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Rufina (VII)

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Encontrei no bonde um homem parecido com o Coronel Ferrão, o ex-protetor de Rufina-Augusta. Esta surgiu imediatamente ao seu lado, acomodando os vestidos, sorrindo e lançando sobre mim aquele seu olhar magnético através daqueles cílios de treva, com uma

................................................. dolcezza che intender non la può chi non la prova.

Claro que era uma aparição imaginária. Mas não me impedia que ficasse olhando para o lugar onde colocara a moça e lhe dirigisse a esta um longo e confuso improviso.

"Quem és tu? De onde vens? Que fazes? Como vives?... - Na verdade, nada disso me interessa muito. Afinal de contas, nada tenho contigo."

"O que me interessou desde logo em ti foi apenas a tua figura. Apareceu-me de repente, no meio da vulgaridade fosca das coisas, como uma obra-de-arte perdida num subterrâneo na qual batesse de repente o jorro de uma lanterna furta-fogo."

"Era-me tão indiferente saber quem fosse a pessoa que havia dentro dessa figura, ou mesmo se havia uma pessoa, como seria indiferente, diante da graça de uma vela branca no mar azul, saber de onde vinha, para onde ia, se levava a bordo uma princesa errante ou um ogre sinistro.

Contudo, não me esqueci mais de ti.

Tu me entraste na alma como um farrapo que a ventania atira por uma porta descuidosamente aberta.

A porta de minha alma profunda estava aberta naquela hora. E eu fiz como a mulher pobre que, tendo achado em sua casa um farrapo de escumilha brilhante, trazido pelo vento, não tivesse ânimo de o varrer com o cisco, o levantasse e o prendesse à parede, entre um caco de espelho e um cromo descorado.

És talvez um episódio horoscópico da minha vida, posto de reserva pelo Destino para ser lançado, certo dia na desfilada heteróclita dos casos da minha biografiazinha. privada.

Como que havia em mim um lugar vago à tua espera. Vieste, caíste no lugar justo, e aí estás, fixa e luminosa como uma pedra fina que, por maravilha do acaso, saltando, perdida, viesse cair justamente no engaste vazio de um velho anel.

Devias fatalmente aparecer-me em determinada hora, como aparece a forma exata e exteriorizada de um pensamento flutuante, longamente entrevisto, longamente resolvido no espírito.

Eras um motivo que faltava ao magro concerto da minha vida consciente e que aí havia de surgir, deliciosa serpe melódica a ondular e faiscar num relvado de ritmos obtusos.

A música interior tem hoje uma dolência menos remota, um gemido menos vago, uma ânsia interrogativa mais profunda, uma angústia menos aérea e mais humana.

Por que me apareceste? Por que me agradaste? Por que não te pude falar? Por que me foges sem o querer, e por que te evito, procurando-te?

E por que vim a conhecer da tua vida, ó coisa graciosa e fugente, apenas o aspecto sombrio e grosseiro? Por que não me reapareces, para me confiar a tua história risonha e dolorosa, a celeste e bestial realidade do teu destino, a lama e a chama da tua alma, ó gentil, ó brilhante, ó miserável borboleta do brejo?

Mas a tua vida não me interessa, na verdade. Que é que eu tenho contigo, que é que tens tu comigo?

Vimo-nos duas vezes. Será uma razão para que te deva agora ver sempre? Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira de bonde, tem encantado os meus olhos por uma vez necessariamente única - uma nuvem, um pássaro, uma hora de sol, um certo sorriso da felicidade que se perdeu por ser achado!"

Tudo isto era dito com os meus botões. Mas, de repente, o homem que se parecia com o coronel me encarou formalizado:

- "O senhor está estranhando alguma coisa na minha pessoa?"

Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber ao certo o que dizia:

- "Desculpe-me, senhor, tenha a bondade de me desculpar. Eu não o conheço, nem conheço ninguém que se lhe assemelhe, mas estava vendo se o senhor não seria uma outra pessoa."

O homem deu-se por satisfeito com a explicação.