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Santos Dumont: o vôo que mudou a história da aviação

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Revista L’Aérophile, agosto de 1903, pg. 167.

14 de julho (de 1903) – Santos passa em revista. No momento em que o desfile ia começar, a aeronave de Santos Dumont, cuja forma especial já é bem conhecida dos parisienses, aparece sobre o moinho. Todos os olhares se dirigem para ele. Ele avança rapidamente, contorna o campo de provas a uma altura de 50 metros e coloca o cabo sobre a tribuna presidencial. Ao passar, Santos Dumont saúda o presidente da República com uma salva de 21 tiros de revólver, depois vira e começa a retornar ao hangar pelo mesmo caminho, seguido pelas prolongadas aclamações da multidão.

Logo em seguida, Santos Dumont encaminhou uma carta ao Ministro da Guerra colocando à disposição do governo francês a sua flotilha composta por três aeronaves, para o caso de alguma hostilidade com outro país qualquer que não fosse das duas Américas. Em resposta recebeu, em 18 de julho, carta do General André, Ministro da Guerra, que se dizia admirado com a segurança com que evoluía o dirigível no 9 e que a demonstração havia provado as possibilidades de aplicação prática da navegação aérea, sobretudo do ponto de vista militar. Com a finalidade de se estudar com maior aprofundamento o uso de dirigíveis em operações militares, o general designava o comandante do Batalhão Aerostático do 1º Regimento de Engenharia Militar que, junto com o subchefe do Gabinete do Ministro, iriam reunir-se com oficiais superiores para manter o Ministro a par dos resultados de uma possível colaboração.

O vôo de 14 de julho foi o ponto culminante de uma série de demonstrações públicas realizadas por Santos Dumont com o seu dirigível 9. De fato, em um curto intervalo de pouco mais de dois meses o inventor brasileiro realizou diversos vôos apreciados pelo público e documentados pela imprensa francesa e mundial. Em 21 de maio, decolando às 4 horas da tarde, evoluiu sobre o campo de Bagatelle e sobre o Pólo, executando uma série de impressionantes evoluções por duas horas. Em seguida realizou diversos vôos nos dias 29 e 30 de maio. Em 10 de junho, em novo vôo sobre Bagatelle e o Pólo, foi aplaudido por grande multidão que assistia às demonstrações. No dia seguinte realizou um projeto há muito adiado: realizar uma excursão ao hipódromo de Longchamps, onde executou manobras caprichosas e pousou “docemente” no meio de uma enorme multidão. Depois levantou vôo sem a ajuda de nenhum de seus mecânicos. Em 23 de junho paralisou Paris ao voar com o seu pequeno dirigível do Bosque de Bolonha até a avenida dos Champs-Elysées e pousou defronte do número 114, local de seu domicílio. A multidão ficou maravilhada com a demonstração e Santos Dumont, fingindo enorme naturalidade, entrou em sua residência. Depois levantou vôo sob insistentes aplausos dos espectadores, e retornou ao seu hangar em Neuilly às 7:10 horas da manhã.

Mas seus vôos continuaram, sempre conseguindo aumentar o interesse em torno de seu invento. Em 24 de junho realizou dois vôos: o primeiro, um curto vôo, levou-o ao campo de Pólo, onde se realizava uma quermesse infantil. Sua chegada despertou o interesse de todas as crianças. Na noite deste mesmo dia, com um potente farol instalado à frente da quilha, fez o primeiro vôo noturno de um dirigível. Suas experiências prosseguiram em ritmo acelerado e já no dia 28 do mesmo mês ele desceu nos terrenos de Aeroclube da França, onde estavam reunidos balonistas para um concurso de balões promovido pelo Aeroclube, e demonstrou que o seu aparelho não precisou de gás para continuar viagem. No dia 26, ele levou como passageiro o pequeno Clarkson Porter e no dia 29, após três aulas, a jovem cubana Aída d’Acosta tornou-se a primeira mulher a pilotar sozinha um dirigível.[1]

Santos Dumont realizou inúmeras ascensões em balões esféricos.Seus vôos eram sempre apreciados (1898).

O vôo realizado no dia nacional francês foi o último desta série de ensaios e demonstrações que tiveram lugar em Paris no ano de 1903. Na ocasião Santos Dumont já era um respeitado inventor e aeronauta e o único no mundo capaz de ter controle no vôo com uma aeronave e sua apresentação no 14 de julho foi uma resposta a um convite realizado por militares franceses em 11 de julho, quando Santos Dumont pousou ao lado do restaurante La Cascade, no Bosque de Bolonha, para encontrar com amigos na pelouse do famoso restaurante.

A preocupação de Santos Dumont, desde o início de sua carreira de aeronauta, era a de mostrar ao público em geral, e às autoridades militares, em particular, que as aeronaves tinham um importante papel no futuro, ou como equipamentos de lazer e transporte, ou para uso em atividades bélicas. De fato, desde os primeiros ensaios realizados ainda em 1898 que ele comentava, em entrevistas a jornais, que o dirigível poderia ser um importante instrumento no futuro.

Alberto Santos Dumont nasceu em Cabangu, um sítio no Município de João Ayres, na então cidade de Palmira (hoje Santos Dumont), em Minas Gerais, em 20 de julho de 1873. Filho de um engenheiro formado pelo Conservatório de Artes e Ofícios de Paris, Henrique Dumont, e de D. Francisca de Paula Santos. Henrique Dumont, filho de franceses, havia assumido a empreitada de construção do prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil e permaneceu em Cabangu por pouco tempo. Em 1877, Santos Dumont foi batizado na Paróquia de Santa Teresa, em Valença, Rio de Janeiro, mas em 1879 a família já estava em Ribeirão Preto, onde o patriarca adquiriu a fazenda de Arindeúva e passou a dedicar-se ao plantio de café utilizando técnicas mecanizadas e construindo um ramal ferroviário para o escoamento da produção. A infância do jovem Alberto ocorreu no meio das diferentes máquinas utilizadas na maior fazenda de café do Brasil e, no período de 1883 a 1885, no colégio Culto à Ciência em Campinas, São Paulo. Familiarizou-se com as máquinas da fazenda e com os locomóveis e locomotivas Baldwin que mantinham o Ramal Dumont em atividade.

Em 1888 viu, pela primeira vez, um balão esférico durante uma feira em São Paulo, e, como todos os presentes, ficou impressionado com a demonstração. Em abril de 1891 embarcou para Paris com a família. Seu pai havia sofrido um grave acidente e viajava para a Europa a fim de buscar tratamento. Voltaram em novembro, mas logo a saúde do pai agravou-se e, em maio de 1892, a família retornou a Paris. Logo antes do embarque seu pai emancipou-o e deixou uma carta que aconselhava o filho a viver em Paris e se aprofundar nos estudos da mecânica, química e eletricidade, pois nestas áreas é que estava o futuro do mundo.

O agravamento da saúde do Dr. Henrique fez com que este voltasse para o Rio, onde veio a falecer em 30 de agosto, enquanto Alberto seguiu para a capital francesa. Sua estada na França foi curta e em 6 de dezembro retornava ao Rio para uma permanência muito curta e logo em janeiro de 1893 já voltava para a França e iniciava seu período de formação, tendo como preceptor um certo Professor Garcia, de origem espanhola, que o introduziu nas disciplinas técnicas. No ano seguinte realizou estudos na Universidade de Bristol, na Inglaterra. Em 1897 terminava o seu período de formação, sem nunca ter obtido um grau superior e retornou para uma breve estada no Brasil. Seu colega deste período, Agenor Barbosa, lembrou anos mais tarde: “Aluno pouco aplicado, ou melhor, nada estudioso para as ‘teorias’, mas de admirável talento prático e mecânico e, desde aí, revelando-se, em tudo, de gênio inventivo”[2]. Ao retornar a Paris leu o livro “Andrée - Au Pôle Nord en ballon” escrito pelos construtores, Henri Lachambre e Aléxis Machuron, sobre o balão Öern (Águia), de Salomon-Auguste Andrée, Nils Strinberg e Knud Fraenkel. Os três aeronautas suecos pretendiam atingir o Pólo Norte por ar, mas a viagem acabou em catástrofe.

Impressionado com o relato dos construtores e com os livros de Júlio Verne, sua decisão de voar tomou corpo. Imediatamente procurou os construtores de balões e realizou sua primeira ascensão em 23 de março de 1898. Este vôo ficou marcado na lembrança: “... eu levantei vôo pela primeira vez num balão esférico, como passageiro do Sr. Machuron, que justamente havia retornado de Spitzbergen. Ele havia ido para lá para inflar o balão de Andrée e deixou o impetuoso sueco pronto para a partida com os seus dois companheiros de desastre” [3].

O vôo custou-lhe 400 francos e o seu fascínio foi imediato. A sensação de calma assim que o balão subiu acompanhando as correntes de ar, aliada ao silêncio das alturas, só cortado por alguns sons peculiares, como o latido dos cães ou os sinos das igrejas tocando o Ângelus ao meio-dia, ficaram gravados em sua memória. “Eu nunca me esquecerei do genuíno prazer de minha primeira ascensão em balão”[4].

Realizou diversas outras ascensões, aprendeu a arte do vôo em balão e em junho já havia realizado cinco vôos. Os conhecimentos obtidos permitiram que ele projetasse e mandasse construir um balão para seu uso. O menor balão esférico que poderia ser construído, com apenas 113 metros cúbicos de hidrogênio. Para ter sucesso Santos Dumont introduziu diversos aperfeiçoamentos, reduzindo o peso de cada um dos seus componentes por meio do uso de novos materiais até então nunca utilizados na aerostação. Usou seda japonesa para o invólucro, reduziu o tamanho do cesto e o peso das cordas da rede e do cabo-pendente, até obter um aparelho que pesava somente 27,5 kg, sem o aeronauta. Para garantir a estabilidade instalou o cesto numa posição bem abaixo do balão. Faltava um nome: “Terminada a pesagem, Madame H..., que me deu a honra de ser a madrinha, aproximou-se do esquife aéreo e disse: ´Brasil te chamarás, serás feliz, voarás nos ares e que Deus o proteja´”[5]. Em 4 de julho fez a primeira ascensão. Depois voou várias vezes, compreendeu o seu comportamento, analisou as respostas do aparelho, e construiu um segundo balão, o Les Amériques, bem maior e capaz de realizar vôos com convidados. Mas o vôo ao sabor do vento não lhe parecia satisfatório. Era preciso poder controlar o aparelho no ar e para tanto era necessário instalar um motor eficiente.

A partir daí Santos Dumont voltou-se inteiramente para o vôo mecânico, como lembra Agenor Barbosa: “A sua idéia fixou-se-lhe na aviação desde quando os ‘motores a explosão’ começaram a ter êxito. Até aí, era um simples esportista, de proezas aéreas e depois um motorista imprudente... que corria desabaladamente, pela manhã, pelas avenidas do Bosque de Bolonha. A nossa roda era o Pedro Araújo e Fernando Chaves e depois o Antonio Prado Júnior – todos seus amigos cordiais”[6].

Já nesta época estava claro para Santos Dumont que era necessário despertar o interesse do público em torno da questão do vôo. A construção de protótipos, os testes necessários, o estudo de novos materiais e o treinamento de pessoal exigia que houvesse um real interesse por parte dos governos e da indústria. Como o vôo ainda era uma fantasia, o governo era, na visão do inventor, o único capaz de assumir os gastos para o desenvolvimento de novos inventos e para tanto a opinião pública teria um papel essencial no crescimento da aviação. Esta situação pode ser vista no caso de Júlio César Ribeiro de Souza, paraense que estudou a dirigibilidade de balões ainda na década de 1880.

Em 1881, acompanhado pelo senador Candido Mendes de Almeida, Júlio César procurou o Barão de Teffé, então diretor geral da Repartição de Hidrografia, para apresentar sua teoria revolucionária sobre o vôo. O senador fez as apresentações de praxe e introduziu o inventor:

“- O Sr. Ribeiro de Souza é o inventor d´uma teoria que há de agitar o mundo científico, e é esse invento que deseja submeter à apreciação dos doutos da Capital do Império; ora, como sou completamente alheio ao objeto de tais estudos, venho pedir-lhe que patrocine a sua descoberta no círculo matemático do Instituto Politécnico.

- Oh! Senhor senador; trata-se por ventura da quadratura do círculo ou da descoberta da pedra filosofal, para que V. Excia. se mostre alheio ao assunto?... Inquiri em tom sério, porém ao mesmo tempo narquois.

E o senador, deixando perceber nos lábios aquele sorriso fino que lhe era peculiar, sussurrou abaixando a voz:

- Nada disso: o Sr. Julio César pretende apenas ter descoberto o meio de dar direção aos balões... Eis o que me traz aqui: quer expor-lhe hoje mesmo o seu sistema...”[7]

O Barão de Teffé não quis analisar os papéis na frente do inventor e marcou nova data, mas logo a seguir entrou em seu gabinete André Rebouças, lente da Escola Politécnica, que viu o rolo de papéis deixado por Julio César, e logo quis saber do que se tratava.

“- Dou-lhe um doce se adivinhares...

E como ele se dispusesse a desenrolá-lo, acudi:

- Não abras... salvo se me prometes lê-lo esta noite; este rolo contém a resolução do magno problema da dirigibilidade dos aeróstatos, encontrada por um moço nortista.

- Quem é esse maluco?

- Não sei... Quem o trouxe aqui foi o senador Candido Mendes.

- E não disseste ao senador que tinha errado de porta? E não lhe perguntaste porque de preferência não o levara para o palácio da Praia Vermelha (casa de doidos)?

Dizendo isto Rebouças atirou longe o calhamaço de Julio César, e saiu bradando:

- Que maluco! Vir tomar o tempo a quem trabalha em vez de ir explicar como se dirige um balão aos colegas enclausurados, por muito menos, nesse populoso manicômio!”[8].

Apesar deste início pouco promissor, a memória sobre a Navegação Aérea de Julio César foi apresentada ao Instituto Politécnico e obteve parecer favorável do próprio Barão de Teffé. Graças a isso Julio César obteve recursos do Império para dar continuidade a seus estudos. Chegou, inclusive, a construir protótipos e a realizar demonstrações perante o Imperador, sem, contudo, ter obtido sucesso. Os recursos obtidos foram insuficientes para dar prosseguimento ao projeto.

A visão predominante até fins do século XIX era de que a dirigibilidade nos ares era um problema sem solução e quem se aventurasse neste campo não passava de um visionário ingênuo. Diversas tentativas de se atingir sucesso haviam sido feitas, muitas com financiamento de governos. Um exemplo foi o grande balão dirigível de Renard e Krebs, movido por um motor elétrico e que conseguiu realizar um vôo em circuito fechado. De certa maneira, provava ser possível dar direção a um balão. Mas o exército francês considerou a demonstração decepcionante e abandonou o projeto, como viria a fazer em 1896 com o aeroplano de Clément Ader. Assim, na década de 1890 o vôo era assunto restrito a duas classes: os ficcionistas, como Júlio Verne, que escreviam ou imaginavam máquinas assombrosas, ou, naturalmente, os inventores que, muitas vezes sem conhecimento de conceitos básicos da aerodinâmica, se aventuravam no projeto e construção de aparelhos não menos assombrosos. Santos Dumont iniciou sua carreira de inventor e inovador justamente neste clima. Provar para todos que os seus inventos podiam realizar as proezas prometidas era, sem sombra de dúvida, capital para o seu projeto de longo prazo. Além disso, uma vez que no meio acadêmico o vôo era ainda um problema sem solução, e em que diversos cientistas de renome, como Lord Kelvin, manifestavam-se cépticos, a demonstração pública era a única forma convincente de mostrar que um invento realizava a função anunciada.

Santos Dumont, além disso, procurou resolver o problema da dirigibilidade de balões abordando-o de maneira extremamente racional. Eliminou todos os fatores que poderiam trazer problemas e reduziu a questão à sua forma mais simples: um pequeno balão muito alongado e um motor com a menor relação peso-potência possível na época. Isto o leva a escolher logo de início o motor a explosão, recém-inventado e utilizado nos automóveis. “Eu não pensei em nenhum momento na idéia de um motor elétrico, que oferece pouco perigo, mas que, por sua vez, tem o defeito capital para o balonismo de ser o motor mais pesado conhecido, contando com o peso das baterias. Eu decidi voltar para o motor térmico, mas substituir o motor a vapor pelo motor a petróleo, que naquele tempo (1897) estava tendo grande sucesso nos automóveis franceses”[9].

Receoso da possível vibração causada pelo motor, Santos Dumont realizou um experimento simples: “Desejoso de esclarecer minhas idéias sobre a questão, agarrei o meu triciclo, tal como o havia deixado na corrida Paris-Amsterdã, e acompanhado de um homem competente, conduziu-o para um local isolado do Bosque de Bolonha. Aí, escolhi uma grande árvore de galhos baixos e, por meio de três cordas, suspendi a dois galhos o triciclo e seu motor”[10]. O resultado foi excelente, pois nenhuma vibração foi verificada.

O perigo de se juntar um motor de combustão interna com um balão cheio de gás altamente inflamável foi resolvido afastando-se ao máximo um do outro. A forma do invólucro era mantida exclusivamente pela pressão interna do gás. Para garantir que a pressão interna não se alterasse durante o vôo, Santos Dumont instalou um pequeno balão de ar ligado a uma bomba acionada pelo motor de 3,5 CV. Válvulas evitavam o aumento da pressão, que poderia levar ao rompimento do invólucro de seda envernizada. O seu primeiro dirigível, pronto para voar em setembro de 1898, era a concretização de suas idéias. Em sua primeira tentativa seguiu os conselhos de outros aeronautas presentes e posicionou mal o aparelho. Ao levantar vôo o dirigível foi lançado sobre a copa das árvores e o vôo foi abortado.

Em apenas dois dias, em 20 de setembro, realizou o primeiro vôo dirigido: atingiu cerca de 400 metros de altitude e manobrou com sucesso o seu aparelho, mas, ao descer, as válvulas que mantinham a pressão interna falharam e o invólucro dobrou-se ao meio e a queda foi inevitável. Com uma presença de espírito que irá ser uma característica de toda a sua carreira como aeronauta, Santos Dumont pediu a umas crianças que brincavam para que elas puxassem o cabo-pendente, forçando que o dirigível se deslocasse contra o vento. Esta ação evitou a queda e Santos Dumont, com o seu senso de humor também característico de sua personalidade, descreveu o acidente de forma breve: “Subi em balão e desci em papagaio”[11].

Embora sua primeira experiência com um dirigível tenha acabado em desastre, ficou claro para ele e para todos os que assistiam que o problema da dirigibilidade de balões havia sido solucionado. Daí para frente seria necessário, naturalmente, trabalhar no aperfeiçoamento de novos aparelhos, mas a utilização do motor a explosão, já tentada sem êxito por alguns inventores, associada a uma forma alongada do balão mostrou-se adequada. Além disso, Santos Dumont reduziu o peso dos diversos componentes da aeronave com a utilização de novos materiais e novas soluções. O uso da seda reduziu muito o peso do invólucro. A eliminação da tradicional rede que envolvia o balão e sustentava o cesto foi outro fator importante. Nos dirigíveis de Santos Dumont a estrutura era suspensa e presa numa haste diretamente costurada no balão.

Um aspecto importante está relacionado com a preocupação de Santos Dumont em realizar os seus experimentos em locais públicos e anunciados com antecedência. Assim, sucessos e insucessos eram testemunhados por muitas pessoas e seus vôos eram notícia na França e no mundo.

No início de 1899 estava pronto o seu segundo dirigível, quase uma cópia do anterior. Seu vôo, em 11 de maio, acabou em desastre causado pela mesma razão: a válvula para manter a pressão interna falhou e o aparelho dobrou-se ao meio, caindo sobre a copa das árvores do Parque de Aclimação. Para evitar o risco de novo dobramento do invólucro ele construiu um balão muito mais oblongo. Para evitar o risco de uma explosão causada pela presença de fagulhas que saíam do cano de descarga e do hidrogênio que podia escapar do balão, Santos Dumont utilizou o gás de iluminação, bem mais pesado, mas muito menos inflamável. Para compensar a perda de força ascensional causada pela mudança de gás, aumentou o volume para 500 metros cúbicos. Em 13 de novembro levantou vôo e fez excelentes evoluções, mostrando que o problema de dirigir uma aeronave estava, de fato, resolvido. Depois realizou diversos vôos sobre Paris.

No ano anterior, em 1898, havia sido fundado o Aeroclube da França, entidade que desempenhou um importante papel na história da aviação, pois reuniu inventores, industriais e esportistas em torno das questões relacionadas com o vôo. Santos Dumont fazia parte da entidade e um dos problemas mais sérios era o dos critérios que deveriam ser adotados para considerar que um aparelho era eficiente. Muitos inventores anunciavam terem realizado grandes feitos, mas não foram capazes de reproduzir suas demonstrações. Era preciso, para se avançar no desenvolvimento da aviação, saber avaliar com absoluta imparcialidade um determinado resultado. Nesta direção, um dos pontos essenciais estava relacionado com a realização da prova em si. Não se considerou válida uma demonstração feita sem um aviso prévio. O acaso poderia ajudar. Um outro aspecto indispensável, na visão dos membros do Aeroclube, era o fato da prova ter que ser realizada na presença de uma comissão idônea que analisaria o resultado e elaboraria uma ata descrevendo em detalhe o que foi observado. Finalmente, os membros do Aeroclube entenderam que a prova deveria ser proposta pela entidade, ou por ela endossada. Estes pontos foram adotados pela entidade francesa e aceitos mundialmente.

Em 1899, quando Santos Dumont estava começando a realizar seus vôos dirigidos em balão, e os vôos planados de Lilienthal já estavam sendo reproduzidos por outros inventores, o magnata do petróleo Deutsch de la Meurthe propôs um grande desafio para a aerostação: realizar um vôo em circuito fechado, de cerca de 11km de percurso, saindo do parque de Saint Cloud e contornando a Torre Eiffel. O vôo deveria ter a duração máxima de 30 minutos, o que era, para época, um desafio extremamente difícil. Poucos poderiam se propor a entrar no concurso, embora o prêmio de 100 mil francos fosse um forte atrativo.

Naqueles anos finais do século XIX somente Santos Dumont tinha um aparelho capaz de realizar tal proeza, mas o seu dirigível 3 não era suficientemente veloz para garantir sucesso. Em 1900, Santos Dumont apresentou um dirigível, bem mais elaborado, o seu nº 4, com um motor mais potente e uma cubagem bem maior. Retornou ao hidrogênio para garantir maior força ascensional, e adotou uma forma mais aerodinâmica. Nessa ocasião, Paris comemorava o início do século XX e estava ocorrendo o Congresso Aeronáutico Internacional junto com a Feira Internacional. As maravilhas da técnica estavam sendo apresentadas para um grande público e o interesse pela aviação era grande. Poucos acreditavam que um dia seria possível o homem ter controle sobre o vôo. Onde se apoiar? Como evitar que o vento e as traiçoeiras correntes não desviassem um aparelho voador? Santos Dumont demonstrou o seu novo dirigível para membros da Comissão, entre eles Langley, secretário geral do Smithsonian Institution e que estava desenvolvendo o seu aeroplano Aerodrome com financiamento do governo dos Estados Unidos. O dirigível 4 evoluiu e causou uma excelente impressão, e estava cada vez mais claro que o prêmio Deutsch seria ganho pelo inventor brasileiro, talvez ainda naquele ano, exceto se algum imprevisto surgisse pela frente. E o imprevisto apareceu sem demora: o inventor caiu doente. Seguiu para Nice, mas não parou as suas atividades.

“Como uma idéia traz outra, imaginei algo de inteiramente novo em aeronáutica. Por que não utilizar as cordas de piano também para todas as suspensões do dirigível, em lugar das cordas e cabos utilizados até aí pelos aeróstatos?”[12]. Com isso reduziu o peso e o arrasto, pois “constatou-se que as cordas de suspensão opõem ao ar quase tanta resistência quanto o próprio balão”[13]. Além disso, projetou e construiu uma nova quilha muito leve e resistente o que o levou a pensar em um novo balão, com uma nova instalação para motor, novo sistema direcional e novas soluções para a distribuição dos contrapesos. Assim nasceu o seu no 5, um dirigível idealizado para ganhar o prêmio Deutsch. Pronto, logo foi apresentado ao público. Fez os vôos de teste, evoluiu com segurança e, mais do que nunca, a opinião pública não só acreditou que Santos Dumont estava pronto para ganhar o grande prêmio, como na dirigibilidade de balões estava resolvida. Seus vôos, de fato, impressionavam. Em 12 de julho de 1901 realizou um grande vôo, permanecendo muito tempo no ar.

Em 13 de julho, seguindo as normas do Aeroclube, tentou o prêmio, com a comissão de especialistas devidamente a postos. Uma pane interrompeu o vôo, e em 8 de agosto tentou novamente. Seu excepcional vôo estava sendo observado por toda Paris. O balão avançou firme na direção da torre, contornou-a sem hesitação, e iniciou o vôo de volta ao Campo de Aerostação. Ultrapassou o rio Sena, e quando passava sobre o Trocadero, nova pane. Mas agora um problema mais sério que o anterior. O balão perdeu gás e sem pressão, perdeu a forma. A hélice cortou os cabos e o conjunto explodiu. Santos Dumont, a quilha, o cesto e o que restava do balão despencaram de uma altura de uns 32m e se engancharam na parede lateral do grande prédio do Hotel Trocadero. Os relógios marcavam 6:30 horas da manhã. Paris viu e ouviu o acidente e ficou sem fôlego. Os bombeiros do Posto de Passy saíram para o resgate e encontraram o inventor preso a 15m de altura junto aos destroços do balão, comandando o seu próprio salvamento. Assim que se viu em terra, ao verificar que havia perdido o dirigível 5, fez questão de testar o motor na frente de todos os presentes. Demonstrava, assim que o sistema propulsor era confiável, mesmo após tão grave queda. E no mesmo dia anunciou que o seu próximo dirigível estaria sendo construído já naquela tarde. De fato, em somente 22 dias, o nº 6 estava pronto e iniciava seus testes. Em agradecimento aos bombeiros, Santos Dumont dirigiu uma carta ao comandante do regimento de Paris.

Sua popularidade só crescia. Havia divulgado uma nota ao povo de Paris que desejava concorrer ao prêmio Deutsch para mostrar que era possível se dirigir com segurança um balão, e não pelo dinheiro, pois este ele dividiria, caso viesse a ser o vencedor, em duas partes iguais: uma para seus mecânicos, homens dedicados, fiéis e competentes, e a outra para os operários que por razões diversas haviam empenhado suas ferramentas de trabalho. Além disso, considerando o desafio proposto por Deutsch muito difícil, Santos Dumont havia proposto um prêmio para aquele que conseguisse fazer um vôo idêntico ao do grande prêmio, mas sem limite para o tempo de vôo. Com atitudes como estas, além de sua participação na vida social da capital francesa, a figura de Santos Dumont ganhava terreno. Era, sem dúvida, uma pessoa conhecida, respeitada e querida. Todos apreciavam as suas maneiras e seu senso de humor: “Sou Santos, peso 51kg sem meus sapatos, mas com minhas luvas”[14].

Já em setembro iniciou os vôos de teste com o seu sexto dirigível, quase uma cópia do anterior. Em 19 de setembro foi pego de surpresa: “Encarei sempre com muita filosofia os acidentes deste gênero: vejo neles uma espécie de garantia contra outros mais terríveis. Se tivesse um conselho a dar aos que praticam o dirigível, diria: ‘Permanecei perto da terra’. O lugar de uma aeronave não é nas grandes altitudes. Mais vale fisgar-se nos galhos das árvores, como fiz no Bosque de Bolonha, que se expor aos perigos das regiões elevadas, sem a menor vantagem prática”[15].

Em 19 de outubro de 1901, o dia amanhecera ruim, mas mesmo assim Santos Dumont saiu de Saint Cloud, às 14:42 horas, na presença de membros da Comissão do Aeroclube. Tentaria conquistar o prêmio Deutsch. Ao circundar a Torre Eiffel, nove minutos após a largada, foi ovacionado pela multidão que assistia. Mas o tempo estava ruim e a volta foi dificultada pelo vento.

Com dificuldade Santos Dumont conseguiu dominar a aeronave. Na chegada seus mecânicos não conseguiram parar o dirigível e ele se atrasou por menos de um minuto. Os membros do Aeroclube, Deutsch de La Meurthe, Marques de Dion, Wilfred de Fonvielle, Georges Besançon e Emmanuel Aimé, estavam alertas e nada perdiam, mas suas opiniões divergiam: alguns defendiam que Santos Dumont havia completado o percurso em menos de 30 minutos. Outros diziam que o fato do dirigível não estar em repouso no tempo previsto não dava direito ao prêmio. Discutia-se sobre 30 segundos! Enquanto a comissão analisava e confabulava, a multidão aplaudia. Alberto reafirmou simplesmente que não queria o dinheiro, como já havia anunciado há cerca de um mês antes de seu vôo: “Já abri mão, por antecipação, da quantia de 100 mil francos: se eu ganhar, será repartida metade para os pobres da cidade de Paris e metade entre os homens desinteressados que me testemunharam um devotamento que lhes causou, às vezes, sofrimentos. Espero que, no interesse dos pobres de Paris e dos homens que me ajudaram, a Comissão de Aerostação do Aeroclube revogue o seu voto e me deixe algumas possibilidades de ganhar, para eles, os 100 mil francos”[16].

Com essa atitude ele conseguiu o apoio irrestrito da opinião pública e, com o mês de outubro terminando, Santos Dumont já era considerado o vencedor. “A 31 de outubro de 1901, às 6 horas da tarde, o canhão da Torre Eiffel anunciou aos parisienses o fim do Grande Prêmio de 100 mil francos do Aeroclube, proposto a 9 de abril de 1900, pelo Sr. Henri Deutsch de La Meurthe”[17].

Somente em 4 de novembro, numa votação em que nove membros votaram contra e 15 a favor da concessão, o Aeroclube oficializou a decisão. O nome de Santos Dumont passou a ser sinônimo de perseverança. Em quatro anos havia construído seis balões dirigíveis, além de dois esféricos. Havia contribuído com várias inovações, e havia provado ser possível voar de forma controlada. Além disso, com as suas demonstrações públicas, ele tirou a aerostação do campo restrito dos inventores. Ditou moda, e as pessoas sonhavam em um dia poder voar como ele.

Diante das críticas de alguns colegas, Santos Dumont foi breve na resposta: “Se era tão fácil fazer o que fiz, por que me deixastes fazê-lo?”[18]. A indecisão do Aeroclube em conceder o prêmio a ele não o agradou. Na mesma tarde que foi dada a divulgação oficial do resultado, Santos Dumont encaminhou uma carta ao Aeroclube apresentando seu pedido de demissão em caráter irrevogável.

Na primeira década do século XX Sadntos Dumont já era uma figura de destaque na sociedade francesa e já despertava o interesse mundial (1901).

Agora, o único no mundo a conseguir controlar o vôo, Santos Dumont dedicou-se a realizar demonstrações. Após breve visita à Inglaterra, que queria vê-lo, aceitou o convite de Mônaco e para lá se dirigiu com o seu aparelho vencedor. Queria testá-lo sobre a água. Um hangar especialmente construído para abrigar o balão foi inaugurado com grande pompa. Os vôos sobre a água mostraram que a aeronave se comportava bem, conseguindo atingir a velocidade de 42 km/h, e Santos Dumont viu a possibilidade de utilização dos dirigíveis na guerra, chamando a atenção dos militares.

“Não podemos, entretanto, dissimular por mais tempo que se aproxima a hora em que os balões, transformados em engenhos militares, exercerão, no resultado das batalhas, uma grande, senão decisiva influência... Pelo que diz respeito ao seu emprego na guerra terrestre, a aeronave deverá, sem dúvida, elevar-se a alturas consideráveis, para escapar ao fogo inimigo; como auxiliar no mar, ela desempenhará o papel de batedor em condições tais que a extremidade do seu cabo-pendente se arraste sobre a água e que, não obstante, esteja a uma altitude suficientemente elevada para poder esquadrinhar um vasto horizonte”[19].

“Dessa forma, caso verdadeiramente curioso, a aeronave do século XX pode tornar-se, na sua estréia, o grande inimigo desta outra maravilha do século XX, o submarino! Nada impede, enfim, à aeronave, de destruir dirigindo-lhe longos projéteis carregados de dinamite e capazes de penetrarem na água a uma profundidade que a artilharia não pode atingir de bordo de um couraçado”[20].

Mas, após cinco demonstrações bem-sucedidas, uma queda nas águas da baía de Mônaco, em 14 de fevereiro de 1902, interrompeu seus planos.

O ano de 1902 foi marcado por grandes perdas. Seu amigo, inventor e político brasileiro Augusto Severo, morreu num acidente com o dirigível Pax, em 12 de maio. Augusto Severo era um apaixonado pelo vôo. No Brasil, havia construído um grande dirigível, o Bartolomeu de Gusmão, que não chegou a ser testado. Foi destruído por uma tempestade às vésperas dos primeiros testes programados. Quando do prêmio Deutsch, Severo propôs um prêmio de igual valor pelo reconhecimento dos trabalhos de Santos Dumont. Em 1902 estava em Paris com um grande dirigível que apresentava diversas inovações no campo da aerostação. Seu vôo, entretanto, terminou em tragédia. Ele e seu mecânico morreram quando o dirigível, atingindo uma altitude de cerca de 400m, explodiu.

No mesmo ano, Santos Dumont recebeu a notícia do suicídio de sua mãe, ocorrido no dia 22 de junho na cidade do Porto, em Portugal. Mas apesar destas notícias ele não podia interromper seus inúmeros compromissos. Respeitado mundialmente, viajou para divulgar os seus inventos. Esteve na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde teve um encontro com o presidente americano, Theodore Roosevelt, e com o grande inventor Thomas Edson. Discutiu a possibilidade de se instituir novos prêmios com a finalidade de incentivar outros inventores e a importância de governos apoiarem o desenvolvimento da aeronáutica. Mas não interrompeu sua carreira de inventor, pois queria mostrar que os dirigíveis poderiam ter muitas aplicações práticas. Após a perda do seu nº 6, construiu uma flotilha de aeronaves, cada uma com uma finalidade. Antes, porém, precisou procurar um novo local para instalar seu novo hangar, e o encontrou, não sem problemas, em Neuilly-Saint-James. Passou, então, a construir sua grande flotilha de aeronaves. O seu nº 7, uma aeronave de corrida, especialmente projetada para a competição. O seu nº 8, uma cópia da aeronave vencedora do prêmio Deutsch, foi vendida ao Sr. Boyce, vice-presidente do Aeroclube da América, e teve uma vida breve. Em seu primeiro vôo, realizado próximo a Nova Iorque, o dirigível caiu e se perdeu. O seu nº 10 era um grande dirigível para transportar 12 pessoas: um dirigível-ônibus. O seu nº 9 foi a grande vedete de 1903, realizando os vôos de demonstração que culminaram com a revista às tropas francesas.

Havia, num breve espaço de um ano, provado que a dirigibilidade de balões estava resolvida. A utilização do motor a explosão era possível em balões de hidrogênio e era, sem dúvida, a melhor solução. Os problemas com a estabilidade da aeronave estavam perfeitamente resolvidos. E neste quadro anunciou a sua partida para o Brasil, noticiada nas revistas especializadas:

“Santos Dumont parte para o Brasil em 20 de agosto. Ele passará algum tempo com sua família e com seus amigos que não os vêem há seis anos e cuidará de restabelecer sua saúde, um pouco debilitada por seus trabalhos excessivos. Ele deixou ordens formais relativamente ao seu nº 10 e de seu retorno à França, em cinco semanas, ele encontrará o aeróstato cheio de hidrogênio e pronto para ganhar a atmosfera”[21].

Chegou ao Rio de Janeiro no dia 7 de setembro, eclipsando as comemorações do Dia da Independência. Desembarcou na Galeota Imperial e participou de inúmeras comemorações. Às vésperas de seu retorno à França, visitou o galpão da Estrada de Inhaúma em que José do Patrocínio estava construindo o dirigível Santa Cruz, projeto nunca terminado por falta de recursos.

No início de 1904 chegou à França notícias dos Estados Unidos. Num breve telegrama os irmãos Orville e Wilbur Wright, que já vinham trabalhando na construção de planadores e realizando vôos bem-sucedidos, comunicavam à família terem conseguido voar num aeroplano motorizado. Um simples telegrama que pouco informava:

“Sucesso em quatro vôos quinta-feira manhã # todos contra vento de 21 milhas iniciados no nível do chão com potência de motor somente # velocidade média através do ar 31 milhas o maior 57 segundos informe imprensa”[22].

Os franceses logo se dividiram. O telegrama, por si, nada provava. O vôo, caso tivesse sido realizado, não satisfazia nenhum dos critérios aceitos até então. Não tinha sido uma demonstração pública, anunciada com antecedência. As poucas testemunhas presentes, pessoal que ajudou a colocar a máquina sobre um trilho, não eram especialistas e sequer haviam escrito uma ata detalhada do vôo. Por outro lado, Orville e Wilbur vinham desde algum tempo realizando grandes vôos planados e eram respeitados inventores. Haviam dado uma contribuição que na época foi considerada da maior importância, mas que, depois de se ter compreendido a física do vôo, foi um obstáculo difícil de ser ultrapassado. Em 1896, Otto Lilienthal havia morrido quando o seu planador entrou em estol, uma situação indesejável para qualquer piloto. O planador aumentou demais o ângulo de incidência das asas e estas perderam repentinamente a sustentação, fazendo com que aparelho se projetasse de bico de uma altura de 15 metros. O acidente de Lilienthal foi um alerta para todos aqueles que se dedicavam ao vôo planado e, entre eles, os irmãos Wright. Para evitar o estol, os dois americanos inverteram a posição do leme: colocaram-no na frente da asa e com isso o estol foi amortecido. O que não foi percebido por nenhum dos inventores é que esta configuração é instável. Se, por um lado, evita o estol, por outro lado quebra a possibilidade de se realizar um vôo estável. O piloto tem que, a todo o momento, controlar o aparelho, tornando o vôo uma arte para poucos iniciados. Estes aspectos não foram imediatamente percebidos e, de uma forma ou de outra, todos os inventores começaram a adotar a configuração proposta pelos irmãos Wright e, com isso, a construir modelos que ofereciam grande dificuldade para manter o vôo.

Santos Dumont mantinha-se, aparentemente, distante das discussões em torno dos aparelhos mais pesados que o ar. Já o Aeroclube não: seus membros discutiam fervorosamente como poderia ser um aeroplano. Enquanto isso outros inventores tentavam resolver os problemas dos grandes dirigíveis, que prometiam fornecer uma solução mais promissora para o transporte de grandes cargas do que os pequenos modelos de Santos Dumont.

O inventor brasileiro, porém, estava em plena atividade. Em 1904 foi nomeado Cavalheiro da Legião de Honra. Era o principal nome da aviação, participava de reuniões e realizava viagens. Havia sido convidado para participar de uma competição de dirigíveis em Saint Louis, nos Estados Unidos, e sua decepção foi enorme. O seu aparelho nº 7 foi destruído na noite de 27 para 28 de junho de 1904, e nunca se soube a autoria da ação criminosa. Ainda neste ano publicou o livro autobiográfico “Dans L’Air”, logo traduzido para o inglês com o título “My Airships”. Além disso, publicou artigos e deu entrevistas sobre o futuro da navegação aérea. Mas as suas atividades no campo da aeronáutica não estavam suspensas. Seguia inovando e construiu um dirigível, o de nº 13, em que acoplava um balão de ar quente a um de hidrogênio. Sua intenção era permitir longos vôos. Mas o dirigível foi destruído antes de levantar vôo. Interessado em ter uma aeronave veloz, construiu o nº 14, com um balão muito alongado, semelhante a uma lança, e chamou a atenção dos demais inventores: “Este novo dirigível é, para falar a linguagem esportiva, um racer, quer dizer, um balão de corrida onde a mais importante qualidade é a velocidade. Todas as características de sua carenagem e de seus órgãos demonstram a firme vontade de lhe dar velocidade”[23]. Logo substituiu o balão por um mais bojudo e com o seu dirigível 14 realizou impressionantes demonstrações na praia de Trouville, na costa mediterrânea.

As discussões em torno dos aparelhos mais pesados que o ar estavam dominando o cenário aeronáutico e Santos Dumont seguia com interesse. Ernst Archdeacon um dos maiores incentivadores do vôo, havia instituído um prêmio para aquele que conseguisse realizar um vôo de mais de 25m saindo de terreno plano, sem o auxílio do vento, e carregando todos os elementos necessários. Animados pelos futuros progressos que prometiam surgir em breve, o mesmo Archdeacon e Deutsch de La Meurte propunham um grande prêmio para o primeiro vôo de 1km em circuito fechado. O Aeroclube, por sua vez, instituiu um prêmio para um vôo mais longo, de 100m, realizado nas mesmas condições. As notícias dos Estados Unidos continuavam chegando à França. Os irmãos Wright diziam ter voado alguns quilômetros, realizado viragens, e permanecendo muito tempo no ar, mas não só não apresentaram o seu modelo para nenhuma comissão, como suspenderam os testes em 1905. Archdeacon resumiu a opinião dos colegas: “Eu tomo a liberdade de lembrar que existe na França um modesto prêmio de 50 mil francos que tem o nome de ‘Prêmio Deutsch-Archdeacon’ que será atribuído ao primeiro experimentador que fizer voar um aeroplano em circuito fechado, não 39km, mas somente um. Não os deixará fatigados fazer uma breve visita à França para simplesmente ‘embolsar’ este pequeno prêmio”[24].

Em janeiro de 1906 Santos Dumont apresentou o esboço de dois projetos, os de nos 11 e 12: um helicóptero e um avião. Neste último projeto ficava clara a sua influência. A configuração proposta é quase uma cópia do primeiro modelo de planador que voou com sucesso. De fato, em 1804, Lorde George Cayley havia divulgado o desenho de um pequeno planador, de pouco mais de 1m de envergadura, que havia voado com estabilidade. Santos Dumont recorreu a este desenho para idealizar um avião movido por duas hélices. As opiniões dos especialistas logo começaram a aparecer: “O senhor Archedeacon, com sua crítica, faz lembrar que o helicóptero é muito interessante em si, mas não poderá ser comparado ao aeroplano sob o ponto de vista da velocidade possível de translação. Ele aconselha a Santos Dumont a se lançar na via do aeroplano, onde suas raras qualidades o conduzirão mais facilmente ao sucesso”[25].

Mas Santos Dumont abandonou a construção do helicóptero no meio do caminho, e, aparentemente, sequer iniciou a construção do aeroplano. Em julho inscreveu-se para disputar os dois prêmios de vôo em linha reta. Apresentava-se com um aparelho totalmente novo, que foi testado junto com o balão do dirigível 14. A este aparelho ele deu o nome de 14 Bis, uma espécie de anexo do nº 14. Testou o aeroplano durante algum tempo, inicialmente sustentado pelo balão, depois suspenso em cabos de aço. Os testes foram mostrando os pontos críticos e diversas alterações foram realizadas. Em 13 de setembro esboçou um salto de poucos metros, o suficiente para despertar a atenção de todos. A revista francesa “La Nature” não poupou elogios: “O dia de 13 de setembro de 1906 será doravante histórico, pois, pela primeira vez, um homem elevou-se no ar por seus próprios meios, Santos Dumont, que, sem abandonar seus trabalhos nos ‘mais leves que o ar’, fez também importantes estudos sobre o ‘o mais pesado que o ar’ e foi ele quem conseguiu ‘voar’ neste dia memorável, diante de um público numeroso... ele que se elevou no espaço, sem balão, e esta é uma vitória importante para os partidários do ‘mais pesado que o ar’”[26].

Em 12 de novembro de 1906, Santos Dumont realizou o primeiro vôo homologado da história da aviação com o seu 14 Bis. Ao fundo vê-se o aparelho Blériot-Voisin que tentou, sem êxito, voar no mesmo dia.

E em 30 de setembro Santos Dumont, numa inesperada atitude, suspendeu os testes com o 14 Bis para concorrer à Taça Gordon-Bennet de balões com o seu Deux Amériques, um balão esférico com hélices horizontais que faziam o papel de lastro. Abandonou a prova no meio, devido a um acidente, mas ainda assim não se saiu mal: conseguiu percorrer 134km, num vôo de 6 horas 20 minutos de duração.

Após a prova de balões voltou-se para o 14 Bis e em 23 de outubro, decolando em Bagatelle, atingiu a marca de 60m e ganhou o prêmio Archdeacon: “É, portanto, a vitória completa do ‘mais pesado que o ar’; Santos Dumont demonstrou de forma indiscutível que é possível se elevar do solo por seus próprios meios e se manter no ar”, afirmou a revista “La Nature”[27].

Mas seguia, sem descanso, e em 12 de novembro, também no campo de Bagatelle, ganhou o prêmio Aeroclube da França, ao atingir 220m. A ata redigida pelos membros da Comissão não deixa dúvidas sobre o momento histórico: “A quarta tentativa foi feita no sentido inverso das três anteriores. O aviador saiu contra o vento. A partida deu-se às 4:45h, com o dia já terminado. O aparelho, favorecido pelo vento de proa e também por uma leve inclinação, está quase que imediatamente em vôo. Desfila apaixonadamente, surpreende os espectadores mais distantes que não se acomodaram a tempo. Para evitar a multidão, Santos Dumont aumenta a incidência e ultrapassa 6m de altura. Mas no mesmo instante a velocidade diminui. Será que o valente experimentador teve um instante de hesitação? O aparelho parecia menos equilibrado, certamente: ele esboça uma volta para a direita. Santos, sempre admirável por seu sangue-frio e por sua agilidade, corta o motor e volta ao solo. Mas a asa direita toca o chão antes das rodas e sofre pequenas avarias. Felizmente Santos está ileso e é acolhido impetuosamente pela assistência entusiasmada que o ovaciona freneticamente, enquanto Jacques Fauré carrega em triunfo sobre seus robustos ombros o herói desta admirável proeza”[28].

Este vôo é o marco inaugural da aeronáutica: trata-se do primeiro vôo homologado da história da aviação e os primeiros recordes reconhecidos pela Federação Aeronáutica Internacional: distância, 220m, duração; 21s 1/5; e altitude, 6 metros.

Apesar da impressionante demonstração, Santos Dumont continuou avançando. Ele havia adotado a configuração proposta pelos irmãos Wright e colocou o leme na frente do 14 Bis. Desde o início dos testes sentiu tratar-se de uma solução ruim, embora parecesse ter algum sentido. “Era o mesmo que tentar arremessar uma flecha com a cauda para a frente...”[29]

Raciocinava: para decolar é preciso fazer uma força para cima com o intuito de abandonar o contato com o solo. O leme na frente daria, naturalmente, esta força. Mas a decolagem ocorre não pela ação do leme, e sim pelo aumento de sustentação das asas. A colocação do leme na parte posterior permite que, mediante uma força para baixo, atuando na cauda do aparelho, faça com que o conjunto gire e aumente o ângulo de incidência das asas. Como vários inventores já haviam demonstrado, o aumento do ângulo de incidência leva a um significativo aumento da sustentação, fazendo com que o aparelho levante vôo. Sem ter abandonado o 14 Bis, construiu um novo aparelho, este com o leme na parte posterior. Como comentou o seu amigo e inventor, o Coronel Ferber: “Sob o ponto de vista da estabilidade, o senhor Santos Dumont fez uma volta completa, colocando o que estava atrás na frente e vice-versa. Isto é lógico, ele se conforma à natureza e desta vez será estável no vento”[30]. Testou o novo aparelho em março de 1907, mas não conseguiu decolar. Imediatamente voltou-se para o 14 Bis e em 4 de abril, após realizar um curto vôo de pouco mais de 50m, o avião caiu e se despedaçou. Abandonou-o por completo.

Sem interrupção construiu o seu projeto de nº 16, um aparelho mais pesado que o ar e que se utilizava de um balão de hidrogênio para reduzir o peso. Novo insucesso. Voltou-se para o 15 e adaptou um motor de 100CV, pois achava que o insucesso anterior era devido à falta de potência. Novo insucesso. Parecia não estar entendendo o que era o vôo e continuava tentando resolver o problema, numa atividade febril e sem descanso. Além de estar no campo de provas e trabalhando em novas idéias, Santos Dumont participava de reuniões com colegas e numa destas ocasiões aceitou o desafio proposto pelo Sr. Charron:

Santos Dumont, com um dos seus mecânicos, testa o motor de seu invento de número 16: um híbrido, misto de balão com avião, mais pesado que o ar, que não foi bem sucedido (1907).

“Durante um jantar, doravante histórico, entre esportistas da mais alta linhagem, os convivas acharam agradável assumir mutuamente desafios muito sérios e encorajadores. Em 24 de julho deste ano (1906), o senhor Charron, talvez um pouco vítima do não menos histórico ‘calor comunicativo’ do banquete que oferecia aos amigos, comprometeu-se da seguinte maneira:... 2) O senhor F. Charron apostou 50 mil francos contra 5 mil de Santos Dumont que este último não poderia fazer 100km/h sobre a água antes de 1º de abril de 1908. Modo de cronometragem e de arbitragem como o precedente. 3) O senhor F. Charron e o marquês de Dion apostaram 5 mil francos contra os senhores Archdeacon e Santos Dumont que eles não verão antes de 10 de fevereiro de 1908 um aeroplano voar a distância de 500m sem tocar a terra”[31].

Santos Dumont imediatamente projetou e construiu um deslizador aquático, espécie de lancha de corridas com uma hélice de avião acionada por um motor de 100CV. Mas, como se estivesse ainda preso à idéia do vôo, submerso encontravam-se as asas e o leme de profundidade. Trata-se, sem dúvida, de uma abordagem genial, em que ele substituiu o ar pela água e pôde concluir o papel das diferentes partes de um avião. O seu projeto 18 foi pouco testado, mas parece ter fornecido o elemento que faltava para ele entender a configuração adequada para um avião.

Em pouco tempo apresentou o seu nº 19, que ficou conhecido como Demoiselle ou Libélula. Um diminuto avião, entelado em seda, com uma rudimentar fuselagem de bambu e um motor de dois cilindros opostos, projeto de Santos Dumont. O primeiro monoplano bem sucedido da história. Voou em novembro de 1907.

Em um espaço de cerca de um ano Santos Dumont havia mudado por completo a concepção do avião. Sua contribuição foi imediatamente seguida por todos os outros inventores que, nesta época, já começavam a realizar pequenos vôos.

No ano seguinte, Santos Dumont parecia ter se afastado do campo de provas. Em 13 de janeiro de 1908, seu amigo Henri Farman ganhou o prêmio Deutsch-Archdeacon de 50 mil francos ao conseguir realizar o primeiro vôo homologado de 1km em circuito fechado. Em agosto, os irmãos Wright começaram a realizar demonstrações públicas: Wilbur na França e Orville nos Estados Unidos. Só então divulgaram a fotografia do vôo de 1903. Seus vôos foram apreciados e todos concordaram que o avião tinha um desempenho melhor do que os demais, embora necessitasse de uma catapulta para decolar. Santos Dumont não viu as demonstrações de Wilbur e simplesmente declarou: “É com enternecido contentamento que eu acompanho o domínio dos ares pelo homem: é o meu sonho que se realiza”[32].

Em 1909 apresentou sua última invenção no campo da aeronáutica: o novo Demoiselle, um modelo totalmente alterado. O primeiro avião ultraleve da história e o primeiro aparelho construído em grande número. Algumas firmas comercializaram o aparelho que se mostrou um excelente avião, tendo sido utilizado por grandes nomes da história da aviação, como Roland Garros. Com o novo Demoiselle, Santos Dumont realizou vôos impressionantes que despertaram o interesse de todos. Mantendo a sua preocupação em divulgar o avião ele disponibilizou os planos para quem quisesse construí-lo, e em entrevista a um jornalista ele declarou: “Se quer prestar-me um grande obséquio, declare, pelo seu jornal, que desejoso de propagar a locomoção aérea, eu ponho à disposição do público as patentes de invenção do meu aeroplano. Toda a gente tem o direito de construi-lo e, para isso, pode vir pedir-me os planos. O aparelho não custa caro. Mesmo o motor, não chega a 5 mil”[33].

O Demoiselle foi o seu último invento aeronáutico. Um pequeno avião, estável e seguro, o primeiro ultra-leve construído em grande número. Foi o avião de treinamento de pilotos como Roland Garros (1909).

A revista “Popular Mechanics Magazine”, em seu número de 1910, publicou os planos com as instruções para construção: “Milhares de pessoas nos Estados Unidos estão intensamente interessadas no assunto do vôo aéreo, mas até o momento nada de natureza tangível foi apresentado de forma a permitir que se comece a trabalhar com uma perspectiva de razoável sucesso. É com grande satisfação que tornamos acessível os desenhos de trabalho do maravilhoso monoplano inventado pelo senhor Santos Dumont... O aeroplano é melhor que qualquer outro jamais construído para aqueles que quiserem obter resultados com um custo baixo e o mínimo de experiência”[34].

Em 25 de julho de 1909, Blériot, amigo e admirador de Santos Dumont, ganhou o prêmio do jornal inglês Daily News ao atravessar o Canal da Mancha. Santos Dumont dirigiu-se emocionado a Blériot: “Esta transformação da geografia é uma vitória da navegação aérea sobre a navegação marítima. Um dia, talvez, graças a você, o avião atravessará o Atlântico”. Ao receber as congratulações de Santos Dumont, Blériot respondeu: “Eu não fiz mais do que segui-lo e imitá-lo. Seu nome para os aviadores é uma bandeira. Você é o nosso líder”[35].

No mesmo ano, em 22 de agosto, teve início a Grande Semana da Aviação, em Reims. Santos Dumont não participou das provas, mas seguiu com atenção. Ao término do evento, Santos Dumont realizou seus últimos vôos. “Aí está! Vocês vêem que isto vai muito bem. Estou convencido, quanto a mim. Amanhã à tarde, farei com que cronometrem, oficialmente, numa prova de classificação... Eu desejo bater o recorde de Curtiss, que levantou vôo depois de percorrer 80 metros. Estou quase certo de que, em 30 ou 40m, poderei decolar. Que farei depois? Prosseguirei minhas experiências. Quero estabelecer os recordes de velocidade em 4, 5, 10 e 20km e mais ainda, se tudo correr bem. Acabam de me propor a ida a Berlim, e recusei. Acho que vôos sobre planície são os únicos que interessam, na atualidade...” [36]

Em 1910 estava esgotado e após um novo acidente decidiu abandonar o vôo. “...E nestas experiências tinha, durante dez anos, recebido os choques mais terríveis, sentia-me com os nervos cansados... Anunciei a meus amigos a intenção de pôr fim à minha carreira de aeronauta – tive a aprovação de todos”[37]. Mas não foi esquecido e no mesmo ano recebeu uma grande homenagem do Aeroclube da França com a inauguração do marco comemorativo do vôo do 14 Bis: “Aqui, em 12 de novembro de 1906, sob o controle do Aeroclube da França, Santos Dumont estabeleceu os primeiros recordes mundiais da aviação: Duração: 21 s 1/5. Distância: 220m”.

A partir daí sua atuação no campo aeronáutico mudou de rumo, mas continuou intensa e de grande importância. Trabalhou no sentido de popularizar o avião e de mostrar o potencial futuro que a nova invenção possuía.

Em 1913, quando da inauguração do Ícaro, em Saint-Cloud, o monumento comemorativo do prêmio Deusch, o inventor agradeceu: “Este monumento mandado erigir em Saint Cloud, pelo Aeroclube da França, me é duas vezes grato: é a consagração de meus esforços e, homenagem que se prestou a um brasileiro, reflete-se sobre a pátria toda”[38].

Logo a seguir, em 24 de outubro, foi promovido a comendador da Legião de Honra. Reconhecido e respeitado internacionalmente, mantinha-se simples, como se pode ver na descrição feita por George Goursat, mais conhecido pelo nome artístico de Sem, um dos mais populares caricaturistas da Belle Époque: “Envergando uma jaqueta de corte fino, uma calça muito curta, sempre arregaçada, cobrindo-se com um chapéu mole cujas abas se apresentam, em compensação, sempre puxadas para baixo, ele nada tem de monumental”[39].

Enquanto os outros inventores que, como ele, buscavam construir protótipos no início do século, começavam a investir na criação de empresas, Santos Dumont vivia sua condição de homem público, respeitado por sua coragem, sua audácia e sua inquestionável generosidade. Ele via surgir novas fábricas. Primeiro a de Voisin, logo seguida pelas de Blériot, Robert Esnault-Pelterie, Delagrange, Morane, Wright, Curtiss... Surgia, com rapidez, um novo campo de ação. Santos Dumont mostrava para todos a importância do novo invento. Os grandes dirigíveis, construídos na Alemanha, na França ou na Inglaterra, mostravam o potencial de uma aeronave capaz de transportar grandes cargas. Os pequenos aviões, por seu turno, provavam a capacidade para as atividades esportivas. Demonstrações atraíam um grande público. Mas, ainda assim, o mercado era muito restrito. Santos Dumont sempre lembrava da importância das aeronaves para atividades militares. Suas experiências haviam mostrado isso.

Mas, no início da década de 1910, ele estava vivendo a sua vida, participando de reuniões, recebendo homenagens, exercitando-se nos esportes de inverno ou viajando pelo mundo. Aonde chegava era uma atração. Era ouvido pelas autoridades, pois suas opiniões tinham, sem dúvida, um grande peso.

Em 1913 esteve no Brasil onde foi recebido com grande deferência. O panorama mudou com o agravamento da tensão política em 1914. Sua casa em Deauville foi requisitada pelo governo francês. Seu automóvel Alda, de 4 cilindros, foi colocado à disposição da fábrica de aviões Morane-Saulnier.

Observado, nem sempre com discrição, Santos Dumont passeia com o seu amigo Antonio Prado Júnior em Paris (1913).


Santos Dumont sentiu-se ignorado. Logo ele que havia colocado à disposição do governo francês suas aeronaves, via-se agora sendo tratado como um suspeito. Até a sua luneta astronômica que mantinha em Deauville foi confiscada com suspeita de possível uso para a vigilância marítima. Mal entendidos logo elucidados, mas, ainda assim, graves. Santos Dumont, nesta ocasião, parece ter queimado as suas anotações e desenhos de inventos.

Mas em 1915, em plena guerra na Europa, ele recebeu o convite da diretoria do Aeroclube da América para participar do II Congresso Científico Pan-americano, e em 7 de outubro chegou aos Estados Unidos. Sua preocupação era com o uso do avião na guerra, que mostrava-se cada vez mais eficiente. Em seu discurso defendeu a criação de uma “esquadra de aviões gigantes” para a defesa da costa: “Quem sabe quando uma potência européia há de ameaçar um Estado americano?... A aviação revelou-se a mais eficaz arma de guerra, tanto na ofensiva quanto na defensiva”. E concluiu profeticamente: “O aeroplano ligará os Estados do Hemisfério Ocidental em uma combinação integralmente unida, cooperativa e amistosa, aliada à conquista do seu bem-estar, das relações comerciais e esportivas, bem como do poderio bélico, em ocasião de possíveis guerras”[40].

A indústria aeronáutica crescia a olhos vistos. Seus antigos colegas prosperavam com a guerra e a aviação transformava-se a cada momento.

“Entramos na época da vulgarização da aviação... Desde o início da guerra os aperfeiçoamentos do aeroplano têm sido maravilhosos. Têm sido aumentados em dimensões e alguns, hoje, são feitos exclusivamente de aço... Atualmente na Europa há aeroplanos invisíveis. As asas são de um novo material transparente como cristal, que quase não se distingue quando o aeroplano se eleva a uma altura de 1200m... Porém, verdadeiramente assombroso é o desenvolvimento do canhão para aeroplano. O novo canhão origina dois tiros: um despede o projétil e outro, em sentido inverso, somente lança areia, anulando o retrocesso... Tenho ouvido dizer que se empregam canhões de nove centímetros. Imagine-se a efetividade de fogo! Eu, ainda que bastante sonhador, nunca imaginei o que tive ocasião de observar quando visitei uma enorme fábrica nos Estados Unidos. Vi milhares de hábeis mecânicos ocupados na construção de aeroplanos, produzidos diariamente em número de 12 a 18, cujo embarque é facilitado pelos ferro-carris que penetram no próprio estabelecimento. Prevejo uma época em que se farão carreiras regulares de aeroplano, entre as cidades sul-americanas, e também não me surpreenderá se em poucos anos houver linhas de aeroplanos funcionando entre as cidades dos Estados Unidos e América do Sul. É uma questão talvez de dez meses e, então, saberemos que um aeroplano partindo do Novo Mundo foi ter ao Velho em talvez um dia! Tenhamos um pouco de paciência; em breve existirão transatlânticos aéreos com quartos de dormir, salão e também, o que é muito importante, governados por giroscópios e acionados por vários motores com um grande excedente de força, para o fim de, em caso de avaria em um deles, serem os outros bastante poderosos para manter o vôo do aparelho”[41].

No ano seguinte, como representante do Aerolcube da América, estava em Santiago do Chile no Congresso Pan-americano de Aeronáutica. Em sua apresentação defendeu o uso pacífico do avião.

“Pessoalmente creio que se usará o aeroplano para correspondência e também para os passageiros entre os dois continentes, provavelmente muito breve. Sem dúvida esta opinião motivará gestos de incredubilidade e a predição será acolhida com sorriso. Quando há 12 anos disse que as máquinas aéreas seriam importantíssimas para o desenvolvimento das guerras futuras, toda a gente teve igualmente tais gestos e tais sorrisos... Os militares contradiziam-me, considerando o aeroplano como um joguete, e resistiram ao meu propósito de discutir seriamente o assunto. Considera-se, agora, pelos acontecimentos posteriores, a inapreciável utilidade que o aeroplano alcançou nos exércitos. Na presente guerra, a aviação revolucionou os processos. A grande importância da cavalaria desapareceu”[42].

Do Chile partiu para o Brasil, passando por diversas cidades: Foz de Iguaçu, Ponta Grossa, Curitiba, Paranaguá, São Paulo... Viajava. Em 1917, estando no Rio de Janeiro, visitou a Escola de Aviação Naval, na Ilha das Enxadas. Viu como aos poucos o Brasil ingressava na era da aviação. No ano seguinte construiu em Petrópolis, na rua do Encanto nº 22, uma pequena casa a que deu o nome de “A Encantada”. Lá escreveu o seu livro “O que eu vi, o que nós veremos”, onde tece considerações sobre os caminhos da aviação.“Prevíamos que os aeronautas poderiam, talvez, no futuro, servir de esclarecedores para os Estados Maiores dos exércitos, nunca, porém, nos veio a idéia de que eles pudessem desempenhar funções destruidoras nos combates”[43].

Em 1922, Sacadura Cabral e o Almirante Gago Coutinho realizam um vôo magistral. Os dois portugueses refazem a saga dos descobrimentos e realizam o “achamento” do Brasil pelo ar. Uma perigosa travessia, realizada com uma coragem rara, mostrava que o avião podia atravessar o Atlântico Sul. Santos Dumont saudou os dois intrépidos aviadores, mas estava em Paris, a convite do Aeroclube da França. Escreveu a seu amigo Antônio Prado Júnior: “Este meu querido Paris está sempre bom! Todos têm sido amabilíssimos comigo. Hoje vou assistir a final do campeonato da França de Tênis: Cochet-Samaze...(?) e Lenglend-Golding. A Lenglend está jogando maravilhosamente. Eu tenho jogado com a Broquetis e outras belas. Recomendações a D. Eglatina. Saudades. Santos Dumont. PS. Partirei pelo ‘Lutetia’ a 29 de julho”[44].

Mas os anos que se seguem não são tão felizes. Santos Dumont começa a se queixar de seus nervos. Em várias correspondências ele se refere ao estado debilitado que se encontra. Parece estar entrando num desespero contínuo e cada notícia que surge sobre o avião coloca-o mais aflito. Esteve no Brasil em 1925 e logo seguiu para a Suíça, para a clínica de repouso Valmont, em Glion-sur-Montreux. Voltou para Paris. Seguiu para Mégève, na Suíça. De lá tentou um apelo à Liga das Nações através de seu amigo embaixador Afrânio de Melo Franco, representante brasileiro na reunião que seria realizada em 14 de janeiro de 1926: “Li em diversos jornais que se pretende limitar a ação dos submarinos, proibindo-lhes tomar parte ativa em guerras futuras, mas, que eu saiba, não se pensou na Aeronáutica. Conhece-se, no entanto, do que são capazes as máquinas aéreas. As suas proezas, no decurso da última guerra, nos permite entrever, com horror, o grau de destruição a que elas poderão atingir no futuro, como espalhadoras da morte, não só entre as forças combatentes, mas também, e infelizmente, entre pessoas inofensivas da zona de retaguarda. Aqueles, que como eu, foram os humildes pioneiros da conquista do ar, pensavam mais em criar novos meios de expansão pacífica dos povos do que em lhes fornecer novas armas de combate”[45]. E em uma outra carta lamenta-se: “Estou seguindo com tristeza as discussões na Liga das Nações! É muito triste tudo isto...”[46] De Genebra escreveu em 1926 novamente para Afrânio de Mello Franco: “Eu não vejo por que razão não se pode proibir aos aeroplanos de jogar explosivos, quando se proíbe jogar veneno na água e projeta-se proibir o uso de gases asfixiantes. Doente estou aqui, seguindo um tratamento para os meus pobres nervos”[47].

Alguns biógrafos argumentam que Santos Dumont sofria de uma esclerose múltipla, doença não diagnosticada. A verdade é que ele, por volta de 1925, entra gradualmente num estado de depressão quase permanente. Interna-se em diversos sanatórios e se queixa aos amigos do seu sofrimento continuado. “Doente aqui na Suíça, longe dos amigos, para distração, tenho tomado lições de encadernação”[48]. Ainda assim é chamado para participar de homenagens, que nem sempre pode comparecer. Em 1927, quando Charles Lindbergh atravessou o Atlântico Norte em vôo solitário, ele foi convidado para a recepção. Não compareceu, pois estava internado em Valmont-surTerritet, na Suíça. Em 3 de dezembro de 1928 chegou ao Brasil para uma visita. Seu estado de saúde inspirava cuidados especiais e o governo brasileiro decidiu recebê-lo com grande pompa. Um avião Dornier, do Sindicato Condor e batizado com o seu nome, decolou levando a bordo vários professores da Escola Politécnica. O avião deveria sobrevoar o Cap Arcona, lançar flores e uma mensagem de boas vindas: “A escola politécnica saúda alegremente Santos Dumont com um punhado de flores lançadas no espaço que ele conquistou... Do alto do hidroavião que tem seu glorioso nome, precedendo a recepção que lhe preparou o povo da capital do Brasil, vimos apresentar, ao grande brasileiro que realizando a conquista dos ares elevou o nome da Pátria no estrangeiro, os nossos votos de boas vindas. Tobias Moscoso, Amauri de Medeiros, F. Laboriau, Frederico Oliveira Coutinho, M. Amoroso Costa, Paulo de Castro Maia.”

O hidroavião, entretanto, espatifou-se nas águas da Baía da Guanabara para desespero de Santos Dumont. Nenhum sobrevivente. Ainda assim o inventor participou de algumas homenagens, visitou a Escola de Aviação Militar, no Campo dos Afonsos, e apresentou, no Museu Nacional, suas derradeiras invenções. Mas logo regressou à Europa.

Em 11 de dezembro de 1929 foi promovido ao grau de Grande Oficial da Legião de Honra da França. Um filme sonoro registrou seu discurso, realizado quando da entrega da condecoração, no dia 10 de junho de 1930, durante um banquete organizado pelo Aeroclube da França no Hotel Claridge. Sua imagem, entretanto, não esconde seu estado de saúde. As notícias que chegavam da Europa eram bastante preocupantes. Santos Dumont encontrava-se internado numa casa de saúde em Préville, na França. Preocupada, a família decidiu trazê-lo para o Brasil a fim de poder dar maior atenção. Em junho de 1931 chegou ao Brasil. Seu desembarque no porto do Rio de Janeiro foi acompanhado por alguns repórteres. “Em silêncio hierático, os braços tombados indiferentemente, olhava absorto para o tumulto ambiente. Alongava o olhar para o mar e para o céu. Enfermo e em silêncio, desembarcou do Lutetia ao largo, para fugir às emoções da aclamação popular. As pessoas de sua família, que o rodeavam, pediram-nos encarecidamente que nos abstivéssemos até de cumprimentá-lo. Olhamos Santos Dumont. Sempre a sua fina sensibilidade. Santos Dumont chorava... e foi chorando que desceu, de braço com seus sobrinhos, a escada de bordo”[49].

Mas a Revolução de 32 irrompe e o avião aparece no cenário das batalhas. Para ele, que se encontrava “doente dos nervos” há tantos anos, o uso dos aviões parece ser um pesadelo irracional. Jorge Villares, seu sobrinho, levou-o para o litoral paulista e se hospedaram no Hotel de La Plage, em Guarujá. Os ataques aéreos, entretanto, continuavam. Diante das notícias, Santos Dumont desabafou por telefone ao seu amigo professor José de Oliveira Orlandi: “Meu Deus! Meu Deus! Não haverá meio de evitar derramamento de sangue de irmãos? Por que fiz eu esta invenção que, em vez de concorrer para o amor entre os homens, se transforma numa arma maldita de guerra? Horrorizam-me estes aeroplanos que estão constantemente pairando sobre Santos”[50].

E dirigiu-se ao governador de São Paulo, Pedro de Toledo: “Solicitado pelos meus conterrâneos mineiros moradores neste Estado, para subscrever uma mensagem que reivindica o restabelecimento da ordem constitucional do país, não me é dado, por motivos de moléstia, sair de meu refúgio a que forçadamente me acolhi, mas posso ainda por estas palavras escritas afirmar-lhes, não só o meu inteiro aplauso, como também o apelo de quem, tendo sempre visado a glória de sua Pátria dentro do progresso harmônico da humanidade, julga poder dirigir-se em geral a todos os patrícios, como um crente sincero em que os problemas de ordem política e econômica que ora se debatem, somente dentro da lei magna poderão ser resolvidos, de forma a conduzir a nossa Pátria à superior finalidade dos seus altos destinos. Viva o Brasil unido”[51].

Em resposta recebeu uma mensagem assinada pelo governador de São Paulo: “A Santos Dumont, o povo paulista, por seu governador, agradece as eloqüentes palavras de apoio ao movimento constitucionalista que hoje empolga o Estado e o País. Batemo-nos pelos princípios universais da liberdade e do direito. Que aplausos nos poderia calar mais fundo no coração do que o nome universal do grande patrício?”[52]

Em 23 de julho a aviação de Getúlio atacou o litoral paulista. No meio da manhã, Santos Dumont suicidou-se. Aos 59 anos de idade o inventor do vôo dirigido punha fim à sua vida. A notícia logo se espalhou. Embora o Brasil estivesse vivendo em meio a uma revolução, a morte de Santos Dumont era um fato que ultrapassava diferenças políticas: era uma perda mundial.

“O dia 23 de julho foi de luto para o Brasil. Faleceram o coronel Julio Marcondes Salgado, comandante da nossa Força Pública, e o grande inventor brasileiro Santos Dumont”[53]. O suicídio, entretanto, não poderia ser divulgado. “Não haverá inquérito, Santos Dumont não se suicidou”[54], pontificou o governador Pedro de Toledo. No mesmo dia seu corpo foi embalsamado pelo Dr. Walter Harberfeld que retirou e preservou o coração de Santos Dumont. O general Góes Monteiro, comandante das tropas de Getúlio, dirigiu-se ao povo paulista: “Em homenagem à memória do imortal pioneiro da Aviação, as unidades aéreas do Destacamento do Exército Leste, deixarão de bombardear hoje as posições militares inimigas”[55]. Getúlio Vargas, em 25 de julho, decretou luto oficial por três dias. Somente em 17 de dezembro de 1932 o corpo de Santos Dumont foi transladado para a capital federal, Rio de Janeiro. O sepultamento se deu durante um forte temporal no cemitério São João Batista. Lá, sob a réplica do monumento do Ícaro de Saint Cloud, por ele construído, repousa Santos Dumont.

A contribuição de Santos Dumont para a aviação foi enorme. Não só no campo de provas, onde ele realizou os dois primeiros vôos dirigidos da história: do balão dirigível, em 19 de outubro de 1901, e o do avião, em 23 de outubro e 12 de novembro de 1906. A partir de 1910, quando ele se afastou de sua carreira de aviador, sua contribuição foi de fundamental importância para o surgimento de uma nova mentalidade que passou a aceitar o avião como um novo artefato tecnológico à disposição da sociedade. Além disso, graças às suas reflexões sobre as possibilidades que os dirigíveis e os aviões ofereciam, surgiu gradualmente, não só no meio militar e esportivo, a percepção de uma nova indústria nascia. O avião, de fato, pode ser considerado como o grande responsável por uma mudança global. Quando perguntado pelo jornalista italiano Antonio Polito, sobre a grande novidade que apareceu e que permitiu a redução ou eliminação completa das barreiras comerciais entre os Estados, o historiador inglês Eric Hobsbawm respondeu: “A grande mudança foi o surgimento do transporte de carga por aviões. O exemplo mais óbvio, que nos afetou a todos, é o fim da sazonalidade dos produtos agrícolas... Pela primeira vez na história da humanidade, isto tornou possível organizar a produção, e não apenas o comércio, em escala transnacional...”[56]

Santos Dumont desenvolveu os projetos com o dinheiro recebido por herança. Como lembrou Gabriel Voisin, um dos mais proeminentes precursores do vôo, em 1952: “Contavam-se sobre nosso amigo brasileiro várias lendas. Diziam que possuía uma fortuna imensa! Ora, esta fortuna era somente uma situação remediada. Mas, como explicar o gesto deste homem que distribuía prêmios concedidos à performances a instituições de caridade?... Estas liberalidades não podiam, aos olhos do público, apoiar-se senão sobre uma fortuna fabulosa. Nada disso: Santos Dumont era a própria generosidade, a elegância inata, a bondade e a retidão. Dava sem contar e sem prever, movido por uma virtude irresistível... Não deixou como herança senão o seu nome gravado em nossos corações. Os que o conheceram não puderam deixar de amá-lo”[57]. Tinha recursos, o que permitiu investir continuamente no desenvolvimento de seus projetos, sem sofrer os impactos de políticas efêmeras que mudam numa velocidade maior do que o tempo necessário para se chegar a resultados interessantes. Neste sentido, o Brasil perdeu a oportunidade de iniciar uma indústria aeronáutica forte. Isto poderia ter acontecido já nos últimos anos da década de 1910, ou em outras ocasiões mais recentes, quando já existia um certo grau de desenvolvimento técnico, resultados promissores no estudo de materiais apropriados e a construção de protótipos. Faltou a sensibilidade política para permitir a abertura de um novo mercado para o produto nacional. Assim como Santos Dumont, praticamente todos os outros inventores dispunham de recursos, ou próprios, ou vindos do investimento de governos, que permitiram realizar um trabalho sistemático e de longa duração até a obtenção de máquinas eficientes.

(Rio de Janeiro, janeiro, 2003)
Agradecimentos:

A Sophia Helena Dodsworth Wanderley, que gentilmente permitiu a consulta a um vasto material sobre seu tio-avô, Alberto Santos Dumont, cuidadosamente organizado por seu marido, brigadeiro Nelson Freire Lavènere-Wanderley. Ao brigadeiro Araguaryno Cabrera Rei e a Rodrigo Moura, por valiosas informações e idéias.

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Foram também consultados diversos periódicos, entre eles:

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Resumo

Santos Dumont desempenhou um papel fundamental na criação da aviação. Não só por sua intensa atividade no campo de provas, tendo sido o primeiro inventor a obter sucesso no vôo dirigido de balões (1901) e no vôo do avião (1906), como por ter popularizado o vôo como nenhum outro inventor o fez. Sua biografia mescla-se com sua contribuição única no campo das inovações tecnológicas do século vinte. O presente trabalho mostra como ele conseguiu, através de sua participação no debate em torno do aparelho voador, influenciar todos os pioneiros. Às vésperas do centenário do primeiro avião é importante compreender os caminhos que possibilitaram a sua invenção e a sua aplicação em todos os terrenos.

Abstract

Santos Dumont played an important role in the development of aviation history. His contribution includes his inventive spirit and actions in the practical field of building and flying an aircraft heavier than the air, as he proves that it is possible to control balloons using petrol engines (1901) and performs the first homologated flight in such an aircraft (1906). Moreover he distinguished himself as a popularizer of flight giving to the society a new look on the advantages of flying machines. His biography is the ideal starting point for those interested in understanding his creative process and also to perceive how Santos Dumont made such astonishing technological innovations in the beginning of the Twentieth Century. This article presents an overview on how Santos Dumont influenced all other pioneers and maintained an intense debate about the usefulness of flying machines. As the centennial of first complete flight on an airplane (1906) approaches ,it is important to understand the discussions and the debates surrounding the invention of the aircraft and Santos Dumont´s pioneering foresight of the benefits that aviation would offer to mankind in many different fields..

O Autor

HENRIQUE LINS DE BARROS. É doutor em Física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCT), onde trabalhou com biofísica em estudos da resposta magnética de organismos. Foi diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCT-1992/2000) e é pesquisador desta instituição na área de história da técnica no início do século XX. Recebeu, em 2003, a Comenda da Ordem do Mérito Científico, a Medalha Mérito Santos Dumont e a Medalha 20 anos Ciência Hoje.

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  1. Há discordância entre fontes com respeito à data dos vôos. Adotei como fonte principal a revista L’Aérophile, de agosto de 1903. O vôo de Clarkson Porter, citado por Santos Dumont como feito de 26 de junho, possivelmente teve lugar no dia 24, quando, de acordo com a revista francesa, Santos Dumont pousou no campo de Pólo onde se realizava uma quermesse infantil.
  2. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.Vol. LVI. 1959. P.171.
  3. Santos Dumont, Alberto. 1902. How I becamee an Aëronaut and my experiences with air-ships. McClure’s Magazine, vol. XIX. August 1902.
  4. Santos Dumont, Alberto. 1905. The pleasure of ballooning. The Independent. June 1905. 1225-1232.
  5. Nicolaou, Stéphane. 1997. Santos-Dumont, dandy et génie de l’aéronautique. ETAI. Musée de l’Air et de l’Espace. Le Bourget. 112pp. P. 13.
  6. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Vol. LVI. 1959. P.171.
  7. Barão de Teffé.1924. O Brasil berço da sciencia aeronáutica. 9º volume de Minhas Memórias no decennio 1880-1890. Imprensa Naval. RJ. 239pp. P.99.
  8. Idem. P. 100.
  9. Santos Dumont, Alberto. 1902. How I became na Aëronaut and my experiences with air-ships. McClure’s Magazine, vol. XIX. August 1902. P. 308.
  10. Santos Dumont, Alberto. 1973. Os meus balões. Biblioteca do Exército. RJ. 260pp. P. 130.
  11. Santos Dumont, Alberto. A Conquista do Ar pelo aeronauta brasileiro Santos-Dumont. 1901. Aillaud & Cia. Paris. 32pp. P.11.
  12. Santos Dumont, Alberto. 1973. Os meus balões. Biblioteca do Exército. RJ. 260pp. P. 151.
  13. Idem
  14. Prendergast, Curtis. 1981. Les prémiers aviateurs. Éditions Time-Life. Amsterdam. 176pp. P.26.
  15. Santos Dumont, Alberto. 1973. Os meus balões. Biblioteca do Exército Editora. Rio de Janeiro. 260pp. P. 177.
  16. Costa, Fernando Hippólyto da. 1990. Santos-Dumont: história e iconografia. INACER e Villa Rica editora. Rio de Janeiro. P. 51.
  17. Le Grand Prix de 100,000 francs de l’Aero-Club. L’Aerophile. Novembre 1901. p. 278.
  18. Santos Dumont, Alberto. 1973. Os meus balões. Biblioteca do Exército Editora. Rio de Janeiro. 260pp. P. 195.19
  19. Idem. P. 192-195.
  20. Idem. P. 251.
  21. Aeronauts. L’Aerophile. Août 1903. P. 190.
  22. Crouch, Tom. 1990. The bishops boys: a life of Wilbur and Orvillle Wright. W. W. Norton. NY. 606pp. P. 270.
  23. Lt. Colonel G. Espitallier. La Nature. Le “Santos-Dumont”XIV”. 1905. N. 1687. P. 257
  24. Prendergast, Curtis. 1981. Les prémiers aviateurs. Éditions Time-Life. Amsterdam. 176pp. P.20.
  25. Lagrange, L.. 1906. Santos-Dumont aviateur. L’Aerophile. Janvier 1906. P.28.
  26. Citado em: Santos Dumont, Alberto. 1918. O que eu vi, o que nós veremos. Ed. Autor. Petrópolis. 110pp. P. 59
  27. Idem. P. 59
  28. Cléry, A.. 1906. Nouveau triomphe de Santos-Dumont. L’Aerophile. Decembre 1906. P. 292.
  29. Santos Dumont, Alberto. 1918.O que eu vi o que nós veremos. Edição do Autor. Petrópolis. 100pp. P. 54.
  30. Pegasse.23.outubro 1983. Musée de L’Air et de L’Espace. Le Bourget.
  31. Doncières, René. Les nouveaux Santos-Dumont. 1907. La Nature, no 1796. 26/10/1906. P. 344.
  32. Santos Dumont, Alberto. 1918.O que eu vi o que nós veremos. Edição do Autor. Petrópolis. 100pp. P. 66.
  33. Le Matin. 15 de setembro de 1909. no.9.332.
  34. Popular Mechanics Magazine, 1910
  35. Paquier, Pierre. 1952. Maître d’Action. Éditions du Conquistador. 111pp. P. 55
  36. Le Matin. 15 de setembro de 1909. no.9.332.
  37. Alberto Santos Dumont. 1918.O que eu vi o que nós veremos. Edição do Autor. Petrópolis. 100pp. P. 65.
  38. Idem. P. 67.
  39. L’Illustration. 25 de outubro de 1913, n. 3.687, p.306.
  40. Santos Dumont, Alberto. 1918. O que eu vi o que nós veremos. Ed. do Autor. Petrópolis. 100pp. P. 70-77.
  41. Santos Dumont, Alberto. 1959. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. P.. Vol. LVI. P. 163-169.
  42. Idem. P. 163-169.
  43. Santos Dumont, Alberto. 1918. O que eu vi o que nós veremos. Edição do Autor. Petrópolis. 100pp. P.6.
  44. Fonseca, Godin. 1956. Santos Dumont. 3a. Edição. Liv. São José. RJ. 355pp. P. 304
  45. Jorge, Fernando. 1977. As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont. McGraw-Hill do Brasil. SP. 207 pp. P. 191.
  46. Idem. P. 192.
  47. Idem. P. 193.
  48. Idem. P. 193.
  49. Idem. P. 195.
  50. Idem. P. 200.
  51. Moura, Jair Pinto de. 1933. A fogueira constitucionalista. Editorial São Paulo. SP. 188pp. P. 64.
  52. Idem. P. 64.
  53. Idem. P. 109.
  54. Jorge, Fernando. 1977. As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont. McGraw-Hill do Brasil. SP. 207 pp. P. 200.
  55. Idem. P. 200.
  56. Hobsbawm, 2000. O novo século. Companhia das Letras. SP. 196 pp. p.71-72.
  57. Citado em : Villares, Henrique Dumont. 1957. Quem deu asas ao homem: Alberto Santos Dumont, sua vida e sua glória. MEC. RJ. 422pp. P. 280.