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Retratação (Gonçalves Dias)

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RETRACTAÇÃO.

Son reso, non mi difendo;
Puniseimi, se vuoi!


Perdoa as duras frases que me ouviste:
Vê que inda sangra o coração ferido,
Vê que inda luta moribundo em ancias
Entre as garras da morte.

Sim, eu devera moderar meu pranto,
Soffrear minhas iras vingativas,
Deixar que as minhas lagrimas corressem
D’entro do peito em chaga.

Sim, eu devera confranger meus labios,
Mordel-os té que o sangue espadanasse,
Afogar na garganta a ultriz sentença,
Apagal-a em meu sangue.

Sim, eu devera comprimir meu peito
Conter meu coração, que não pulsasse,
Apagado volcão, que inda fumega,
Que faz, que jorra cinzas?

Que m’importava a mim teu fingimento,
Se uma hora fui feliz quando te amava,
Se ideei breve sonho de venturas
Dormido em teu regaço;

Luz mimosa de amor que le apagaste,
Ou gota pura de crystal luzente
Filtrando os poros de uma rocha a custo,
Cahida em negro abysmo!

Devera pois meu pranto borrifar-te
Amigo e bemfasejo, como aljofar
De branco orvalho em perolas tornado
N’um calice de flor:

Não converter-se em pedras de saraiva,
Em chuva de graniso fulminante,
Que em chão de morte as petalas viçosas
Desfolhasse entre-abertas.





Feliz o doce poeta,
Cuja lyra sonorosa
Resoa como a queixosa
Trepida fonte a correr;
Que só tem palavras meigas,
Brandos ais, brandos accentos,
Cuja dôr, cujos tormentos
Sabe-os no peito esconder!

Feliz o doce poeta
Que não andou em procura
De terrena formosura,
Nem as graças lhe notou!
Que lhe não deu sua lyra,
Que lhe não deu seus cantares,
Que lhe não deu seus pesares,
Nem junto della quedou!

Antes na mente escaldada
Forma um composto divino
De algum ente peregrino
De algum dos filhos dos céos;
E ante essa imagem creada
Que vê sempre noite e dia,
Dobra as leis da phantasia,
Accurva os desejos seus.

É d’ella quando se carpe,
É d’ella quando suspira,
É d’ella quando na lyra
Entoa um canto feliz:
D’ella acordado ou dormido,
D’ella na vida ou na morte,
Tenha alegre ou triste sorte,
Seja Laura ou Beatriz!

Que talvez a doce imagem,
A scismada phantasia
Hade o poeta algum dia
Junto de Deos encontrar;
E que havendo-a produzido
Antes do mundo formado
Dê-lhe um sonhar acordado
Por um viver a sonhar!