Revista do Brasil/Nº 62/Volume 16/Lucia

NESSE entremeio, lá no palacio, a menina chegou-se para perto da boneca e disse:

— Você já reparou, Emilia, como é bem arrumado este reino?
— Já, sim, respondeu ella. Tudo aqui é uma verdadeira maravilha de ordem, economia e bom gosto. Estive no quarto das creanças e fiquei encantada! Cada uma no seu bercinho de cera, de braços cruzados, todas muito brancas, dormindo um somno gostoso!... Eu o que admiro é como as abelhas aproveitam o espaço, economisam a cera e fazem tudo de geito que a colmeia anda que é um relogio. Ah! se entre os homens fosse assim... Aqui não ha nem pobres nem ricos. Não se vê um aleijado, um cego, um tisico. Todos trabalham e vivem fartos e contentes.
— E quem governa? A rainha?
— Qual o que! A rainha o que faz é pôr ovos. Queres vêr? Vamos indagar d'aquella abelhinha que alli vem.

Emilia chamou-a:
— Faça o favor, dona Abelha... Aqui a princeza estava querendo saber quem é que governa a colmeia. E' a rainha?
— Não, respondeu a abelha. Nós não temos governo porque nós não precisamos de governo. Cada qual já nasce sabendo as obrigações e não é preciso que ninguem esteja a lembral-as. Isso de governo é bom para os homens, que são os bichos mais desastrados da terra, não acha?
Narizinho pensou um pouco e viu que era isso mesmo.
A abelhinha continuou.
— De manhã sahimos todas, cada qual para o seu lado, afim de colher o mel ou o pollen das flores. Feito isto, voltamos e depositamos o mel nos favos. Se ha algum concerto a fazer, qualquer de nós o faz, sem ser preciso ordens. Se a menina passasse uns tempos aqui, havia de gostar tanto que depois não se acostumaria mais no horrivel Reino dos Homens...
— Mas a Rainha? exclamou Lucia. Eu queria vêr a Rainha. Deve ser linda!...
A abelha disse:
— Pensa a menina que a Rainha é alguma senhora emproada como as rainhas dos homens? Nem rainha é — os homens é que a chamam assim. Para nós ella não passa de mãe. Todas somos filhinhas della e vivemos sempre a rodeal-a de commodidades e carinhos, sem lhe dar nunca o menor desgosto. Olhe, menina, vocês lá na terra falam muito em felicidade, mas fique certa de uma cousa: felicidade, só aqui...

Narizinho e Emilia ficaram tristes. Que pena não ser possivel transformarem-se em abelhas, e viverem alli, occupadas toda a vida num trabalho tão lindo como esse de colher o mel das flores.
— O que mais admiro, disse a menina á abelha, é não haver doenças aqui. Vejo todas tão fortes e sadias... Ninguem tósse, ninguem escarra, ninguem é surdo ou cego ou perneta...
— E' verdade. Não sabemos o que seja doença, graças á hygiene da nossa vida.
— Quer dizer que medico e boticario, cá na colmeia, morreriam de fome...
— Pois decerto. O doutor Caramujo andou com vontade de vir clinicar entre nós. Chegou, mesmo, a abrir consultorio. Pois durante um anno só teve um doente: um pobre besouro que pede esmola ahi na rua. Abelha, nenhuma!...
— E que remedio deu elle ao besouro?
— Deu as celebres pilulas do Dr. Serra-Pào, parece-me...
— Então o doutor Caramujo concerta perna quebrada com pilulas?
— Pois é para vêr. Cá para mim este doutor Caramujo não passa dum grande charlatão, que o que sabe é mandar umas continhas de tirar couro e cabello.
— Mas o besouro melhorou?
— Qual o que! Peiorou até. Antes de usar as pilulas, andava com uma muleta só. Depois de usal-as, passou a andar de duas...
MAS olhe, amiga abelha, quero que nos leve ao quarto da Rainha.
— Pois não. E' por aqui.
Foram-se, e depois de atravessarem varios compartimentos, entraram nos commodos reaes. Lá estava S. Majestade, no throno, conversando com varios zangãos, emproados e orgulhosos.
— Bem-vinda sejas! exclamou a Rainha. Tens gostado dos nossos dominios?
— Muito, Majestade, porque é o mais bem arrumadinho de todos os que eu conheço. Estou encantada!
— O meu reino é assim, explicou a Rainha, porque não é bem um reino, mas uma grande familia, onde a boa mãe-de-todos vive rodeada dos filhos. Já percorreu o palacio inteiro?
— Já, e gostei immensamente de tudo, menos da cara destes senhores zangãos, que me parecem muito emproados...
— E' que me estão a fazer a côrte, afim de que eu escolha um delles para marido. Todos os annos escolho um, e os outros...
— Vão casar com as outras abelhas?
A Rainha riu-se.
— Os outros são liquidados!...
— Quê? exclamou a menina, espantada.
— E' verdade. São liquidados, porque do contrario perturbariam a ordem da familia.
— Vê, Emilia? disse Narizinho á boneca. Inda é peior ser moço bonito aqui do que minhoca lá no quintal...

Nisto ouviu-se um rumor de passos e um trrlin, trrlin de esporas. Voltaram-se todos. Era Tom Mix que vinha entrando.
Tom parou, correu os olhos pela sala, e vendo a menina, dirigiu-se para ella:
— A's ordens de Narizinho Arrebitado!
— O Marquez? perguntou Lucia com ansiedade.
— O Marquez está são e salvo. E ferrado numa abobora, regalando-se...
— Muito bem! exclamou ella, contente por haver salvo a vidinha de Rabicó. Agora, senhor Mix, quero que me arranje uns

burros de carga afim de que eu possa levar mel para a vóvó. Mel e cera — a Nastacia quer muito um pelotinho de cera bem branca.
Tom Mix sahiu a arrumar a tropa e Lucia, voltando-se para a Rainha, propoz:
— Pode V. Majestade vender-me um tostão de mel?
— Dou-te o mel que quizeres, respondeu a Rainha sorrindo. Quanto ao tostão, guarda-o para ti, que aqui entre nós não tem valor o dinheiro dos homens. Entra lá naquella sala, que é o deposito de mel, e leva quanto quizeres.
Narizinho e Emilia encaminharam-se para o deposito. Muito bem arrumado tudo. Havia potinhos de cera em quantidade, todos iguaes, cheios até á bocca e tampados.
— Querem mel? perguntou logo uma abelha de avental que tomava conta do deposito.
— Queremos, sim! mel e cera.
— De que qualidade?
— Ha de muitas qualidades?
— Temos aqui mel de flores de laranjeira, mel de flores de jaboticabeira, apanhado lá no sitio de dona Benta, e temos o mel Mil-Flores, que é colhido de todas as flores do campo.
— Quero o Mil-Flores, declarou a menina. E tambem um kilinho de cera, da branca, para a tia Anastacia.
— E quem leva é aqui a sua criada? perguntou a abelha, apontando para Emilia.

A boneca abespinhou-se toda, mas Narizinho corrigiu o engano da abelha:
— Dobre a lingua! Esta senhora não é minha criada, e sim a Excellentissima Senhora Dona Condessa da Perna-Secca, futura Marqueza de Rabicó.
A abelhinha curvou-se, arrastando as azas, num cumprimento amavel, e tratou de servir o mel.
Nesse momento appareceu Tom-Mix, guiando uma tropa de seis grillos arreados com cangalhas, e com ancorotes, aos quaes foi desenganchando e collocando em cima do balcão. A abelha meleira trouxe os potinhos de mel e esvaziou-os dentro dos barriletes. Em seguida, amassando os potes vazios, fez uma pelota de cera alvissima, que entregou á menina.
— Muito bem, disse esta, logo que viu tudo prompto. Podemos agora voltar.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
