Quem sou eu?

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Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscripto,
Que trago na fronte escripto
Esta palavra—Ninguém!—
A. E. Zaluar.—Dóres e Flores.



Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me-envolvo em torvelinho,
Vivo sò no meu cantinho:
Da grandesa sempre longe
Gomo vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que sam antigos,
Pujo sempre á hypocrisia,
A' sandice, á fidalguia;

Das manadas de Baroens?
Anjo Bento, antes trovoens.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediencia
A’ virtude, á intelligencia:
Eis aqui o Getulino
Que no plectro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se-mete a ser poeta;
Que no seculo das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e commendas,
Teem brasoens, não—das Kalendas,
E, com tretas e com furtos
Vam subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com geito e protecçoens,
Galgam altas posiçoens !
Mas eu sempre vigiando
N’essa sucia vou malhando
De tratantes, bem ou mal
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pilulas fabricante,
Que blasona arte divina,
Com sulphatos de quinina,
Trabusanas, charopadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pinga de rubor,
Diz a todos, que é DOCTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trahe a justiça
—Faz a todos injustiça--
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime

No mendigo, que deprime.
—N’este dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo ás leguas do logista,
Do beato e do sachrista
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados,
Mas que, tendo occasiao,
Sam mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisongeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleavel, sem firmeza,
Vive á lei da natureza;
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas n’um momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Postoque já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldiçóens,
Contra as minhas reflexoens.
Eu bem sei que sou qual Gryllo
De maçante e máo estylo ;
E que os homens poderosos
D’esta arenga receiosos
Ham de chamar-me—tarello,
Bóde, negro, Mongibello ;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bóde
Pouco importa. O que isto póde?
Bódes ha de toda a casta,
Pois que a especie é muito vasta. . .
Ha cinzentos, ha rajados,
Bayos, pampas e malhados,
Bódes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,
Bódes ricos, bódes pobres,
Bódes sabios, importantes,
E tambem alguns tratantes.. .
Aqui, n’esta boa terra
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquezas,
Ricas Damas e Marquezas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Bellas Damas emproadas,
De nobresa empatufadas ;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeaes,
Fanfarroens imperiaes,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos ha meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança ;
Guardas, Cabos, Furrieis,
Brigadeiros, Coroneis,
Destemidos Marechaes,
Butilantes Generaes,'
Capitaens de mar e guerra,
—Tudo marra, tudo berra—
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divinidade,
Bódes ha sanctificados,
Que por nós sam adorados.
Entre o côro dos Anginhos
Tambem ha muitos bodinhos.—
O amante de Syringa
Tinha pello e má catinga ;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas ;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino ;
E, segundo o antigo mytho,

Tambem Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bóde o Alcorão ;
Nos lundús e nas modinhas
Sam cantadas as bodinhas:
Pois si todos teem rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada !