Saltar para o conteúdo

Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/Dedicatória

Wikisource, a biblioteca livre

Senhor:

Ofereço a Vossa Majestade as Reflexões sobre a vaidade dos homens; isto é o mesmo que oferecer em um pequeno livro aquilo de que o mundo todo se compõe, e que só Vossa Majestade não tem: feliz indigência, e que só em Vossa Majestade se acha. Declamei contra a vaidade, e não pude resistir à vaidade inocente de pôr estes discursos aos Reais pés de Vossa Majestade; para que os mesmos pés, que heroicamente pisam as vaidades, se dignem proteger estas reflexões. Mas que muito, Senhor, que as vaidades estejam só aos pés de Vossa Majestade, se as virtudes o ocupam todo. Alguma vez se havia de ver a vaidade sem lugar.

Têm os homens em si mesmos um espelho fiel, em que vêem, e sentem a impressão, que lhes faz a vaidade: Vossa Majestade só neste livro a pode sentir, e ver; e assim para Vossa Majestade saber o que a vaidade é, seria necessário que a estudasse aqui. Quanto deram os homens, e quanto valeriam mais, se pudessem, ainda que fosse por estudo, alcançar uma ignorância tão ditosa. Não é só nesta parte, Senhor, em que vemos um prodígio em Vossa Majestade. As gentes penetradas de admiração, e de respeito, acham unidos em Vossa Majestade muitos atributos gloriosos, que raramente se puderam unir bem; e com efeito, quando se viu senão agora, sentar-se no mesmo Trono a Soberania e a Benignidade, a Justiça e a Clemência, o Poder supremo e a Razão? Em Vossa Majestade ficaram concordes, e fáceis aqueles impossíveis.

A mesma Providência quis manifestar o Rei, que preparava para a sua Lusitânia; assim o mostrou logo, porque o Oriente, ou Régio berço, em que Vossa Majestade amanheceu, nunca viu figura tão gentil; nesta se fundou o primeiro anúncio da felicidade Portuguesa, e foi a voz do Oráculo por onde a natureza se explicou. Não foi preciso que os sucessos verificassem aquele vaticínio, porque Vossa Majestade assim que veio ao mundo, só com se mostrar, disse o que havia de ser.

Um semblante augusto, mas cheio de bondade, e agrado, foi o penhor precioso das nossas esperanças: venturoso, e claro presságio, pois se fez entender até pela mesma forma exterior.

Chegou finalmente o tempo, em que os acertos de Vossa Majestade persuadem, que se há uma arte de reinar, essa não podem os Monarcas aprender, Deus a infunde, não em todos, mas naqueles só, a quem as virtudes mais sublimes fizeram merecer um favor celeste; isto dizem as resoluções de Vossa Majestade; elas mostram que não foram aprendidas, inspiradas sim. Por isso as primeiras acções de Vossa Majestade não se distinguem das que se vão seguindo; todas são iguais, e todas grandes; aqueles prelúdios, ou ensaios, não cedem na perfeição a nenhuma parte da obra: daqui vem o parecer-nos, que Vossa Majestade não só nasceu para reinar, mas que já sabia reinar quando nasceu.

Pelas mãos da idade recebem os Soberanos a experiência de mandar. Vossa Majestade sem depender dos anos, logo com o poder, recebeu a ciência de usar dele: o que os mais devem ao exercício, Vossa Majestade só o deve à Omnipotência; por isso as disposições de Vossa Majestade todas são justas, porque com elas se justifica Deus. Aos outros Reis servem os homens por força do preceito; a Vossa Majestade servem por obrigação da lei, e também por obrigação do amor; destes dois vínculos, não sei qual é maior, mas é certo, que um deles é violento às vezes, o outro é suave sempre; porque as cadeias, ainda as que são mais pesadas, ficam sendo leves, quando é o amor quem as faz, e as suporta. Todos sabem, Senhor, que antes que as nossas vozes aclamassem a Vossa Majestade já o tinham aclamado os nossos corações; nestes levantou o mesmo amor o primeiro trono a que Vossa Majestade subiu; e se é certa aquela memorável profecia, que promete a um Rei de Portugal o ser senhor de toda a terra, já podemos crer que chegou o tempo de cumprir-se, e esta fé deve fundar-se nas virtudes de Vossa Majestade; e enquanto não chega a feliz hora de vermos na mão de Vossa Majestade o Ceptro universal, já vemos que Vossa Majestade é digno dele; sendo que é mais glorioso o merecer, do que o alcançar. A Real Pessoa de Vossa Majestade guarde Deus infinitos anos.

Matias Aires Ramos da Silva de Eça