Saltar para o conteúdo

Tédio (Cruz e Sousa)

Wikisource, a biblioteca livre

Vala comum de corpos que apodrecem,
         Esverdeada gangrena
Cobrindo vastidões que fosforescem
         Sobre a esfera terrena.

Bocejo torvo de desejos turvos,
         Languescente bocejo
De velhos diabos de chavelhos curvos
         Rugindo de desejo.

Sangue coalhado, congelado, frio,
         Espasmado nas veias...
Pesadelo sinistro de algum rio
         De sinistras sereias...

Alma sem rumo, a modorrar de sono,
         Mole, túrbida, lassa...
Monotonias lúbricas de um mono
         Dançando numa praça...

Mudas epilepsias, mudas, mudas,
         Mudas epilepsias,
Masturbações mentais, fundas, agudas,
         Negras nevrostenias.

Flores sangrentas do soturno vício
         Que as almas queima e morde...
Música estranha de letal suplício,
         Vago, mórbido acorde...

Noite cerrada para o Pensamento
         Nebuloso degredo
Onde em cavo clangor surdo do vento
         Rouco pragueja o medo.

Plaga vencida por tremendas pragas,
         Devorada por pestes,
Esboroada pelas rubras chagas
         Dos incêndios celestes.

Sabor de sangue, Lágrimas e terra
         Revolvida de fresco,
Guerra sombria dos sentidos, guerra,
         Tantalismo dantesco.

Silêncio carregado e fundo e denso
         Como um poço secreto,
Dobre pesado, carrilhão imenso
         Do segredo inquieto...

Florescência do Mal, hediondo parto
        Tenebroso do crime,
Pandemonium feral de ventre farto
         Do Nirvana sublime.

Delírio contorcido, convulsivo
         De felinas serpentes,
No silamento e no mover lascivo
         Das caudas e dos dentes.

Porco lúgubre, lúbrico, trevoso
        Do tábido pecado,
Fuçando colossal, formidoloso
         Nos lodos do passado.

Ritmos de forças e de graças mortas,
         Melancólico exílio,
Difusão de um mistério que abre portas
        Para um secreto idílio...

Ócio das almas ou requinte delas,
         Quint'essências, velhices
De luas de nevroses amarelas,
         Venenosas meiguices.

Insônia morna e doente dos Espaços,
         Letargia funérea,
Vermes, abutres a correr pedaços
         Da carne deletéria.

Um misto de saudade e de tortura,
         De lama, de Ódio e de asco,
Carnaval infernal da Sepultura,
         Risada do carrasco.

Ó tédio amargo, ó tédio dos suspiros,
         Ó tédio d'ansiedades!
Quanta vez eu não subo nos teus giros
         Fundas eternidades!

Quanta vez envolvido do teu luto
         Nos sudários profundos
Eu, calado, a tremer, ao longe, escuto
         Desmoronarem mundos!

Os teus soluços, todo o grande pranto,
         Taciturnos gemidos,
Fazem gerar flores de amargo encanto
         Nos corações doridos.

Tédio! que pões nas almas olvidadas
         Ondulações de abismo
E sombras vesgas, lívidas, paradas,
         No mais feroz mutismo!

Tédio do Réquiem do Universo inteiro,
         Morbus negro, nefando,
Sentimento fatal e derradeiro
         Das estrelas gelando...

O Tédio! Rei da Morte! Rei boêmio!
         Ó Fantasma enfadonho!
És o sol negro, o criador, o gêmeo,
         Velho irmão do meu sonho!