Rufina (IV)

Wikisource, a biblioteca livre

Se eu fosse Rufina, hoje recostado no banco do bonde, enquanto um céu muito lavado se arqueava sobre todas as coisas, e um grande desejo de amor e ventura abrolhava nas almas, que teria feito? Teria pensado naquele passageiro desconhecido que me arrancara aos braços da morte; ter-me-ia lembrado com infinito carinho daquele homem tão corajoso e tão tímido, e teria refletido que por força ele devia ter um grande coração e uma alma adolescente.

Pensaria, outrossim, que ele provavelmente era solteirão, pois os homens casados não são assim tão solícitos, ou pelo menos tão tímidos com as damas. Pensaria que ele devia viver só e melancólico, habitando uma pensão inóspita, ou uma casa de família onde ansiasse rodeado de intimidades e ternuras que não eram para ele. E tanta coisa mais!

Entretanto, quem sabe lá o que Rufina àquela hora pensaria! Pensaria nalgum namorado vulgar, suavemente grosseiro e agradavelmente chato. Ou talvez estivesse com ele, mãos nas mãos, olhos nos olhos. Esta idéia me perturba e me desalenta. Aquela mão rósea e mole ficaria tão bem na minha, ossuda e pilosa! Aquele braço torneado encaixaria tão deliciosamente ao redor do meu pescoço! E eu me sentiria tão ufano e pacificado, como um gato no borralho, ao calor do seu corpo e do seu coração! Poderíamos estar aqui juntos, ela bordando tranqüilamente um pano de mesa, uma almofada, ou lá o que lhe desse, e eu, quieto, a esta secretária, bordando as notas felizes de um memorial de venturas brandas, a interrompê-lo de quando em quando para dar um ósculo à minha gata.

Mas aquela pestinha é lá capaz de sonhar por esta mesma partitura!