Segunda carta apologetica, em favor, e defensa das mulheres

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Segunda carta

Apologetica,

Em favor, e defensa

das mulheres,

Escrita por Dona

Gertrudes

Margarida de Jesus,

ao irmaõ amador

do Dezengano,

Com a qual deſtroe toda a fabrica do ſeu
Eſpelho Critico.

E ſe reſponde ao terceiro defeito, que nelle
contemplou

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Lisboa:

Na Officina de Franciſco Borges de Souſa

Anno de 1761.



Com todas as licenças neceſſarias.


Segunda carta.

Apologetica.


A Carta, que remetti a V. C. naõ ha muitos dias, ſoube ſer-lhe entregue, e juntamente ſoube doproprio a manuenſe, que a levou, que V. C. diſſera em falſete, (naõ duvidando da verdade, que o podia fazer) que vendo as Heroinas, com que eu legalizava a minha defenſa, naõ encontrava huma ſó Portugueza: Eu eſpero ter tempo pára lhe remover eſte prejuizo; agora porèm vou ao principal intento que he neſta ſegunda Carta dar complemento á primeira, moſtrando naõ ſer a formozura taõ fea e taõ damnoza, como V. C. quer que ſe veja no ſeu Eſpelho, cujo intento illidir, e quebrar.

Miſeraveis mulheres, que cahiſtes na deſgraça dos homens! Infelices homens, que quando ſoçobrados com a ira da voſſa maledica paixaõ até chegais a dizer mal de vós meſmos! Aſſim o fizeraõ os Efezinos injuriando com feas palavras a Hermodoro, até o expulſarem fóra da Cidade, excedendo elle a todos em virtude, conſtancia, e equidade. Omeſmo fizeraõ os Athenienſes a Ariſtide, a Cymone, e a Themiſtocles: e os Siracuſanos a Hermocrate, ea Dione: e os Romanos a Camillo, a Rutilio; e a Metello. E naõ tendo Cataõ Uticenſe nenhuma cobiça, nem Hercules nenhuma cobardia; diz Plutarco, que a Cataõ notaraõ de cobiçozo, e a Hercules de cobarde. Póde haver mayor deſatino! Aſſentemos nós, que os máos naõ podendo ſoffrer os bons, e o que he bom, eſtudaõ cavilozamente os meyos de os arruinar.

Naõ he a formozura damnoſa,porque o ſeja; mas porque os homens diſſeraõ, e quizeraõ que foſſe má. E bastará iſto (Amado Irmaõ) para que ſe aſſente, e affirme que he má? Ora vá ouvindo V. C. e notando: Perguntado hum ſabio, que couſa era a formoſura; diſſe: He hum reſplandor do ſummo bem, que reluz naquellas couſas, que ſe vem, e alcanças com o ſentido, e cam o entendimento, pelos quaes as quer converter a ſi: Ora ja naõ he taõ fea, como V. C. a pinta. Supponho que V. C. como Catholico ſabe muito bem, que ha dous generos de formozura, huma corporal, outra eſpiritual; huma corporea, outro incorporea: Da Eſpiritual naõ trata V. C., e por iſſo naõ me emprego em reſponder-lhe; da corporal he toda a contenda.

Houve hum Religioſo Capuchinho por nome Fr. Fortunato de Quiaromonte, era eſte de taõ rara gentileza, que reflectindo nelle hum herege Luterano, ſem outra mais razaõ ſe reduzio, e converteo ao gremio da Religiaõ Catholica; einquirido pela cauſa, que o motivara a eſta taõ repentina, se voluntaria mudança, reſpondeo: Convenceo-me eſte argumento: Neſte homem eſta Deos quazi vizivelmente, e naõ eſtaria ſe elle ſeguiſſe Religiaõ falſa: logo a que elle ſegue he a verdadeira. Tiraſſem os homens todos eſta, e ſimilhantes conſequencias da formozura, que achaõ nas mulheres, que eu lhes prometto, que até elles foſſem bons; porèm como a ſua malicia he tal, que tira do bem o mal á maneira da aranha, que da flor, que a abelha tira o mel, tira ella o veneno, por iſto chegaõ a maldizer a formozura. Naõ aſſim hum dos melhores engenhos de França, que lhe chamou: Sombra das bellas almas, e caracter vizivel da virtude.

Em hum Panegyrico, que Pacato, ſingulariſſimo Orador, fez ao Imperador Theodozio, diſſe , que a formozura tinha muito de divina; e que ſe a ſua virtude lhe merecera o Imperio, a ſua gentileza accreſcentara os votos á virtude. Ao Sol, em razao de fua formozura chamou Plataõ: Imagem de Deos. A' formozura chamou Marcilio Ficino: Flor da bondade; e outros a appellidaraõ: Iguaria de todo o bem. Lembra-me ter achado em Eneas Sylvio no ſeu ſegundo Tomo da hiſtoria de ElRey D. Affonſo de Napoles, que dizia Bartholomeu Caprano, Biſpo de Milaõ, que raras vezes ſe ajuntava formozura com maldade. Nas leys de Draco, quando ſe duvidava qual de muitos aggreſſores na briga foſſe o homicida, ſempre ſe prezumia, e procedia contra o mais feyo. Na opiniaõ de Baldo, naſcendo dous meninos gemeos, e naõ ſe podendo individuar qual naſceo primeiro, levava o morgado o mais formozo. Os povos da Gangarida (terra álèm dos Ganges) elegiaõ para Rey o mais formozo, e tanto que algum naſcia, e chegava á idade de dous mezes, o levavaõ a Juizo, e ſe era feyo, o matavaõ, dizendo que de couſa feya naõ ſe podia eſperar couſa bóa. A Archidemo, Rey, mulctaraõ os ſeus povos por ſe ter cazado com mulher de pouca prezença, ſentindo que deſte conſorcio naõ poderiaõ naſcer Reys, ſenaõ regulos.

He tem duvida certiſſimo, que a formozura naſceo para perſuadir reynar, e avaſſallar os coraçoens, e apartar de ſi prezumpçoens indignas da ſua nobreza, porque ella meſma naõ he outra couſa, que imperio da fórma ſobre a materia. Queira Deos que V. C. entenda iſto. De Moiſés, ainda menino, conta Theofilato, que eſtando já para lhe tirarem tyrannamente a vida, ſe rio, e olhou com ſemblante grato, e a migavel para quem o queria matar; e deſte modo livrou na ſua belleza a ſua vida. Eſtes factos ſaõ indubitaveis, e bem a favor da formozura; pelo que fica claro ſer ella a motora de todo o bem, e naõ authora de todo o mal.

V. C. deve ſaber, e advertir, que a mulher menos feya de todas, poſta em Grecia, ſeria a ruina, e incendio de Troya, do meſmo modo que foy a decantada Helena; e poſta no Palacio de ElRey D. Rodrigo, ſeria, como Caba foy, a perdiçaõ das Heſpanhas. Nos paizes, em que as mulheres ſaõ menos formozas, como ſaõ as Necalitas (de quem Deos nos livre, e que V. C. traz para argumento) nem por iſſo deixa de haver menos deſordens; antes acontece pelo contrario, pois no Reino de Moſcovia, onde as mulheres excedem a todas (ao menos ás da Europa, como he conſtante) em belleza,e formozura, naõ ſe vem tantas dezordens, e dezacertos: Logo que havemos dizer, Irmaõ chariſſimo? Devemos dizer, que a formozura naõ he authora das ruinas, que lhe imputaõ; mas ſim a malicia dos homens, que abuzando della fazem com que ſeja máo, o meſmo que em ſi he bom.

Perſuado-me que tenho dado ſatisfaçaõ ás objecçoens de V. C.; agora ſe me naõ expliquey bem como devia, procederá talvez de ſer eſta a primeira vez, que pego na penna para me defender. Reſta reſponder porèm a V. C. ſobre o reparo, que fez em eu allegar, para confirmaçaõ do que diſſe, exemplos de Heroinas Eſtrangeiras; ſe bem que ſimilhante frioleira faz-ſe indigna de reſpoſta; pois naõ ſey que as Francezas Italianas, Holandezas, &c. ſejaõ de genero diverſo das Portuguezas; e ſe iſto naõ he reſpoſta, poderia eu tambem dizer (que tal naõ direy) que os Authores, com que V. C. comprova o ſeu diſcurſo, ſaõ Gregos, Romanos, Atheniences &c. e naõ Portuguezes: logo tanto vale huma couſa como outra. Porèm ſaiba que tem havido innumeraveis Portuguezas, e muitas filhas deſta Corte, que tem ſido admiraveis em prendas, ſciencias, e conſtancia, ou valor. E para que o veja, vá ouvindo:

D, Maria Infanta de Portugal, filha do Infante D. Duarte, que cazou com o Principe de Parma, foy de claro juizo, e aguda intelligencia; fallavana lingua Latina, comprehendeo a Grega, e naõ ignorava as Filozofias. Nas Mathematicas foy muito douta; e na ſciencia da Eſcritura Sagrada teve tal erudiçaõ, que repetia de memoria os Oraculos de hum, e outro Teſtamento.

Sor Magdalena Eufemia da Gloria, Religioſa bem conhecida no Convento da Eſperança, da nobre familia dos Limas, e Souzas, eſcreveo em elegante eſtylo a Hiſtoria davida de Santa Roza de Santa Maria, que corre impreſſa debaixo do Annagrama literal de D. Leonarda Gil da Gama, em oitavo. Outro livro de Novellas exemplares debaixo do meſmo Annagrama, que tráz por titulo: Brados do Dezengano contra o profundo ſomno do esquecimento. E outros muitos manuſcriptos eruditos, e elegantes.

Sor Violante do Ceo,baptizada na Sé de Liſbõa, foy Religioſa da Roza, teve hum raro engenho para todo o genero de compoziçoens metricas nas linguas Portugeza, e Caſtelhana. Tundo de idade 16 annos compòs a Comedia de Santa Eugenia intitulada: La transformacion por Dios. Entre os encomios, que ſe aprezeataraõ a Filippe III. de Caſtella quando obtendo ele Reyno de Portugal ſe achava em Liſbõa, os ſeus, pelo voto de todos, tiveraõ os mayores applauzos. ElRey D.Joaõ o IV., a Rainha D. Luiza,o Principe D. Theodozio, e todos os Grandes do Reyno faziaõ o merecido aprego das ſuas Poezias. Ha della muitos Romances avulſos, e outros muitos verſos manuſcriptos. Deixou duas Comedias, que intitulou: El Hijo, Eſpozo, y Hermano; e La Victoria por la Cruz. Em o anno de 1728 ſe emprimio neſſa Corte hum Manual da Miſſa com ſeus Soliloquios, e algumas Oraçoens devotas, que ella tinha deixado manuſcripto.

D. Archangela Jozefa de Souza, de Lisbõa, filha do Doutor Antonio Carvalho de Souza, teve taõ felice memoria, que ſabia de cór o primeiro, e o ſegundo livro das Eneidas de Virgilio', e de Ovidio os cinco livros dos Triſtes. Em dous dias aprendeo a bordar primorozamente. Eſcreveo em dous tomos de folio a vida de Santa Catharina de Sena. Outro, que intitulou: Regras para conſervar a ſaude. Traduzio na lingua Portugueza as obras de Luiz de Gongora illuſtrado com bellas notas, e a naõ morrer de 24 annos deixaria muitas outras.

D. Roza Maria Clara de Lima, natural de Lisbõa, filha de Miguel da Silva de Lima, nos primeiros annos de ſua idade moſtrou taõ raro engenho, que lhe deraõ ſeus Pays Meſtres, de quem aprendeo com facilidade as linguas Latina, Italiana, Franceza, Alemaã, e Ingleza. Na muzica, e nos inſtrumentos excedeo a todas as Heroinas do ſeu tempo. Tambem morreo de tenra idade, no anno 1733.

D. Maria de Lancaſtre, Senhora Portugeza, foy de grande juizo, e muito applicada aos Eſtudos: comprehendeo difficillimos pontos da Sagrada Theologia eſpeculativa; penetrou os ſegredos mais reconditos da Filozofia; e na Medicina foy aſſombro e inveja dos profeſſores daquelle ſeculo. Soube tanto regular-ſe pelas regras da Farmaca que chegou a viver 133 annos Eſtando ja de cama, pela fraqueza lhe impedir os paſſos, tomando-ſe o pulſo, diſſe: Para eſte caſo naõ dá regras a Medicina, ſalvo mudaſſe a natureza. Preparado por ſua maõ hum remedio, o tomou, pedio os Sacramentos, deo a alma ao Creador.

D. Sebaſtiana de Magalhaens, filha de Lisbõa, do Capitam Ruy Soares de Magalhaens, foy ſum- mamente diſcreta, e inſtruida nas hiſtorias particulares do Reyno, e dos Authores Latinos, Cicero e Terencio, repetindo os ſucceſſos com a formalidade, que eſtavaõ eſcritos. Eſcreveo em latim hum Epithome de todos os Monarchas Francezes, o qual offereceo a Anna Tanaquel de Feure, Senhora Franceza. Eſtudava Filozofia, quando a morte a levou com os eſtudos, que davaõ eſperanças de grandes progreſſos.

Thomazia Nunes, natural da Cidade da Guarda, de humilde naſcimento, perfilhou-le illuſtre nos eſtudos da Filozofia, Arithemetica, Muzica, e Architectura. Riſcava, e pintava com igual perfeiçaõ. Deixou eſcritos dous livros em folio com o titulo: Ideas ſingulariſſimas. Ordenou huma Arte de Rhetorica, que intitulou: Nova Arte de bem fallar. Paula de Sá, Portugueza,foy excellente Poetiza

Eſcreveo muitas Obras, que ſe imprimiraõ debaixo de outro nome. Foy celebre na Eſcultura, e nas linguas, que fallava com promptidaõ. Applicou-ſe ás hiſtorias, e teve vaſta erudiçaõ na Latina, e na Romana.

Quiteria Borges, e Natalia de Souza, naturaes de Coimbra, foraõ de animo taõ ardente, que no mesmo dia, que chegou a noticia á dita Cidade da felice Acclamaçaõ de ElRey D. Joaõ o IV., ſahiraõ á rua armadas com eſpada, e rodella, ſolicitando os animos de todos os Cidadaons, e povo, para as acclamaçoens, e vivas. Sahiraõ as Juſtiças a rondar as ruas, que Quiteria, e Natalia com vozes de liberdade andavaõ correndo ameaçando de morte aos que o naõ reſpeitaſſem, e reconheceſſem por verdadeiro, e legitimo Rey.

Gervazia Antunes, natural da Villa de Almada, filha de Pays humildes, foy de taõ intrepido valor, que ouvindo dizer que em certo lugar da Villa andava huma fantaſma rezoluta le armou com hum groſſo paõ na maõ, e ſe foy ao dito ſitio; aviſtando o vulto da fantaſma, eſta ſe veio chegando para Gervazia, e eſtando já baſtantemente aproximada, lhe diſſe deſtemida, levantando o paõ, que lhe declaraſſe quem era, e o que queria, ſe naõ que entendeſſe que lhe morreria nas maõs. Veio a conhecer fer induſtria de hum ladraõ para lucrar melhor o ſeu officio, que ſe ſe lhe naõ de clara infallivelmente o mata. Nas forças foy agigantada; por que abalando huma oliveira de vinte annos, a rendeo pelo meyo. Arrancou huma grande parreira com todas as raizes pegadas. Levantava com os dentes hum ſacco de trigo de cinco, e ſeis alqueires, e chegou a quebrar com os dedos huma moeda de prata de tres toſtoes, ganhando por apoſta 6400.

Agora fico perſuadida, que V. C. eſtará plenamente ſatisfeito; e ſe acazo conſerva ainda algum remorço, veja o Theatro das Heroinas Portuguezas, que ſaõ dous tomos de folio, e nelle achará para tudo razoens, que lhe baſtem e mulheres, que o confundaõ. Conſulte tam- bem a Seneca, Author grave, e veja que, a naõ dizer muito, conſtitue as mulheres em tudo, e por tudo iguaes a os homens; em todas as diſpozicoens, ou faculdades naturaes, e eſtimaveis. Permita-me licença que feche eſla Carta com ſuas formaes palavras, pois creyo que V. C. tambem ſabe os ſeus dous dedos de Latim.

Quis autem dicat naturam maligne cum muliebribus ingeniis egiſſe, & virtutes illarum in arctum retraxiſſe? Par illis (mihi crede) vigor, par ad boneſta (libeat) facultas eſt. Laborem, doloremque ex æquo, ſi conſuevere, patiuntur. Naõ moleſto mais a V. C. a quem dezejo avultadas felicidades &c.

FIM.
Omnia ſub correctione S. R. E.
J. M. E.