Severina (1890)

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GUIOMAR TORREZÃO

 

 

SEVERINA

 

(À Ex.ma Sr.a D. Maria Augusta de Palma Fernandes)

SEVERINA
 

 
I

Pelas largas eharneeas, devastadas por um sol inelemente e fustigadas, no inverno, pelo rispido sudoeste que se levanta do mar em impetos tigrinos, ehega-se a Sines, uma aldeia da Extremadura, eravada na aresta do oceano, eomo uma ilhota inexplorada.

Envolve-a na sua folhagem verde-negra o amplo pinheiral, cngrandeee a eom o seu estreito abraço o magestoso oeeano e isola-a do mundo, das suas ruidosas festas e das suas interminaveis luctas, a auseneia do eaminho de ferro.

Foi em Sines que o principe D. Miguel de Bragança embareou para o exilio, d'onde seguiu, sem tornar a pizar a terra da patria, para a lugubre viagem do tumulo.

Nos longos serões do inverno, quando as ondas se erguem em promontorios, despedaçando-se de eneontro ás ribas e o vento rebenta da barra, bramindo e galopando ao longo da vasta planieie ondulante, como um ehacal esfaimado, os velhos peseadores, assentados á lareira, contam á familia, agrupada na muda attitude devota dos auditorios ingenuos, a legenda d'aquelle pobre rei desthronado, que atravessou a villa apedrejado pelos homens e escarnecido pelas mulheres.

Outros, mais enfronhados em historia, porque lh'a houvesse ensinado o sr. padre prior, citam, desvanecidos, o nome de Vasco da Gama, orgulhando-se de terem nascido na terra que serviu de berço ao glorioso navegador.

O apedrejado não foi D. Miguel, emendou o Manuel Cherne, defendendo os creditos da terra e respondendo ao visinho, què pela centesima vez estivera escabichando no escandaloso episodio.

Contou-me o sr. Raposo, filho do outro que atirou a pedra, vocês sabem. Pclos modos, o Francisco Maria Raposo tinha sido castigado, em Lamego, pelo general Lemos. Era sargento de milicias e deixára que um prezo lhe passasse o pé.

Vae d'ahi esperou o Lemos, quando elle saía da casa do padre Galufo, ao lado do D. Miguel, c zás, ferrou-lhe com um balazio.

— E a mulher? insistiu o visinho, empenhado em exaggerar para os assombros do auditorio, o estupendo acontecimento de um rei, corrido á pedrada.

— A mulher, tornou o velho Cherne, cachimbando, e estendendo a mão descarnada e cabelluda sobre a cabeça loira do ncto, agaclado aos seus pés, a mulher era uma alvoreada (doida, na phraseologia alemtejana). Fez-se um silencio; no fundo da noite cscura e tempestuosa, cerrando-se lá fóra em espessas trevas, arrastando-se na lobrega desolação das tristezas sem conforto, o mar resoou, cantando o seu requiem gemebundo.

Vamos á ceia, Severina, disse o velho pescador, levantando a cabeça encanecida e cravando o olhar mortiço na filha, uma esbelta rapariga, alta e loira, que retirava n’esse momento das brazas o tacho da sopa.

II

Havia dez annos que o Manuel Cherne enviuvára.

Encontrára a eompanheira agonisante, em uma manhã de outono, ao recolher da pesca aos linguados. Ficaram-lhe duas filhas: Maria Perpetua, mulher de um gageiro, que nunea mais regressára dos Brazis; e Severina, uma ereança de 15 annos, franzina, delicada e branea, eomo uma poetica deseendente de lords.

— Uma dôr d'alma, esta enfézadinha! lamentava frequentes vezes o velho, sopesando o saerifieio imposto por uma bôea, e eomparando-o á miseria de trabalho que se poderia esperar d'esse pobre eorpo anemieo. Maria Perpetua, ralada de saudades e esfalfada de mourejar de sol a sol, eaíra em uma tisica, que lhe ia minando lentamente a vida.

O seu homem, ao abalar-se por esses mares fóra, deixára-lhe nos braços tres ereanças, um moeito e duas moeinhas; mas a Maria Perpetua via-se grega eom a lida da casa, porque em vez de tres tinha einco filhos, sendo o mais velho o pae e o mais novo a irmã.

Luetou em quanto pôde; afinal, quedou-se pregada na cama, d'onde a levantaram para o cemiterio.

O Manuel Cherne estarreceu.

Que havia de ser d'elle, a eontas com esses quatro innocentes?

Quem lhe cuidaria do amanho da casa, em quanto andasse pelas aguas do mar?

Quem lhe teria o almocinho quente, quando elle recolhia de madrugada, transido de frio, depois da pescaria no mar alto, sentindo pesar-lhe cada vez mais os janeiros, que de anno para anno lhe dobravam o tronco herculeo e, não ralysavam o braço, outr'ora infatigavel?

Com a ajuda da Senhora das Salas, advogada dos pescadores de Sines, esperava ter forças, apesar de velho, para ganhar o pão dos quatro pobresinhos.

Mas quem havia de remendal-os, de preparar a comida e de acear o casinholo onde viviam?

Um desgosto, que o acabrunhava, que o levaria á cova, soluçava o velho, abraçado ao cadaver da filha. Tres dias depois, foi bater á porta de uma visinha, a pedir-lhe que lhe olhasse pelos pequenos, cm quanto elle estivesse fóra de casa.

Mas ao voltar da pesca, a visinha saiu-lhe ao encontro e referiu-lhe, com muitos gestos, que a Severina se oppozera, que lhe dera mandado de despejo, que lhe assegurára que de ninguem precisava, que lhe repetira que era já uma mulher que podia trabalhar.

Resolutamente, com uma força que ninguem suspeitaria n'essa fraca rapariguinha, delgada como um junco, branca e fina como uma flôr de cêra, a Severina chamou a si todos os encargos casciros e adoptou os tres pequenitos, envolvendo-os na ineffavel ternura, amparando-os com a dôcc e cariciosa protecção maternal, de que só as mulheres na terra possuem o irrevelavel segredo.

III

Aos 25 annos, a Severina attingira o pleno desabroehamento da sua delieada belleza lirial.

O trabalho desenvolvêra-lhe as fórmas hesitantes, fortaleeêra-lhe o sangue debilitado e toeára de um fino eolorido rosado o oval pallido d'esse rosto, recortado em alabastro, de que a eaprichosa natureza dotára, por engano, a fillia de um peseador, e que faria o orgulho de uma patrieia.

Nos seus grandes olhos azues, de uma transpareneia diamantina, refleetia a grave melaneolia inseparavel d'esse profundo e insondavel mar, que de pequenina a embalára nas suas ondas soluçantes. A bôea, largamente fendida e levemente deseórada, esboçava, por vezes, o sorriso triste e fugidio, caraeteristieo das resignações obseuras, dos holocaustos silenciosos, que o mundo não suspeita.

Os sobrinhos, que ella ensinára a lêr, que creára nos seus braços debeis, a quem ministrára o viatico da maternidade, disputado pela morte, adoravam-a.

O Manuel Cherne ehamava-lhe santinha, revendo-se, vaidoso, no seu easinholo, aeeado, eomo um palmito, deleitando-se na sua velhiee amimada, eercada de todos os confortos, eompativeis eoin a pobreza.

— Aquelle migalho de gente!... quem tal diria!... obscrvava aos da companha, não perdendo ensejo de encarecer os meritos da filha.

Os rapazes ouviam, eompenetrados, louvando o juizo da menina Severina.

O mais interessado era, sem nenhuma duvida, o Silvestre.

O Silvestre nascêra em Grandola e viera, ainda pequenote, para Sines.

O pae, caseiro do conde de B., quizera encaminhal-o para a lavoira.

Mas o rapaz morria-se pelo mar; as ondas exerciam no seu temperamento de marinheiro innato, a suggestiva attrecção de uma earieia voluptuosa, offereeida por uma amante inaeeessivel. Fugiu para easa do tio; e um bello dia, sem eonsultar ninguem, pediu ao Manuel Cherne que o levasse na canoa, deelarando-lhe que queria ser peseador.

Na tarde em que falleecu a Maria Perpetua, o Silvestre fôra offerecer os seus serviços á menina Severina.

Uma subita e irresistivel sympathia, feita de intimas affinidades, apparentemente incompativeis, deelarou-se logo entre esse robusto moeetão, bronzeado pelas brizas maritimas, e essa franzina rapariga, esguia, delieada e branea, eomo uma estatueta de marfim.

Em as noites de verão, prateadas pelo luar, que punha na larga superficie do oceano como que uma doee e mysteriosa elaridade de sonho, o Silvestre vinha assentar-se no baneo, fronteiro á porta do Manuel Cherne, onde se rcunia toda a familia, e ahi conversava eom a Severina.

Elle, timido e desastrado, limitava-se a contar-lhe os episodios da pesea, não ousando nunca alludir ao segredo que havia tanto escondia no eoração, nem dizer uma só das palavras que lhe affuiam eonvulsivamente aos labios.

Ella, serena e despreoecupada, ouvia-o e sorria-lhe com o scu mcigo sorriso, vagamente doloroso.

O velho, muito affeiçoado ao Silvestre, o seu braço direito, conforme asseverava, esfregava as mãos e de vez em quando referia uma historieta, allusiva aos bons tempos da mocidade, ou calculava os prós e contras da pescaria, que deveria realisar-se no dia immediato.

Nos serões de inverno, agrupavam-se todos á beira da chaminé, onde crepitava a lenha, despedindo clarões rubros que purpureavam as caras.

E lá fóra, o furacão assobiava nas desertas landes e nas dunas, erguidas na sua espectral alvura como um cortejo de fantasmas.

A espaços, o mar estrondeava de cncontro aos rochedos, como uma salva de artilheria disparada por uma armada invencivel, ou gemia, arrastando na praia o seu longo soluço dilacerante.

Instinctivamente, as crianças coziam-se com a parede ou embrulhavam-se nas saias da Severina, como que a pedir-lhe protecção, e todos fallavam a meia voz, cedendo á impressão de terror que vinha da noute escura, do céo tragico, do mar ameaçador e do vento ululante.

N'essas horas de inconsciente pavor, transmittido pelos elementos sublevados, exercendo a sua influencia dominadora sobre o miseravel ser humano, Silvestre fitava insistentemente Severina e recebia no peito, como uma caricia lenta, de uma doçura divinamente consoladora, o seu olhar azul e calmo, o seu meigo sorriso, vagamente doloroso.

IV

Que estranha tristeza annuviava o coração d'essa bonita rapariga, ardentemente amada por um bello mocetão, vigoroso, sadio e morigerado, a ponto de servir de exemplo a muitos ?

A nevrose das cidades, que faz da mulher actual a eterna desequilibrada, a infeliz nostalgica, preadivinhada pelo compassivo Michelet, estenderia o scu morbido contagio até á humilde aldeia de Sines, perdida nos confins da Extremadura ?

Severina era, como já disse, uma doente, degenerado produeto de um remoto atavismo, onde a paciente investigação retrospectiva de Zola descobriria por ventura o documento humano, susceptivel de elucidar-nos csse ponto obscuro.

A mesma caprichosa natureza que lhe afidalgára as fórmas, inoculára n'essa alma singela c ignorante, alheia aos refinamentos da civilisação e privada da fecunda cultura intellectual, um germen de revolta.

Inconscientemente, Severina sentia pezar sobre toda a sua vida uma lei illogica, que a desviava de um futuro, vagamente ambicionado.

Adorava os sobrinhos, que creára como se fossem seus filhos, estimava o pac, gostava do Silvestre, comprehendia o inaprcciavel valor da affeição dedicada, silenciosa e inalteravel que lhe votava esse excellente rapaz; a sua innata bondade revelava-lhe, intuitivamente, todos os thezouros de boa e paciente ternura que existiam, latentes, no coração do Silvestre ; sabia que a vida d'elle se absorvia toda n'esse amor e que lh'a saerificaria, se fosse preciso; estremecia-o, queria-lhe como a um irmão, admirava a força de respeito que o pobre rapaz impunha, heroicamente, á intensidade do amor; entretanto, nenhum d'esscs affectos lograva preencher o insondavel vacuo da sua alma, inquieta e perturbada.

Severina esperava sempre, sem saber porque, sem o confessar a si propria, alguma cousa, que não chegava nunea.

Seria um amor lendario, personifieado, eomo no Rêve, em um principe deseendente de eardeaes?

Mas se ella nem sequer suspeitava a existencia das paixões romantieas, que inspiram os grandes artistas.

Seria a riqueza; seria a satisfação da vaidade, o iman que exeree a sua imperiosa attraeção sobre todas as mulheres ?

Mas a singela filha de um peseador não podia conheeer o valor do oiro, applieado ao voluptuoso epicurismo da vaidade.

As vezes, ao eair da noite, Severina gostava de divagar na praia, acompanhada dos sobrinhos.

Emquanto as ereanças rebolavam na areia, rindo, saltando, eorrendo ao desafio, ella quedava-se immovel e pensativa, perfilando o seu vulto esguio na elara luz argentea do luar, que se alastrava na praia.

O seu obscuro instineto de artista aeordava vagamente em faee da noite estrellada e do largo mar ondulante. O olhar de Severina percorria a linha alvejante das easas, desdobrando-se, eomo um collar de perolas, sobre o erystal das ondas; detinha-se no Revelim, o eolosso de granito, resaltando eom o seu eontorno anguloso do azul diaphano; em seguida, perdia-se na immensidade do oceano, esfumado ao longe em um penumbroso fundo de aguarella e absorvia-se na visão do infinito, sentindo eonfusamente, sem ter eonseiencia da impressão que a agitava, da admiração que a possuia, o indefinido terror do ineognoseivel.

Voltava-se depois para o Pontal, curvado para o abysmo, como uma gigantesca esphinge, e fitava longamente as anfractuosidades do rochedo, immergindo da agua espelhante e recortando na luz opalina do luar a sua negra silhoetta de monstro petreficado.

E n'essas horas de silenciosa abstracção, Severina esquecia o Silvestre, a sua aldeia, a condição humilde em que nascêra, o ignorado cantinho da terra em que deveria morrer e viver.

A voz dolente das ondas, desenrolando-se na praia e quebrando-se de encontro ás ribas, soava-lhe ao ouvido como um rythmo fantastico que a arrebatava em espirito para uma região desconhecida. Pungia-a o nostalgico anceio, o torturante desejo de uma ignorada felicidade, que ella não sabia onde existia nem de que elementos era formada, mas que a chamava de longe, fugindo-lhe sem cessar.

Então Severina, tremia, estendia os braços, na attitude de quem supplica, e dos seus limpidos olhos azues, franjados de compridas pestanas, desprendiam-se duas lagrimas, que lhe rolavam nas faces pallidas.

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— Tia, gritava um dos tres pequenitos, tenho frio!

— Cala-te, choramigava o mais novo, deixa-me brincar.

Severina corria para as creanças, abria-lhes os braços, apertava-as ao peito e beijava-as carinhosamente, deleitando-se no amoravel contacto d'essas tres cabecinhas, que afugentavam a visão ob- cecante.

V

N'esse domingo de dezembro, o Silvestre, vestido de ponto em branco, viera procurar o Manuel Cherne.

A Severina tinha ido á missa; as crianças corriam atraz dos patos e gallinhas, flanadores habituaes das estrcitas ruas de Sines; o velho pescador, assentado no banco fronteiro á casa, aquecia-se ao sol.

— Olá, mcu rapazola, bradou o Manucl, cachimbando, como tu vens catita !

Timidamente, o Silvestre approximou-se; tirára o chapéo e com um lenço encarnado limpava a testa, inundada de suor.

— Homem, notou o Manuel, piscando os olhos, pois tu suas com este frio de levar coiro e cabello?

Fez-se um silencio. O Silvestre assentára-sc no banco, sem proferir palavra. O velho pescador continuava a fital-o, rindo-se maliciosamente.

O sol nimbava-os, avivando-lhes a côr argilosa e imprimindo-lhes o firme desenho rectilineo de um grupo de terra côta.

E no amplo espaço, vaporisado por uma tenue neblina que azulejava os longes, adelgaçando-os em uma fluidez aquatica, o mar rugia lamentosamente, executando o seu requiem gemebundo.

Não queres esperar pela Severina? perguntou o velho ao Silvestre, que se levantára na mesma attitude taciturna e contrafeita, enrolando as abas do chapéo e cravando os olhos no chão.

Aquelle nome, que resoára até ao mais intimo do seu ser, respondendo a todos os sentimentos que o preoccupavam, foi a chave mysteriosa que lhe descerrou a boca, obstinadamente muda.

— Tio Cherne, começou, tartamudeando, eu vinha dizer-lhe...

— Acaba, homem, acudiu o outro, salivando, tens a lingua pregada ao céo da bôca?

Sim, eu vinha pedir-lhe... e o Silvestre hesitou, não se atrevendo a formular o audacioso desejo que alli o trouxera.


— Valha te Deus, volveu o Cherne, batendo-lhe no hombro, tu acobardas-te de fallar commigo?

— Não é isso, tio Cherne, mas como o outro que diz, sim, vossemecê bem percebe...

— Percebo que és um pedaço d'asno, rematou o velho, soltando uma gargalhada.

— Pois lá vae, exclamou o Silvestre, desempcnando a estatura, como um homem disposto a affrontar um perigo mortal. Eu gosto da menina Severina e vinha perguntar-lhe sc seria do seu agrado que nos casassemos.

O pedido não surprehendeu o Manuel Cherne. Havia muito que clle notára a sympathia do Silvestre. Por vezes, sorrira-lhc a idéa d'essa união, que respondia aos seus mais secretos votos.

Com tanto que a rapariga não se opponha, concluia, ponderando nas exquisitices da filha.

Ergueu-se de golpe c abraçando o Silvestre, prometteu-lhe que fallaria á Severina.

Ella ouviu o pae e com o seu meigo sorriso doloroso respondeu, que casaria com o Silvestre, se tal era a vontade de ambos.

Aprazou-se a ceremonia para o mez de S. João.

O Silvestre parecia um ebrio, cambaleava, fallava só, ria scin motivo e tinha infantilidades que contrastravam com a musculosa estructura d'esse corpo de athleta, fundido em bronze.

VI

Aquella lua nova do mez de janeiro déra agua pela barba aos pescadores.

O vento e o mar batiam-se desesperadamente, empenhados em uma lucta titanica. Logo ao fechar da noite, a espessa cerração embrulhava as ondas em uma mortalha de largas dobras roçagantes. E o mar crescia em acastellados vagalhões, ameaçando devorar Sines.

Por espaço de muitos dias, os pescadores não se aventuraram a ir ao mar.

O combate era impossivel entre o homem, misero atomo perdido na immensidade, e o monstro, indomado e indomavel, prompto a engulil-o.

O Manuel Cherne ficára-se no casinholo, a remendar as redes, emquanto o Silvestre aproveitava a primeira aberta, para se fazer ao largo.

Amanhecêra um dia chuvoso e encarvoado. Do céo baixo, acolchoado de nuvens pardacentas, descia lentamente a lugubre tristeza das catastrophes eminentes.

Sentia-se o convulsivo dilaceramento de una agonia tumultuosa n'esse oceano embravecido, cavado de medonhos vortices, alteando-se, por vezes, em montanhas de espuma, que pareciam lamber as nuvens, vergastado pelo vento da tempestade que lhe arrancava rugidos cavernosos.

A's duas horas da tarde, a cerração augmentára, confundindo a terra e o mar na mesma tinta aquosa, cobrindo-os com o mesmo sudario plumbeo, apertando-os na mesma cinta de ferro sulcada, a espaços, pela chamma azulada dos relampagos.

— O lobo anda assanhado! eommentára o Cherne para o vizinho, que viera pedir-lhe uma pitada de rapé.

O outro abanára a eabeça, compenetrado, esboçando um largo gesto de aeabrunhamento.

Ao anoiteeer, correu cm Sines que um vapor hespanhol, procedente de Gibraltar, viera deseair sobre os roehedos da Perceveira, erguidos entre o farol e o forte.

Ao elamor dos naufragos, responderam os gritos dos pescadores; mas uns c outros perderam-se no estrondear das ondas, despedaçando-se de eneontro ás ribas.

O Silvestre saltára para a canôa c remára, desesperadamente, na direeção da Pereeveira.

Immergindo na densa eerração, a careassa do vapor desenhava-se vagamente, como um ponto negro perdido no infinito do eéo c das aguas.

A canôa do Silvestre, saeudida pelas ondas, batida pelo sul, revoluteava ás eegas, sem governo, como uma gaivota desazada. De instante a instante, despenhava-se no abysmo e desapparecia, para reappareeer cm seguida, boiando á tona d'agua, arrastando-se ao acaso n'esse vasto pélago enfureeido.

De subito, um pé de vento voltou-a.

Então o Silvestre deseançou alguns instantes, deitado ao lume d'agua.

Em seguida, invoeou a Senhora das Salas, pronunciou o nome de Severina c eom os seus braços museulosos cortou as vagas, nadando vigorosamente.

O vento amainára; o nevoeiro abrira uma clareira, atravéz da qual se avistava uma nesga de céo azul, doirada pela tremula scintillação de uma estrella.

Esporeado pelas ondas, o negro esqueleto do vapor cambaleava, estorcendo-se em deslocações fumnambulescas.

O Silvestre nadava sempre, tentando approximar-se da praia.

N'essa occasião, sentiu-se empolgado pela mão crispada de alguem que pesava sobre os seus hombros, como uma massa inerte.

Reunindo as forças que começavam a atraiçoal-o, levantou a cabeça, aspirou o ar que lhe faltava, e sem tentar fugir ao mortal abraço d'esse corpo de afogado, que se lle collára á pelle, continuou a nadar. Mas a vista obscurecia-sc-lhe, os braços e as pernas, inteiriçados, perdiam a agilidade e não deslocavam a agua, que o arrastava lentamente para o tragico sorvedouro.

De repente, soou-lhe aos ouvidos, como um longinquo zumbido, o murmurio de vozcs, fechou os olhos e mergulhou nas trevas, que o cobriram, apagando-lhe a consciencia da vida.

VII

Chegára a primavera, lavando os céos brumosos e mosqueando as charnecas e o pinhal com viçosos ramilhetes de rosmaninho, malmequeres e giésta.

A renovação começava a agitar surdamente os flancos da terra, que se abriam em sulcos fecundos ao contacto da charrua.

O mar tinha a doçura enternecida do convalescente que acaba de debater-sc nos paroxismos de uma agonia tumultuosa.

José de Lumbrelas, salvo pelo Silvestre, viera com elle para casa do Manuel Cherne.

Severina tratára desveladamente dos dois homens, prodigalisando-lhes todos os cuidados de uma enfermeira solicita, infatigavel e intelligente como poucas.

A gente da canôa, que acudira a tempo de pescar os dois naufragos, fôra largamente retribuida pelo hespanhol, um esbelto rapaz de 25 annos, engenheiro de pontes e calçadas, que visitava Portugal em viagem de estudo.

Quinze dias depois do naufragio, José de Lumbrelas fôra hospedar-se para casa de um negociante inglez, correspondente do pae. E alli se deixára ficar, encantado, affirmava elle, com o aspecto, desartificiosamente pittoresco, d'esse burgo de pescadores, adormecido no seio do oceano.

Ao entardecer, Lumbrelas ia vêr os seus amigos, os seus salvadores, conforme os designava.

Brincava com as crianças, que lhe chamavam o sr. Pepe, conversava com o Manuel Cherne, perguntava pelo Silvestre c, por vezes, os seus grandes olhos pretos, que lhe illuminavam a tez morena, sombreada pela barba á Guisc, cravavam-se ardentemente cm Severina.

A filha do pescador ouvia-o silenciosa, enlevada na sonoridade d'essa voz de homem finamente educado, exprimindo no viril idioma de Cervantes idéas elevadas, phrases de uma estranha graça suggestiva.

Só, no seu pequenino quarto, Severina via-o, fallava-lhe, confiava-lhe a torturante historia da sua mocidade, perseguida por uma visão allucinadora; via no escuro da noite esses dois olhos negros, profundos como o oceano, que a deslumbravam.

O engenheiro começára a fallar portuguez, expressamente, explicava elle, para ser entendido pelos seus amigos.

Pouco a pouco, foram-se amiudando as visitas.

Pepe ficava-se dias seguidos em casa do Manuel Cherne, captivo do encanto de Severina, envolvendo-a na irresistivel fascinação do seu amor, provando-lh'o a cada instante em attenções de uma delicadeza reservada e por isso mesmo duplamente perigosa.

Por esse tempo, o Silvestre, que passava semanas inteiras no mar, apparecendo raras vezes em casa da noiva, — sempre taciturno e cabisbaixo, — veio participar ao Manuel Cherne que resolvêra ir tentar fortuna ao Brazil, acceitando para o effeito a proposta que lhe fizera o capitão de um brigue hollandez, ao engajal-o para moço de bordo.

O velho tentou dissuadil-o, recordou-lhe a projectada união com a filha, encarregou Severina de eonvencel-o.

Mas o Silvestre insistiu no seu proposito, pretextando que só easaria quando pudesse offerecer á menina Severina um marido, que lhe désse a estimação que ella merecia.

Quatro dias depois largava de Sincs, direito a Lisboa, o brigue que levava o Silvestre, á vista da familia Cherne, agrupada na praia, acenando-lhe, pequenos e grandes, o adeus saudoso, que punha lagrimas nos olhos de todos, emquanto o pobre rapaz, voltado para a terra onde lhe ficava para sempre morta a primeira e a unica felicidade da sua vida, chorava convulsivamente.

VIII

Muito antes de Pepe lhe declarar que a amava, Severina comprehendera que se operára na sua vida um subito reviramento, que a transfigurára.

A sua alma, doentiamente perturbada, repousára afinal na divina realisação do sonho, até ali inaccessivel.

A visão humanisara-se; o Deus ignoto viera, atravez das ondas, ao seu caminho, personificado n'esse homem bello como um principe, cloquente como um poeta, delicado e meigo como um archanjo.

No seu coração, pungido de secretos anceios, fizera-se uma paz ineffavel e fulgira uma luz redemptora.

E desde então, Severina vivia em um mundo á parte, absorta na muda adoração do seu vivo ideal, estranha a todos os desencantos da terra, alheia a todos os obstaculos que a distanciavam do ente amado, esquecendo a dor da eterna separação, suspensa sobre a sua cabeça, como uma sinistra ameaca.

Uma manhã de maio que o Manuel Cherne aproveitára para a pesca dos linguados, José de Lumbrelas veio lêr a Severina uma carta do pae, em que o velho negociante ordenava ao filho que partisse sem demora para Barcelona, onde um negocio urgente solicitava a sua presença.

— E o senhor obedece-lhe? perguntou Severina, livida como uma defunta.

— Que remedio! volveu ellc, fitando-a apaixonadamente; depois, curvando-se, dominando-a sob a imperiosa fascinação do olhar, murmurou-lhe ao ouvido: Venha commigo para Hespanha ; amal-a-hei sempre, sempre!

— Sim! balbuciou Severina, na inconsciencia da commoção que a prostrava inerte, que a cegava e entontecia.

Então elle beijou-a doidamente, supplicando-lhe que o esperasse ás 11 horas, explicando-lhe que n'essa mesma noite partiriam para Lisboa.

Durante as horas que se seguiram, Severina moveu-se como uma somnambula, indifferente a tudo que a rodeava.

A's 11 horas, José de Lumbrelas fez o signal convencionado.

Severina ergueu-se na sua pallidez espectral e abriu automaticamente a porta, absorta no mesmo extasiante sonho, atravéz do qual pronunciára a palavra que deveria decidir de todo o seu destino.

Lá fóra, o luar argentava a linha das casas, a massa escura dos pinheiros e o perfil granitico dos rochedos, e na doce e rcligiosa serenidade da noite estrellada o mar cantava o seu requiem gemebundo.

Elle enlaçou-a nos braços sofregamente e transpôz o limiar do humilde casinholo, onde o velho pescador e as tres creanças dormiam socegadamente.

De repente, uma fresca voz de creança gritou :

— Tia Severina, deita-te ao pé de mim, tenho medo!

Ella estremeceu, sacudida pela violenta reacção de todo o seu organismo, acordado á imperiosa voz do dever.

Recuou aterrada, esfregou os olhos e levantando o braço na direcção da estrada que se desenrolava ao longe, disse para o hespanhol, que a olhava estupefacto:

— Póde retirar-se. Eu não deixo aquelles innocentes, os meus filhos! A mãe, accrescentou, levantando para o céo os seus limpidos olhos azues, humidos de lagrimas, a pobre mãe não m'o perdoaria.

E fechou-lhe a porta, como se fecha a pedra de um tumulo sobre os restos inanimados de um morto.