Saudade (José Bonifácio, o Moço)

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I


Eu já tive em bellos tempos
Alguns sonhos de criança;
Já pendurei nas estrellas
A minha verde esperança;
Já recolhi pelo mundo
Muita suave lembrança.

Sonhava então—e que sonhos
Minha mente acalentaram ?!
Que visões tão feiticeiras
Minhas noites embalaram ? !
Como eram puros os raios
Dos meus dias que passaram?!

Tinha um anjo de olhos negros,
Um anjo puro e innocente,
Um anjo que me matava
Só c’um olhar—de repente,
—Olhar que batia n’alma,
Raio de luz transparente!

Quando ella ria, e que riso ? !
Quando chorava,—que pranto ? !
Quando rezava, que prece!
E n’essa prece que encanto ! ?
Quando soltava os cabellos,
Como esparzia quebranto? !

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Por entre o chorão das campas
Minhas visões se occultaram ;
Meus pobres versos perdidos.
Todos, todos acabaram;
De tantas rosas brilhantes
Sò folhas secca ficaram!

II

Oh que já fui feliz!—ardente, ancioso
Esta vida boiou-me em mar d’encantos!
Os meus sonhos de amor eram mil flores
Aos sorrisos d’aurora, abrindo á medo
Nos orvalhados campos!

Ella no agreste monte, ella nos prados,
Ella na luz do dia, ella nas sombras
Pardacentas do valle, ella no monte
No Céo, no firmamento—ella sorrindo!

Então o sol surgindo feiticeiro,
Entre nuvens de cores recamadas,
Segredava mysterios!

Como era verde o florejar das veigas
Brandinha a viração, murmura a fonte,
Meigo o clarão da lua, a estrella amiga
Na solidão do Céo! ?

Que sedes de querer, que amor tão sancto,
Que crença pura, que ineffaveis gozos,
Que venturas sem fim, calcando ousado
Humanas impurezas!

Deus sabe—si por ella em sonho extranho
Á divagar sem tino em loucos extasis,
Sonhei, penei, vivi, morri d’amores ? !
Si um quebro fugitivo de seus olhos
Era mais do que a vida em plaga edenica,
Mais do que a luz ao cego, o orvalho ás flores,
A liberdade ao triste prisioneiro,
E a terra da patria ao foragido ! ! !
Mas ai—tudo morreu!...

Seccou-se a relva, a viração calou-se,
Os queixumes da fonte emmudeceram,
Mórbida a lua só pratêa lousa,
A estrella amorteceu, e o sol amigo
No verde-negro seio do oceauo
Chorando a face esconde!

Meus amores talvez morreram todos
Da lua no clarão que eu entendia,
N’essa restea do sol que me fallava,
Que tantas vezes me aqueceu a fronte !

III


Além, alem, meu pensamento, avante !
Que idea agora a mente me assaltêa ?!
Lá surge afortunada,
Da minha infancia a imagem feiticeira!
Quadra risonha de innocencia angelica,
Minha estação do Céo, porque fugiste ?
E que vens tu fazer—agora á tarde
Quando o sol já desceu os horisontes,
E a noite do saber já vem chegando
E os lugubres lamentos ? !
Minha aurora gentil—tu bem sabias
Como eu fallava ás brisas que passavam,
A’s estrellas do Céo, á lua argentea,
Sobre nuvem purpurea ao sol já frouxo!
Ante mim se erguia então o venerando
O vulto de meu Pai,—perto, a meu lado
Minhas irmãs brincavam innocentes,
Puras, ingenuas, como a flor que nasce
Em recatado ermo !—Ai minha infancia
Não voltarás... oh nunca!... entre cyprestes
Dormes d’aquelles sonhos esquecida!
Na solidão da morte—ali repoisam
Ossos de Pai, de Irmãos! .. . embalde choras
Coração sem ventura... a lousa é muda,
E a voz dos mortos só a campa a entende;

Tive um canteiro de estrellas,
De nuvens tive um rosal;
Roubei ás tranças da aurora
De perolas um ramal.

De auri nocturno véu
Fez-me presente uma fada;
Pedi á lua os feitiços,
A côr da face rosada.

Contente á sombra da noite
Resaya a virgem Maria;
De noite tinha esquecido
Os pensamentos do dia.

Sabia tantas historias
Que me não lembra nenhuma ;
Os meus prantos apagaram
Todas, todas—uma a uma!

IV


Ambições, qu’eu já tive, qu’é d’ellas ?
Minhas glorias, meu Deus, onde estão ?
A ventura--onde vive na terra?
Minhas rosas—que fazem no chão?

Sonhei tanto !... nos astros perdidos
Noites... noites inteiras dormi;
Veio o dia, meu somno acabou-se,
Não sei como no mundo me vi!

Esse mundo que outr’ora habitava
Era Céo... paraiso... eu não sei !
Veio um anjo de fôrmas aereas,
Deu-me um beijo, depois acordei!

Vi maldito esse beijo mentido,
Esse beijo do meu coração!
Ambições, qu'eu já tive, qu’é d’ellas?
Minhas glorias, meu Deos, onde estão?

A cegueira vendou-me estes olhos,
Atirei-me n’um pego profundo;
Quiz corôas de gloria... fugiram,
Um deserto ficou-me este mundo !

As grinaldas de louro murcharam,
Nem grinaldas- sómente a loucura!
Vi no throno da gloria um cypreste,
Junto d'elle uma vil sepultura!

Negros odios, infames traições,
E mais tarde... um sudario rasgado !
O futuro?... uma sombra que passa,
E depois... e depois... o passado !

Ai maldito esse beijo sentido
Esse beijo do meu coração!
A ventura—onde vive na terra?
Minhas rosas—que fazem no chão?

Por entre o chorão das campas
Minhas visões se occultaram ;
Meus pobres versos perdidos
Todos, todos acabaram;
De tantas rosas brilhantes
Só folhas seccas ficaram...

S. Paulo 1850.