Ritmos da noite
Lá fora a noite é estrelada e quente.
Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés com intensidade. No Londres, uns imbecis doirados de popularidade fácil saudaram-me, e, nessa saudação, senti o ar episcopal das proteções baratas que os conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos.
Eu percebi o conselherismo e tive uma careta, uma grimace diabólica de ironia...
Oh! Oh! infinitamente incomparáveis os caríssimos imbecis doirados de popularidade fácil...
No meu quarto, entro, enfim, agitado, da rua, com mil idéias, com mil impressões e dúvidas e fundamente considero, tenho tão estranhos monólogos mentais, que quase que me alucinam.
A luz da vela, em torno à sombra do quarto, põe uma claridade velada, penumbrada, quase morta.
Um retrato de Daudet, pendurado à parede, parece ter para mim uma piedade no seu fino perfil de Cristo alemão.
Ah! por que será que na hora dos estrangulamentos supremos, quando a Dor nos alanceia e torna velhos, os objetos têm todos, para nós, uma feição singularmente diversa da que têm sempre - ou sinistra, ou agressiva, ou piedosa?
Por que será que nas longas noites desolação, quando uma ventania de desespero sopra por trompas de bronze do nosso peito, todas as coisas desfalecem aos nossos olhos, as perspectivas se anulam, os astros loiros se apagam e a própria luz de uma lamparina ou de uma vela projeta claridade dúbia, que antes punge, que antes apunhala e dói, do que alumina!?
O coração cerra-se-nos de uma névoa triste, e, como um solitário monge, põe-se a balbuciar não sei para que mundos distantes, orações indefinidas, kiries eternos e nostálgicos, de um nebuloso sentimentalismo, que estão no fundo de todos os seres espirituais.
São fluidos íntimos, virginais, da alma, que sobem para o desconhecido; são incensos inefáveis de que está cheio o turíbulo do nosso amor e que, nos lancinantes momentos em que se desmorona para nós alguma força nobre, alguma força edificante, partem candidamente para as regiões do Ideal, país jamais descoberto e que só o pensamento logrou conhecer...
Vão lá saber qual é a tecla sombria que vibra o nosso organismo em certas horas, qual é a corda que pulsa, quais os nervos que se agitam!
Por uma impressionabilidade indizível, por um toque no orgulho, por uma mancha no cetim branco da Arte, lá fica uma nobre cabeça doente, sob a febre das nevroses, sentindo eboluir o sangue em chama e sentindo até que o cronômetro regular do pulso alterou a marcha das vibrações...
Tudo o que nos vem às idéias são princípios de demolição, de destruição, armados das rijas couraças e das agudas lanças da sua inevitabilidade.
O mundo surge-nos logo como uma formidável floresta dos tempos primitivos e só tremendos animais de uma colossal corpulência urram e bufam sanguinolentos.
E a noite, que verte fel no espírito, arrebatando-o não sei para que inferno de agitações, não sei para que tercetos do Dante, ainda mais peadas barras de chumbo arroja sobre o florido arbusto da Crença, cujas flores luminosas já a indiferença humana calcou a pés, ou a ruidosa, jogralesca multidão dos cafés desdenhosamente cuspiu em cima.
E, nessas batalhas, batalhas vivas, acres, onde o coração está eternamente a sangrar, a sangrar; nesses rudes combates, ao mesmo tempo tão puros e fidalgos, a carne é o menos que fica ferido, os músculos são o menos que se perde, os nervos o menos que se atrofia.
O que se perde de todo é a alta penetração da Vida, do Mundo e dos Homens, para terrivelmente se adquirir uma doença amarga, aguda e dilacerante, que se constitui das frias e tortuosas análises e que se chama - Psicologia.