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Solidão (Almeida Garrett)

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I

Solidão, eu te saúdo! silêncio dos bosques, salve!
A ti venho, ó natureza; abre-me o teu seio.
Venho depor nele o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida.
Quero pensar só comigo; quero falar a sós com meu coração.
Os homens não me deixam; amparai-me vós, solidões amenas, abrigai-me, ó solidões deleitosas.
Franqueia-me, ó soledade, o tesouro das tuas selvas; abre-me o santuário de tuas grutas.
Eu perguntarei aos troncos pelas idades que viram correr; e os troncos me responderão, meneando as suas ramas: — Elas passaram. —
Eu contarei aos prados os meus amores; e as boninas abrirão o cálice para me dizer: — Também nós amamos. —
Interrogarei os penhascos pelos ecos das vozes dos homens; e os penhascos mudos não ousarão repetir-me os sons falazes dessa voz.
Eu direi às ruínas: — Que é das mãos que vos construíram, que é das raças que vos habitaram? —
E as ruínas se calarão; mas a pedra de um sepulcro falará por elas.
A pedra do sepulcro dirá: — A morte passou, e as suas pegadas ficaram impressas no caminho dos séculos. —
Solidão, eu te saúdo! silêncio dos bosques, salve!

II

Que doce não é fugir dos homens para viver com as plantas!
Que prazer não é deixar essas habitações alinhadas pelo prumo de sua pequenhez; e vir no desalinho dos campos folgar em liberdade com a natureza!
Nascentes que rompeis do seio das rochas! vós não sois comprimidas nos estreitos canais que fabricou a arte:
Livres surgis da terra, livres jorrais das penhas; e livres correis dos montes a cobrejar nos prados por entre o matiz das flores.
Árvores frondosas, vegetai sem medo; a foice do jardineiro não vos despojará da rama para o monótono prazer de luxo contrafeito.
E vó, rochedos majestosos, repousai tranquilos nas elevações da terra; que não virá o cinzel do estatuário roubar-vos as formas da natureza:
Para transmitir ao neto degenerado, as feições do avô ambicioso.
Solidão, eu te saúdo! silêncio dos bosques, salve.

III

Solidão, eu venho a ti; já não me quero senão no teu seio.
Trago o coração oprimido; na mão de ferro mo aperta.
O espinho da dor está cravado no meio dele; a angústia o torce sem piedade.
O afogo lhe travou das artérias; todo o peso da desgraça está em cima dele.
O meu sangue já não tem vida; e circula de mau grado pelas veias frouxas.
Arde-me não sei que fogo no íntimo do peito; queria chorar e não tenho lágrimas.
Travam-me na boca os azedumes do passado; a aridez do futuro secou os meus olhos.
O que foi e o que há-de ser anda-me esvoaçando pela fantasia; são pensamentos de asas negras como o corvo agoureiro.
O momento que é desaparece no meio deles; porque não é nada.
O homem não tem senão o passado e o futuro; o passado para chorar, o futuro para temer.
O presente não é nada; e é só o que ele sabe.
Já se esqueceu do passado, e o futuro não lho disse Deus.
Eu vivo no futuro por uma esperança mais tênue que o fio da aranha; existo no passado porque ainda se me não foi o amargor dos tragos que bebi.
O presente está no meio, como o ponto no centro do círculo; mas a sua existência é quimera.
Os raios que partem para a circunferência são reais: tal é a minha vida.
Daquele ponto imaginário tiro linhas verdadeiras para o que fui e para o que hei-de ser; todas vão parar na desgraça.
Eu tive coração, amei; ainda o tenho, e amo.
Mas o meu amor fadou-o a desventura; bafejou-o o sopro do mal.
Fui planta que só lágrimas a regaram; o sol da felicidade não se riu pra ela.
Deu flores outoniças que não desabrocharam; o granizo as crestou, e a geada lhes queimou os germes.
Não houve esperança de fruto; só o prazer, mas tão louco! — de as colher sem ela.
Por isso está triste a minha alma; triste até à morte.
E os homens cuidam que eu sou feliz; e eu rego de noite o meu leito com as lágrimas dos olhos.
Porque a noite fez-se para chorar quem tem que chorar; de dia o avisado mente e ri.
Por isso eu não quero viver mais com os homens; porque quero chorar de dia e de noite.
A cidade é para mim o deserto; a solidão é minha pátria.
Solidão, eu te saúdo! silêncio dos bosques, salve!

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