Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CX
Mas que poucas vezes se encontra na beleza aquele certo grau de imperfeição, que à maneira de uma sombra leve só sirva de realçar-lhe a luz! A repartição do vício sempre é larga, e abundante, e o defeito não se comunica escassamente, com profusão sim: o que vemos de imperfeito na beleza raras vezes é como um sinal, ou mancha breve, de que o alinho se adorna por arte, e por estudo; antes essa imperfeição se estende, e cresce tanto, que abraça o objecto inteiro, e o escurece: qualquer mistura em pouca quantidade contamina a pureza de um licor; uma grande porção o absorve, e compreende todo. Esse caudaloso Tejo não o turva um só regato imundo, porém muitas torrentes de água impura, fazem-lhe perder o nome, e semelhança de cristal; uma só nuvem não faz sombria a claridade do horizonte, mas muitas nuvens juntas fazem de um belo dia, uma noite escura; assim a beleza: o vício nela não costuma ser como um regato, mas como torrente; o que tem de imperfeito, não é como um sinal (efeito enfim da meditação) mas como uma mancha verdadeira; o seu defeito raramente é leve; antes quási sempre pesa mais do que a mesma fermosura. Infeliz concórdia, cruel sociedade! Quem dissera que um mesmo objecto seja capaz de inspirar amor, e aborrecimento! Tão pouca distância há entre o mal, e o bem? Entre a aversão, e o afecto, entre o perfeito, e o defectuoso, que em um mesmo sujeito se possam encontrar, e unir?