Quinhentos contos/IV
São passados dois dias depois do jantar de anos de Helena.
A neta do coronel estava na sala de recepção, lendo e relendo um papelinho que tirara do seio.
Eram versos.
Anunciou-se o dr. Máximo.
O dr. Máximo, com quem já travamos rápido conhecimento, não se podia dizer que era um belo homem, mas era profundamente simpático, e a fisionomia severa coberta de um certo melancólico que dispunha o espírito dos outros a estimá-lo e amá-lo. Havia um perfeito acordo entre a sua aparência e o seu caráter. Máximo era um homem de bem, na elevada acepção desta frase.
Quando ele entrou na sala da viúva, esta estremeceu ligeiramente, e levantando-se foi ao encontro do doutor.
— É milagre, doutor! disse ela. Raríssimo aparece aqui de tarde... mas eu agradeço aos céus o ter compreendido que a sua presença nesta casa é sempre um motivo de satisfação.
— Se é, lamento que hoje seja um motivo de desgosto.
— Por quê? perguntou Helena empalidecendo.
— Porque é de despedida.
Houve um silêncio entre ambos.
— De despedida! repetiu Helena.
— Embarco para o Sul.
— Algum negócio urgente?
— Talvez.
— Quando volta?
— Não sei.
Helena sentou-se, talvez por não poder ter-se de pé; e com um gesto convidou Máximo a sentar-se também.
— Que mal lhe fizemos nós?
— Oh! nenhum! respondeu Máximo; e se eu contasse os males da minha vida pelos bens destes últimos três meses, tinha motivos para abençoar o meu destino.
— Que mal lhe fiz eu? perguntou Helena timidamente.
— A pergunta é cruel; bem sabe que nunca me fez mal algum.
— Mas sabe que esta partida é uma dor para mim?
— Agradeço-lhe a sua amizade.
Helena abaixou os olhos, e calou-se; mas daí a alguns minutos levantou-se, e disse-lhe rapidamente, buscando o caminho da porta:
— O meu amor, deve dizer!
— Amor! exclamou Máximo.
E travando da mão de Helena reteve-a ao pé de si, dizendo:
— Amor! Ah! repita-me essa palavra que é toda a felicidade da minha vida...
— Foi uma imprudência, mas é tarde. Sim, amor, porque eu o amo, e sei que me ama, e sei que me não quer dizer, e se parte agora é para que me não diga nunca!
— De perto ou de longe posso adorá-la. Que valem algumas léguas de permeio? Não se adora o Criador apesar do infinito? Deixe-me partir! eu quero conservar este amor acima das suspeitas humanas, em esfera onde o não vejam olhos invejosos!
— Mas que lhe fiz eu?
— Tanto quanto era preciso para que eu fosse feliz: compreendeu-me, perdoou-me, e mais ainda, retribuiu-me. Mas nem a senhora nem eu podemos fechar a boca do mundo, e é daí que pode vir a minha condenação.
— Como? perguntou Helena.
— Oh! não aprofundemos a injustiça dos homens. Deixemo-la reinar implacável e impune. Calcule o meu desespero recusando a essência do amor, só porque é de ouro o vaso que a encerra.
— Receia então?
— Que me julguem mal. Eu sou pobre. Perdi meus pais em criança, e fui educado por uma santa mulher que apenas me deu a fortuna de um bom coração. A senhora é rica, tem à roda de si um cortejo de adoradores. Como me distinguiria a senhora no meio de tantos? Como reconhecer a pureza dos meus sentimentos?
— Quem os porá em dúvida?
— Toda a gente.
— Menos eu. É cruel, Máximo! A sua dor é grande, mas a minha? Eu tinha uma ilusão: a da moça que supõe que os seus olhos estão primeiro que os seus teres. Enganava-me; amam a minha fortuna... mas se eu levanto o meu coração acima de todas essas fraquezas, é que um sentimento puro o encheu para sempre, um amor mais nobre, uma dedicação mais sincera!
— Obrigado, se não duvida de mim!
— Não é bastante?
— Não é.
— Não é! Mas sabe todo o alcance das suas palavras? O meu primeiro casamento foi uma aliança de família, e um motivo de gratidão; respeitei meu marido, não o amei. O que eu lhe dava era um coração virgem.
A moça dizendo estas palavras tinha os olhos arrasados de lágrimas e de amor. Máximo estava aflito; aquela consciência lutava contra aquele coração, e tudo dependia da força que um deles tivesse. Afinal Helena pediu-lhe formalmente que não partisse. Mesmo quando Máximo não a amasse, era uma obra de misericórdia dizer-lhe que sim. Máximo sentou-se dizendo:
— Fico!
Mas entre si acrescentou dolorosamente:
— Nunca!
Nesse momento entrou o coronel. Vinha mais triste que nunca. Apenas olhou para Máximo estremeceu. O doutor estendeu-lhe a mão, e o coronel apertou-a friamente. Helena em nada reparou; só tinha olhos para ele.
— Está visto, disse Máximo consigo, devo partir, já este me julga pelos outros.
E saiu prometendo voltar de noite.
Só quando se acharam sós é que Helena reparou na tristeza do avô. Indagou a causa; o coronel apenas respondeu-lhe por um gesto de aborrecimento.
Helena calou-se.
— Nada tenho, disse o coronel daí a alguns minutos: ou antes tenho, mas é uma coisa muito particular. A propósito, tenho de comunicar-te dois pedidos de casamento.
— Logo dois! disse Helena rindo.
— É verdade. O Alves e o Batista pedem a tua mão.
— Para eles?
— Para os filhos. Disse-lhes que o melhor e mais justo era entenderem-se contigo. Eles devem vir aqui amanhã.
Na mesma noite, o coronel saiu dizendo que ia ao teatro. Era coisa rara que o coronel fosse ao teatro sem levar a neta; entretanto Helena não reparou muito nisso.
Mas o coronel não foi ao teatro. Apenas se achou na rua, disse ao cocheiro que seguisse para a casa do dr. Máximo.
O doutor estava em casa.
O motivo da entrevista era simples, mas terrível. O coronel ia exigir de Máximo que nunca mais voltasse à casa dele.
— Era minha intenção, coronel; mas nem por isso perco o direito de exigir, saber o motivo...
— Sou seu amigo, não quero dizê-lo...
— Perdão, coronel, mas a minha honra...
— Tem razão! Enfim, dir-lhe-ei. É impossível que haja entre nós e o senhor o menor contacto.
— Que fiz eu, coronel?
— Nada; mas separa-nos um traço de sangue.
— Como? perguntou Máximo aturdido.
— Foi seu pai quem assassinou meu filho, o pai de Helena.
Máximo ouvindo estas fatais palavras ficou aterrado, porquanto a memória de seu pai, que era uma das forças da sua vida, acabava de receber aquele profundo golpe.
— Como sabe disso? perguntou ele depois de alguns instantes.
— Sei. O cúmplice acaba de morrer em Barbacena, e revelou tudo. Veja esta carta: este não é o nome de seu pai?
— É.
— Estas não eram as circunstâncias da vida dele?
— Sim!
— Perdoe-me, mas é dever meu obrigá-lo a esta separação. Adeus, doutor!
— Adeus, coronel!
Estava decidido que Máximo devia partir.