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Sol de Inverno/Prefácio I

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Com o Sol de Inverno, que, n'este volume, vê a luz da publicidade, e com as Novas Bailatas, que vão entrar no prelo, a obra poetica de Antonio Feijó encerra-se por duas magnificas affirmações do seu alto, delicado e gentilissimo talento. A sua Musa emmudece para sempre. A sua lyra quebra-se. Esses dois livros posthumos são o seu harmonioso canto do cysne... É um grande poeta e um grande artista do verso que dizem o supremo adeus á sua arte, exercida com tanta paixão e tanta nobreza!

Esses livros deixou-os o Auctor dispostos, coordenados, paginados, revistos minuciosamente, para os fazer imprimir. A morte permittiu-lhe, ao menos, cuidar d'esse legado valioso e opulento, que ia testar á litteratura patria. Quando ella o surprehendeu, a 20 de junho de 1917, o trabalho estava acabado.

Mas o mundo ardia em guerra. A Europa era um campo de batalha gigantesco em que os povos, como os Titans da gigantomachia do mytho hellenico, luctavam braço a braço, trucidando-se em torrentes de sangue. As communicações entre a Suecia, onde Feijó fallecera, no seu posto diplomatico, e Portugal, estavam quasi cortadas. Os preciosos e insubstituiveis originaes não podiam ser confiados a transportes aventurosos, a correios irregulares e incertos, ás suspeitas da censura dos belligerantes, aos riscos dos torpedeamentos maritimos. Foi preciso que a paz se fizesse emfim e, com ella, a ordem e a normalidade da vida internacional começassem a restabelecer-se n'esta convulsionada Europa, para que o espolio litterario de Antonio Feijó pudesse vir com segurança para Portugal, trazido pelas mãos dos seus proprios filhos.

A mim, seu velho companheiro e camarada, a elle ligado, desde os dezoito annos, pela mais fraterna amizade, foi confiado o encargo de superintender na publicação d'esses livros e de a preceder de algumas palavras em que se esboce o perfil do Auctor e se ponham em justo relevo os meritos eminentes da sua bella obra.

Encargo, ao mesmo tempo doloroso e grato, em que, á profunda saudade do querido amigo morto, se juntou o enlevo espiritual de me absorver nas altas emoções estheticas que a leitura d'esses dois livros tão intensamente me fazia sentir!

Com que doce melancholia, com que piedoso recolhimento, com que commovida curiosidade, com que alvoroçado interesse eu folheei os dois originaes, copiados á machina, mas, quasi a cada pagina, emendados pela sua lettra, com os offerecimentos aos seus amigos traçados pelo seu punho, com os appendices, em que se archivavam os juizos criticos das suas obras anteriores, por elle proprio coordenados!

Era o seu espirito que, d'essas frias regiões scandinavas, para onde os azares da vida haviam exilado esse meridional de tão viva e ardente imaginação, era o seu espirito que de lá nos vinha n'essas paginas, palpitantes de emoção lyrica, sonoras de rythmos musicaes e de rimas harmoniosas, todas refulgentes do esplendor das imagens e da pureza plastica d'uma forma impecavel! Esse dom de immortalidade espiritual, de revivescencia dos mortos na memoria das suas altas acções ou no esplendor das suas grandes obras, senti-o, n'essa hora, tão profundamente, que o meu coração, por momentos, se hallucinava, dando-se a illusão de que era o proprio poeta que me estava recitando as suas ultimas poesias, n'aquella dicção perfeita que tanto fazia realçar as qualidades do seu verso!

Era com a sua alma que eu estava em contacto tambem,— com a sua alma nos derradeiros annos da sua vida,— porque, n'esses livros, havia muito dos seus affectos, dos seus pensamentos intimos, das suas alegrias e esperanças, das suas mágoas, da suas torturas, das suas dolentes nostalgias...

Ambos elles estavam concluidos e preparados para o prelo antes d'aquelle supremo infortunio da sua vida, que foi a perda da sua adorada mulher, levada pela morte em setembro de 1915, ainda em plena mocidade e em todo o encanto da sua grande elegancia e brilhante formosura.

O offerecimento do Sol de Inverno não é feito á sua memoria, mas a ella ainda viva e presente no lar domestico. Nas cartas que d'elle recebi no curto periodo da sua viuvez,— uns vinte mezes,— referia-se aos dois livros como a uma obra feita. Depois do golpe, de cuja incuravel ferida lhe havia de resultar, mais tarde, a morte, não appareceram, nos seus papeis,— que eu saiba,— vestigios d'um regresso á actividade litteraria. D'isso me fallava ás vezes, quando me escrevia, mas como d'uma intenção, não como d'um facto.

Sol de Inverno e Novas Bailatas devem conter, portanto, as derradeiras producções poeticas de Antonio Feijó. São o fecho da sua obra e são realmente um remate superior, em que o seu talento e a sua arte se ostentam em plena maturação e plena mestria. Não lhe foi dado a elle assistir ao seu maximo triumpho litterario, á publicidade d'aquelle dos seus livros, o Sol de Inverno, que o qualifica, definitivamente e sem favor, um grande poeta.

A esse triumpho tambem os seus amigos não assistem com aquelle jubilo que experimentariam se lhe pudessem manifestar a sua admiração, se pudessem acclamal-o a elle em pessoa, não apenas á sua memoria e ao seu nome, agora gloriosamente consagrados.

Por mim, fal-o-ei n'esta evocação da saudade, que é o conforto da alma no declinar da vida e tem o dom maravilhoso de resuscitar espiritualmente os mortos.

Se julgo poder dominar as suggestões da amizade ao tratar da obra d'um tão grande amigo, não me é, por outro lado, possivel fallar d'elle sem que, a cada passo, esse affecto fraterno não transpareça nas minhas palavras, sem que tenha de referir-me ás nossas intimas relações, mettendo o leitor na confidencia de velhas lembranças pessoaes, que para elle podem, comtudo, ter interesse, por dizerem respeito a uma tão notavel individualidade.