Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LXII
Quando pretendemos um favor, parece-nos que sempre havemos conservar a memória dele; mas é erro, porque apenas o alcançamos, quando logo se forma em nós um desejo imperceptível de o esquecer: a vaidade tem horror a tudo o que desperta a lembrança da nossa indigência; por isso não há ingratidão sem ódio; aborrecemos a quem remiu a nossa vexação, só porque a ficou conhecendo. Não se paga um benefício, senão com outro maior, e quem o não pode pagar assim, fica devendo sempre; por isso a vaidade antes nos resolve a ser ingratos, do que a conhecer uma obrigação de que nunca podemos estar livres. A ingratidão não consiste só no esquecimento do favor, mas também em uma aversão oculta, que temos a quem nos obrigou; por isso quando o vemos, e encontramos, sempre é com nosso pesar, e desagrado. Insensivelmente se forma uma espécie de divórcio entre quem recebe um favor, e quem o faz; este por vaidade afecta, o não lembrar-se do benefício feito, aquele tem pejo de haver-se esquecido dele; um e outro se retira: a ausência, ou a ruína daquele a quem somos obrigados, nunca nos é desagradável; porque então parece que respira a vaidade, como livre de um peso insuportável: naturalmente não podemos amar a quem devemos; a dívida leva consigo um desejo da extinção do seu objecto.