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Tédio (Cruz e Sousa)

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TÉDIO

 

Valla commum de corpos que apodrecem,
Esverdeada gangrena
Cobrindo vastidões que phosphorecem
Sobre a esphera terrena.

Bocejo tôrvo de desejos turvos,
Languecente bocejo
De velhos diabos de chavelhos curvos
Rugindo de desejo.

Sangue coalhado, congelado, frio,
Espasmado nas veias...
Pesadelo sinistro de algum rio
De sinistras sereias...

Alma sem rumo, a modorrar de somno,
Molle, turbida, lassa...
Monotonias lubricas de um mono
Dançando n’uma praça...

Mudas epilepsias, mudas, mudas,
Mudas epilépsias,
Masturbações mentaes, fundas, agudas,
Negras nevrostenias.

Flores sangrentas do soturno vicio
Que as almas queima e mórde...
Musica estranha de lethal supplicio,
Vago, mórbido accorde...

Noite cerrada para o Pensamento,
Nebuloso degredo
Onde em cavo clangor surdo do vento
Rouco pragueja o medo.

Plaga vencida por tremendas pragas,
Devorada por pestes,
Esboroada pelas rubras chagas
Dos incendios celestes.

Sabor de sangue, lagrimas e terra
Revolvida de fresco,
Guerra sombria dos sentidos, guerra,
Tantalismo dantesco.

Silencio carregado e fundo e denso
Como um poço secréto,
Dobre pesado, carrilhão immenso
Do segredo inquiéto...

Florescencia do Mal, hediondo parto
Tenebroso do crime,
Pandemonium feral de ventre farto
Do Nirvana sublime.

Delirio contorcido, convulsivo
De felinas serpentes,
No sillamento e no mover lascivo
Das caudas e dos dentes.

Porco lugubre, lubrico, trevose
Do tabido peccado,
Fussando collossal, formidoloso
Nos lodos do passado.

Rhythmos de forças e de graças mortas,
Melancolico exilio,
Diffusão de um mysterio que abre portas
Para um secreto idyllio...

Ocio das almas ou requinte d’ellas,
Quintessências, velhices
De luas de nevróses amarellas,
Venenosas meiguices.

Insomnia morna e doente dos Espaços,
Lethargia funérea,
Vermes, abutres a correr pedaços
Da carne delectéria.

Um mixto de saudade e de tortura,
De lama, de ódio e de asco,
Carnaval infernal da Sepultura,
Risada do carrasco.

Ó tédio amargo, ó tédio dos suspiros,
Ó tédio d’anciedades!
Quanta vez eu não subo nos teus gyros
Fundas eternidades!

Quanta vez envolvido do teu luto
Nos sudarios profundos
Eu, calado, a tremer, ao longe, escuto
Desmoronarem mundos!

Os teus soluços, todo o grande pranto,
Taciturnos gemidos,
Fazem gerar flores de amargo encanto
Nos corações doridos.

Tédio! que pões nas almas olvidadas
Ondulações de abysmo
E sombras vêsgas, lividas, paradas,
No mais feroz mutismo!

Tédio do Requiem do Universo inteiro,
Morbus negro, nefando,
Sentimento fatal e derradeiro
Das estrellas gelando...

Ó Tédio! Rei da Morte! Rei bohemio!
Ó Phantasma enfadonho!
És o sol negro, o creador, o gêmeo,
Velho irmão do meu sonho!