Sonhos D'ouro/XXX

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No dia em que Ricardo recusara a mão de Guida, espontaneamente oferecida, chegou à casa de volta de Andaraí, atordoado ainda pelo procedimento singular, como pela decisão de caráter dessa moça.

Eram três horas.

O jantar o esperava, e durante ele, a conversa com a dona da casa e a tagarelice das crianças o distraíram da preocupação que trazia e à qual desejava arrancar o espírito.

À tarde, fumando um charuto e sentado à janela do sótão donde avistava as verdes encostas de Santa Teresa e mais longe o Corcovado, o moço deixou-se ir à discrição do pensamento que o levava para os acontecimentos daquela manhã. Não tardou o envolvesse um desses castelos encantados de que falava na carta a Bela.

Imaginou-se outro homem, que não ele. Um moço pobre, de alguma inteligência, lutando corajosamente com a sorte, mas sem o vínculo de uma afeição, que o prendesse para sempre. Caminhava curvado ao peso do trabalho, quando uma voz celeste o chama. Ergue os olhos, e vê descer das nuvens a moça mais gentil, deslumbrante de beleza, cintilando graça e espírito que lhe diz:

“Minha alma é virgem e pura, como o sorriso de que Deus a formou. Nunca amei: não sei que mistério é esse da criação. Ensinai-me vós a amar; acordai em mim as doces emoções dessa felicidade que eu não conheço. A linguagem dos anjos que eu falava no céu é doce; mas quero aprender em vossos lábios outra linguagem mais suave e maviosa, a que entende o coração. Eu sou a flor que nasce, cheia de fragrância, que toda guardei para derramar em vosso seio: colhei-me.”

E o moço ficava enlevado a admirar a esplêndida formosura, não podendo crer que Deus houvesse formado aquela sublime criatura e a conservasse imaculada no regaço do céu, para enviá-la de repente a ele, como um anjo, que o inundasse de felicidade. Mas interrompendo um instante o afã, ajoelhava para admirar a peregrina imagem.

“Erguei-vos, dizia-lhe a moça. Meu senhor não há de calcar o pó da terra. Tenho riquezas sem conta para dar-lhe. Quero ser querida em um palácio, entre as magnificências do luxo, cercada de tudo quanto seduz e deslumbra. Quero ser amada assim para que, no meio de todos esses esplendores, ele só busque meus olhos, só deseje meu sorriso.”

Desfraldando as asas, a imaginação de Ricardo bordou sobre o gracioso tema um desses arabescos orientais, cheios de encantamentos e fascinações, como são os contos árabes.

Quando ele surpreendeu-se no meio desse devaneio, teve um remordimento; e para fugir aos enlevos da fantasia, asilou-se nas recordações das puras afeições da família e dos santos amores de sua infância.

Tomou a pena e escreveu a Bela a carta que esta lera à janela, na hora da ave-maria; depois conversou longamente com sua mãe, em duas folhas de papel, renovando as reminiscências dos tempos que tinham passado juntos em São Paulo antes da separação.

No dia seguinte recomeçou Ricardo a lida do escritório; e o trabalho, que é o mais forte detersivo do coração, apagou os vestígios da alucinação que sofrera. Todavia, quando alguma circunstância lhe recordava Guida, sentia-se o mancebo tomado por um terror indizível, e estremecia com a ideia de cair outra vez no sonho, ou antes no pesadelo d'ouro, que já uma vez fizera presa nele.

Antes de findar a semana, estando Ricardo em seu escritório, recebeu do carteiro sua correspondência de São Paulo. Dentro da carta de D. Benvinda, que dava notícias de todos os seus, achou uma de Bela; e guardou-a para a ler em casa, a sós, sem risco de o interromperem.

Avalia-se do espanto de Ricardo ao ler estas poucas linhas:


Meu primo.

Um pressentimento, que não engana, diz-me que sou um obstáculo em sua vida; e portanto o meu dever é afastar-me para que você possa livremente seguir a brilhante carreira que lhe prometem seus talentos e virtudes.

Outra, mais prendada e escolhida por Deus, fará sua felicidade, oferecendo-lhe toda a sorte de alegrias e encantos, que eu não poderia dar, eu que apenas tenho um coração. Esse o acompanhará de longe com seus votos; e creia, meu primo, que outros não haverá mais ardentes pela sua ventura.

Desde que nos separamos, meu querido pai insta para que aceite uma união, que ele sempre desejou. Ocultei-lhe este segredo de família para não afligi-lo, em compensação de tantos sacrifícios que você aí sofria só; era justo que tomasse para mim unicamente essa contrariedade.

Enquanto me julguei necessária à sua felicidade, tive forças para resistir a meu pai; agora

faltam-me, e também o direito de opor-me à sua vontade, e recusar o destino traçado por ele, quando outro não me resta, nem eu tenho mais que esperar do mundo.

Quando receber esta carta, já estará partido o vínculo que nos unia; pois vou dar a meu pai o consentimento que me pede há tanto tempo.

Sua prima e amiga

Isabel Lopes

20 de agosto 1871.


Por diversas vezes, Ricardo retrocedeu ao princípio da carta e releu os períodos, para compenetrar-se do pensamento, que exprimiam essas palavras. A surpresa e pasmo produzidos por tão inesperado teor tinham-lhe embotado a compreensão; com os olhos fitos no papel, havia momentos em que não via as letras, ou vendo-as, não sabia soletrá-las.

Passado o primeiro abalo, quando o mancebo pôde coligir as ideias e refletir sobre o caso, sua mente procurou naturalmente a explicação do estranho acontecimento; e certo de a ter encontrado, deleitou-se em passá-la e repassá-la no espírito.

Foi um consolo.

Para Ricardo a carta de Bela não era senão um engenhoso meio de justificar sua ingratidão e perfídia. Cansada de esperar, a moça de coração volúvel, resolvera casar com o Felício Lemos, que além de arranjado, estava à mão.

A indignação do mancebo, a revolta do seu caráter em face de tal procedimento, sobrepujou a mágoa de se ver esquecido, e a dor de perder as mais doces ilusões de sua vida.

— E foi por essa mulher, que eu recusei um coração virgem, e o futuro mais brilhante que podia sonhar em meus arroubos de imaginação!

À noite Ricardo saiu à procura de Fábio, a quem encontrou na Rua do Ouvidor. Conseguiu trazê-lo à casa, para mostrar-lhe a carta de Bela, e vazar em seio amigo a exuberância de sua alma.

Fábio informou-se do que havia, tratou o ocorrido com a sua habitual leviandade, consolando Ricardo dessa insignificante derrota, que às vezes, dizia ele, era o princípio dos mais esplêndidos triunfos.

— Vem dar um passeio comigo ao Carceler. Um sorvete e um charuto de Havana, são os melhores específicos para esses achaques. O primeiro apaga um incêndio mais chibantemente do que o coronel dos bombeiros; o segundo desfaz em fumo a paixão a mais descabelada. Ontem ouvindo o Rossi, fiz esta reflexão, que tem escapado aos mais profundos pensadores: Se Otelo fumasse, não estrangulava Desdêmona, e Shakespeare não poderia escrever aquela cena sublime do final; ficaria reduzido ao soco-inglês.

Não ouvia Ricardo as pilhérias do amigo, nem deu fé quando ele, no meio da sua parolice, eclipsou-se pela escada do sótão, para ir pautear pela calçada do Carceler e Rua do Ouvidor, na esperança de encontrar a mulher do Conselheiro Barros.

No dia seguinte, recordando o golpe que na véspera sofrera, e estava ainda aberto dentro n'alma, teve Ricardo uma veleidade, um desejo, um impulso... Ver Guida. Para quê? Sob que pretexto? Em que intuito? Nem ele o sabia; nem lembrou-se de inquirir de si próprio; pois logo repeliu essa ideia como uma extravagância do espírito.

Durante as horas do trabalho, a agitação da cidade, o movimento dos negócios, o rumor das ruas, distraíram o moço. À tarde, porém, a lembrança que despontara pela manhã, tornou-se em necessidade imperiosa: e ele não pôde resistir.

Deixou-se levar à toa, como um batel que voga ao fluxo das águas. Chegando à Praia de Botafogo, apeou-se do bonde e seguiu a pé até o portão do palacete. Foi depois de entrar, que se lhe apresentou a estranheza do passo.

Só a convite, e de longe em longe, viera à casa do Soares; nunca tinha frequentado as reuniões de todas as noites, nem mesmo as partidas semanais do banqueiro. Que explicação tinha pois essa visita avulsa e sem causa?

O resultado da reflexão foi sair apressadamente, receoso de que o vissem. Não tinha porém dado cem passos, que já se arrependera de não haver realizado o primeiro intento, e moderou o andar, pensando em retroceder.

Avistou Fábio que saía nessa ocasião; foi-lhe ao encontro. Aí estava o pretexto da visita.

— Vi-te passar. Estava em casa do Soares no jardim; vem comigo; passaremos lá a noite.

— Tens razão, respondeu Ricardo apertando-lhe a mão. Neste momento preciso muito daquele gramo de loucura, com que o poeta manda temperar o juízo; e que realmente é o melhor sal da razão, pois a preserva de corromper-se.

Começava o crepúsculo.

Apesar da sombra que já havia no jardim, sobretudo onde copava o arvoredo, perceberam as duas moças a profunda alteração da fisionomia de Ricardo, não que estivessem descompostas suas feições, mas havia nelas a impressão digna e fria da dor vencida após uma luta heroica.

Guida envolveu em seu olhar compassivo o rosto do mancebo e murmurou dentro d'alma:

— Como ele a amava!...

Entretanto D. Guilhermina procurava reanimar a conversa:

— É um milagre, vê-lo, já não digo em nossa casa, porque a não ser uma visita de cartão, não lhe merece mais; mas aqui! Nem passando lembrou-se de entrar.

— Tenho desculpa, minha senhora. Falta-me o tempo.

— Agora não a tem!

— Agora, por quê? perguntou Ricardo volvendo um olhar suspeitoso para Fábio, que se eclipsou.

Guida estremeceu; e D. Guilhermina mordendo o beiço com um riso malicioso, afastou-se do lado que tomara o Fábio, tanto para evitar um novo lapso, como para deixar os dois em liberdade.

Apoderou-se de Guida um enleio invencível, quando se viu a sós com Ricardo, no jardim; e mais crescia sua perturbação com o silêncio do moço, que de seu lado também parecia tomado de súbito constrangimento.

Nesse momento, as salas iluminadas derramaram sobre o jardim o clarão das janelas; e um murmúrio de vozes na entrada anunciou a chegada das visitas habituais, que vinham passar a noite em casa do Soares.

— É melhor entrarmos, disse Guida; e correu ao encontro de Clarinha, que passava com o Barão do Saí.

Ricardo a acompanhou de longe, e instantes depois procurava nas conversas e burburinhos da sala, aquele grão de sal de que ele carecia para serenar a sua tristeza.

Mais de uma vez chegou-se para a filha do banqueiro com intenção de lhe dirigir a palavra; mas alguma força oculta o tolhia, que afastava-se, disfarçando o primeiro movimento.

Não escapou a Guida esta perplexidade. Convencida de que Ricardo lhe desejava falar, mas retraía-se na presença das pessoas que a cercavam, afastou-se um instante da roda das moças e cavalheiros a pretexto de ir ao interior; na volta chegou-se ao piano, e demorou-se em escolher uma peça para tocar.

Ricardo, recostado nesse momento ao vão de uma janela, foi talvez a única pessoa que seguiu os movimentos da moça; repetidos impulsos teve de aproximar-se, enquanto ela folheava o álbum, e não chamava a atenção ferindo as teclas do instrumento.

Guida colocou o livro na estante, e afastando o banco com a ponta do pé, volveu os olhos para Ricardo. Encontrando os dele, sentiu expandirse a alma, que veio abrir-se em flor num sorriso fagueiro.

Esperou ainda um momento e sentou-se. Debaixo de seus dedos mimosos cantaram as teclas a súplica maviosa do dueto final de Romeu, escrito por Vaccai:


Vieni, ah! vieni,
Mio bene, mia speme;
Fugiamo insiemi,
Amor ci condurra.


Ricardo não ouviu as notas, como não vira o sorriso.

Vexado de que lhe surpreendesse a moça o olhar ansioso, dissimulara, com intenção de aproximar-se logo depois, como atraído pela música.

Com efeito assim fez, mas ao mesmo tempo que ele, chegava Clarinha, o Guimarães, e todo o enxame de adoradores cercava o piano, levando o advogado a arredar-se, o que aliás fez de bom grado.

Pouco depois era meia-noite. As famílias se retiravam; D. Paulina com a filha as foram acompanhar até o portão, como de costume, por fineza aos hóspedes e por passeio.

Guida, de braço com Mrs. Trowshy, aproximou-se de Ricardo:

— Como está a noite serena! disse a moça. Havemos de ter uma bonita manhã para ir a Andaraí, Mrs. Trowshy.

— E a lição de harpa?

— Que tem isso?

Voltou-se para Ricardo:

— É verdade! Quando leva aqueles papéis à avozinha? Creio que ela precisa deles.

— Já devia ter ido... Talvez amanhã.

— Eu a prevenirei para esperá-lo.

Este curto diálogo passou desapercebido no meio do gorjeio das moças que se despediam.