber que eu efetivamente a pratiquei. Tudo isso é rematada loucura.

E o carro ia andando.

Então, voltava à mente de Coelho a idéia do dinheiro, e esta doce imaginação o seduzia e lançava uma espécie de véu sobre os perigos que ele antevia. Imaginava um belo prédio, carros, bailes, jóias, passeios, todos os sonhos de um homem que não tem e quer possuir.

Mas, como o carro andava sempre, e o momento decisivo ia se aproximando, Coelho tornava aos seus terrores, e de novo hesitava se devia ir à casa do velho ou voltar para trás.

No meio dessas alternativas lembrou-lhe um meio que conciliava as esperanças com os receios.

— Entro, pensava ele; o velho recebe-me; faço o meu pedido. Mandam vir a pequena, e apenas esta aparecer, antes que saiba do assunto, faço-lhe um gesto para que se não oponha, como quem lhe explicará o caso depois. Ela imaginará que estou de acordo com o namorado, e aguardará a explicação. Quando vier a ocasião, procurarei expor a verdade. Sim, este é o verdadeiro meio.

Com este pensamento foi até à casa de Ypsilanti. O velho já o esperava com ansiedade; recebeu-o cortesmente, ainda que não sem um ar severo, que aliás lhe era peculiar.

Feitos os cumprimentos e presente a tia de Lúcia, expôs Coelho o objeto da sua visita, proferindo um pequeno discurso análogo ao ato, que o velho ouviu com um significativo meneio de cabeça.

— Pela minha parte, disse este, consinto no pedido que faz; mas é mister que minha sobrinha consinta também. Vou mandar chamá-la.

D. Manuela, esposa de Ypsilanti, dignou-se aprovar a resposta do marido e mandou chamar Lúcia. Não tardou que a sobrinha aparecesse à porta, convenientemente vestida, e com os olhos baixos.

Coelho estremeceu.

Não contara com este gesto de modéstia, tão natural da moça que é pedida para casar, e não sabia como fazer o gesto que devia salvar a situação.

Lúcia aproximou-se lentamente do grupo.

— Meu tio, murmurou ela.

— Senta-te, Lúcia, disse D. Manuela.

Lúcia sentou-se, sempre com os olhos pregados no chão.

Coelho estava em suores frios. Debalde olhava para ela, a moça não levantava os olhos. Começou a tossir para ver se ela levantava os olhos. Ypsilanti, vendo a insistência da tosse, mandou fechar a janela que ficara por trás de Coelho.

Tudo estava perdido.

— Lúcia, disse o velho tio, este senhor vem pedir-te em casamento. Aceitas o seu pedido?

Houve um silêncio.

“Vai olhar para mim, — pensou Coelho, — tudo está acabado”.

— Então? disse D. Manuela.

— Aceito.

— Tudo está arranjado, disse Ypsilanti; resta marcar o dia do casamento.

Outro silêncio.

Lúcia não levantara os olhos do chão. Coelho estava em brasas. Esperava o momento em que ela ia levantar os olhos e soltar um grito de surpresa.

Como ela insistia em não olhar para ele, achou ele que o mais prudente era esquivar-se quanto antes e, por meio de uma carta, explicar-lhe tudo.

Ia já a levantar-se, quando Ypsilanti lhe disse:

— Toma chá conosco, Sr. Coelho?

Coelho! O nome próprio do homem! Era impossível que, ao ouvir o nome de Coelho, a moça não levantasse os olhos com pasmo.

Nada!

Esta surpresa foi a maior sensação que o nosso herói tivera até aquele momento.

— Será surda? perguntou ele. Mas não; ontem ouvia perfeitamente os meus monossílabos.

— Então, Sr. Coelho? repetiu Ypsilanti. Não toma chá conosco?

— Peço desculpas.

— E eu não lhas dou, — acudiu dona Manuela, — há de tomar chá.

— Minha senhora; é-me impossível, disse Coelho com os olhos pregados em Lúcia; tenho um objeto imperioso que me impede de aceitar este gracioso convite.

Coelho disse estas palavras com voz clara e firme. Lúcia moveu a cabeça para ele.

Coelho nem teve tempo de respirar; fez um gesto com os olhos, enquanto a moça, parecendo não reparar no gesto, volvia a cabeça para o tio e tia, e mostrava-se completamente senhora de si.

— Não entendo, concluiu entre si o rapaz.

Conversaram ainda algum tempo, até que o pretendente se despediu sem que a noiva lhe desse o menor sinal de surpresa. Parecia que o amava há muito tempo.

— Que mistério será este? dizia ele no carro; seja o que for, a moça está caída; vou enfim ser rico.