Sganarelo

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Esse que eu agora rimo
É viscoso como a lesma
Pegajosa sobre o limo,
Sinistro como aventesma.

Feia coisa, enorme bicho,
Pavoroso mastodonte
Feito do horror a capricho,
Com cornos rijos na fronte.

Todo o ventre se lhe estufa
De obesidade lasciva,
Se fala a voz urra e bufa
Lembrando a locomotiva.

Na terrível carantonha
Retorcida, escalavrada,
Lhe estruge, às vezes medonha,
Formidável gargalhada.

E a luz do sol, que corusca,
Nas praças, à luz do dia,
A sua presença brusca,
Tem uma ardente ironia.

A língua rubra e convulsa
Sai-lhe da boca em espasmo,
Enquanto no olhar lhe pulsa
A blasfêmia do sarcasmo.

Capra figura profunda,
Atroz e amedrontadora,
Que larga entranha fecunda
Foi a tua geradora?!

Que aborto de ventre estranho
Pode gerar esse aborto
Assim feroz e tamanho,
Peludo, estroncado e torto?

De que idades tão antigas,
Pré-históricas vieste?
Mais hostil do que as urtigas,
Mais nefando de que a peste!

Trazes a pata esmagante,
A pata do bronze trazes;
Que é no espírito diamante
E que é nas almas lilazes.

Possuis o sangue da verve
Resplandecente, infinita,
Que ruge, palpita e ferve
E canta e soluça e grita.

Vens como imagem da Morte,
Da Morte hedionda e nefasta,
Das iras ao vento forte,
Do desespero a vergasta.

Desmancha-te em cabriolas
De doido polichinelo,
Que os teus membros lembrem molas
Como um palhaço amarelo.

Faz nos músculos esgrimas,
Pula trapézios e barras
E salta saltando estas rimas
Que vão saltando bizarras.

Acrobata da miséria
Estica os nervos, estica
E ri, ri tu da matéria
Da gente fidalga e rica.

És medonho?! isso que importa?
Ri! mas ri alto na praça,
Se a desgraça não foi morta,
Ah! deixem rir a desgraça!

Satanás sujo e potrudo
Nas cambalhotas te inspire.
Eia! vá! desdém por tudo,
Por tudo, e o tempo que gire!

Faz que o século se agite
De eternas risadas grossas
E como com dinamite
Arromba o mundo com troças.

Fura o estúrdio Sancho Pança
Com estocadas de riso
E mete-o também na dança
Dos saltos, se for preciso.

Destrói tudo, vai, desaba,
De tudo faz estilhaços
E a golpes de riso acaba
Os erros córneos e crassos.

Fura os ventres mais rotundos
Com aguilhões de chacota
E manda ao Mestre dos mundos
Um exemplar da risota.

Na tal luxúria gorducha,
Na velha e calva luxúria
Rebente risos em ducha,
Com toda a sátira e fúria.

Ri! até que se transforme,
O rebelado do inferno!
O riso num facho enorme
Aceso no sol moderno!