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Ressurreição (Machado de Assis)/XIX

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Dois dias antes do casamento, Lívia foi jantar à casa do coronel, a convite deste que reunira algumas pessoas de amizade. Félix não compareceu, apesar de instantemente chamado; cedera a um sentimento de delicadeza, não querendo mortificar com a sua presença a filho do coronel, nem perturbar de algum modo o espírito da viúva.

A primeira idéia de Lívia foi não aceder ao convite, a fim de não afrontar a dor de Raquel. Instaram tanto os pais da moça que lhe foi impossível recusar.

As duas moças encararam-se comovidas; a diferença era que Raquel pôde ocultar melhor o seu abalo do que a viúva. Essa vitória da donzela sobre si mesma fez redobrar a admiração da rival. Entendeu-lhe a delicada intenção, e agradeceu-lha na primeira ocasião que se lhe deparou.

— Sei tudo, acrescentou Lívia; sei da tua carta, que foi a chave com que de novo se me abriram as portas da fortuna. Eu não sei se poderia ser tão heróica como tu. Separa-nos o destino; deixa-me beijar-te as mãos.

O gesto acompanhou estas palavras: Raquel recusou ceder ao desejo da viúva.

— Seja feliz! murmurou ela.

Tais foram as últimas palavras que houve entre ambas. Quando a viúva saiu trocaram um beijo, a que não se podiam recusar, e que da parte de Raquel foi muito menos espontâneo que da outra. Lívia o sentiu e sinceramente lho perdoou.

Ao entrar no carro, com o irmão, a viúva ia desconsolada e triste. Seu coração sabia amar, e a idéia de que a sua felicidade custaria lágrimas a alguém fundamente lhe doía.

— Por que razão, pensava ela, me há de lançar a Providência esta gota amarga na taça das minhas delícias? Se eu ao menos o ignorasse... a minha felicidade não seria travada de remorsos... Felicidade? continuou ela dirigindo o pensamento a uma nova ordem de idéias; será deveras felicidade? O sonho, tantas vezes dissipado, realizar-se-á, enfim?... Há quase um ano que eu pus toda a minha existência nesta vaga probabilidade; está próximo o termo, não sei que sorte avessa me repele para longe. Não a mereço talvez, ou então ambiciono demais... Chamam-me bela; devia talvez contentar-me com ser admirada...

Neste ponto foi a moça interrompida por uma observação banal do irmão, que tinha um termômetro infalível nos pés e anunciou que havia trovoada iminente. A irmã olhou silenciosamente para ele, e admirou consigo mesma a ventura daqueles para quem as tempestades do ar importam mais que as tempestades da vida. Viana faria provavelmente a reflexão inversa se adivinhasse as preocupações da irmã.

Quando chegaram às Laranjeiras, acharam Félix na sala, conversando infantilmente com o filho de Lívia, que lhe pedia a explicação do mecanismo do relógio. Félix aplicava todos os recursos da imaginação para satisfazer a curiosidade do menino. Como ouvisse parar um carro, e logo depois rumor de passos no jardim, o médico disse ao menino que a mamãe estava aí, e aproveitou a ocasião para lhe anunciar que ia casar com ela.

Ao ouvir esta notícia, o menino subiu aos joelhos do médico, e perguntou alegremente se era verdade o que dizia.

— Sim, é verdade, repetiu Félix.

— O senhor casa com mamãe?

— Caso, já disse.

Neste momento assomou à porta a figura de Lívia. O menino desceu dos joelhos de Félix e correu a abraçar a mãe.

— É verdade que mamãe casa com o Doutor Félix? disse ele depois de receber um beijo da viúva.

— É, meu filho, respondeu esta entrando e estendendo a mão ao médico.

A presença de Félix e a alegria de Luís mudaram o curso às reflexões da moça. Cinco minutos bastaram para fazer esquecer a tristeza própria e o infortúnio da rival abatida. Raquel verteria naquela ocasião, no silêncio da sua alcova, uma lágrima de saudade? Nenhum deles pensou nisso, nem a viúva, a quem ela tão generosamente servira, nem Félix que era o objeto daquelas dores solitárias.

Félix estava mais jovial que nunca. Perdera de todo as maneiras friamente polidas; tornara-se expansivo, gárrulo, terno, quase infantil. O coração parecia-lhe cheio do presente e do futuro. Não era só a situação que explicava esta mudança; era também a volubilidade do espírito.

A viúva lia-lhe na alma, que, enfim, ressurgira, um poema de inefáveis venturas. Houve um momento em que lhe lembraram as mesmas alegrias da véspera do seu primeiro casamento, e estremeceu; mas a impressão durou pouco; o segundo marido não era, como o primeiro, uma criatura sem alma, era, sim, uma alma sem ação. Mas o amor não começava já a reanimá-la?

Mais quarenta e oito horas, e eles uniriam para sempre os seus destinos. Esse ato decisivo e grave da vida do homem, já o médico o encarava com a tranqüilidade de ânimo resoluto, sem tropeçar na responsabilidade, nem arrecear-se das conseqüências. Antolhava-se-lhe o lar doméstico como a cidade da paz e da concórdia. Não via às portas dela o lívido espectro da dúvida; flores e folhas verdes, não mortíferas, senão vivificantes, pareciam alcatifar-lhe o caminho e convidá-lo a descansar enfim da vida que tão mal vivera.

Lívia saboreava esse renascimento do amante. Estavam sós e iam dar o penúltimo beijo de despedida. O último seria o da noite seguinte. As mãos dela pousavam nos ombros de Félix, e os olhos de ambos procuravam fundir as duas almas no mesmo raio de luz.

O céu não dava razão aos receios de Viana; tinham-se dissipado as nuvens que anunciavam próxima borrasca. Não havia luar, mas a noite estava clara; e as vivíssimas estrelas que luziam no céu, algum poeta imaginoso as compararia a línguas de fogo daquele pentecostes de amor.

— Jura-me ainda uma vez que me amas! dizia ele. É doce à minha alma ouvir-te essa confissão!

— Pelo céu, por meu filho, por ti, juro que te amarei sempre! Amava-te ainda quando eras indiferente ao meu afeto, quando o negavas, quando me pagavas com o desdém. Por que te não amaria agora que és todo meu... todo, não?

— Duvidas?

— Eu não sei duvidar; recear, sim. Já te disse por que razão. Mas hoje não receio, não; sinto que sou verdadeiramente amada. Quaisquer que fossem as minhas queixas, eu tudo te perdoaria agora, que me abres a porta do Céu.

— Oh! tu és um anjo!

— Adeus!

— Adeus! Amas-me muito, não?

— Muito!

E um beijo casto, longo, quase divino, selou esta confissão tantas vezes repetida entre eles. Depois apertaram as mãos, e Félix saiu.

A rua estava deserta, o silêncio era profundo. Félix entrou em casa exaltado e alegre. Não tinha sono; recorreu aos livros, mas não lhe aproveitou o recurso, porque se os olhos corriam no papel, o espírito estava ausente, no tempo e no espaço: buscava a amada e planeava futuros.

Com a fadiga veio o sono. Félix adormeceu nos braços dos anjos.

Batiam oito horas quando ele acordou e abriu as janelas. O dia estava triste. Caía uma chuva fina e constante, que havia começado pouco antes dos primeiros albores da manhã. Que lhe importava a ele a melancolia da natureza, se tinha dentro da alma uma fonte de inefáveis alegrias?

Assentou-se à escrivaninha, e durante duas horas fez o inventário da sua vida de solteiro, rasgando com indiferença uma imensidade de cartas que lhe lembravam afeições extintas ou simples relações passageiras. Varria o templo em que devia entrar a escolhida de seu coração. Quando relia algumas dessas epístolas, — folhas caídas da estação que se fora, — desenhava-se-lhe nos lábios um sorriso irônico, mas tranqüilo, tal era a transformação de sua alma já indiferente às lutas do passado.

Às dez horas levantou-se para almoçar. Acabava de sentar-se à mesa quando lhe vieram dizer que uma pessoa o procurava.

Era o Dr. Luís Batista.