Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CLVI
Ainda a Nobreza dos antigos (depois de acreditado o erro) tinha mais corpo; porque os ilustres iam buscar os seus ascendentes nos seus Deuses; e desta sorte ficavam os homens meios humanos, e não inteiramente. Só assim podiam ser distintos, e desiguais na realidade. As distinções permaneceram, enquanto duraram as suposições da origem. Conheceu o mundo a impostura, e logo os Deuses se acabaram, deixando os seus descendentes, feitos homens como os outros; e com a circunstância, que por haverem tido progenitores altos, ficaram sem nenhuns. Depois daquele catástrofe fatal, parece que devia extinguir-se a vaidade da Nobreza; mas não foi assim, porque aquela vaidade só mudou de espécie, e o engano, de figura; a Mitologia converteu-se em Genealogia, humanizou-se. A igualdade sempre foi para os homens uma cousa insuportável; por isso entraram a forjar novos artifícios com que se distinguissem, e ficassem desiguais; e não tendo já Deuses de donde tirassem o princípio da Nobreza, entraram a tirá-la de outras muitas vaidades juntas; compuseram uma Nobreza, toda humana; então nasceu aquela tal Nobreza, como parto do poder, da pompa, e da riqueza: acidentes na verdade exteriores, mas que servem de incrustação no homem, e esta ainda que composta de fragmentos, sempre forma um ornato matizado, e agradável; bem se vê que a viveza dos esmaltes, e das conchas, não penetra a substância interior, e que o muro tosco não fica mudado, coberto sim; mas que importa, se a gala frágil que o reveste, o enobrece?