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Tísica

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Lânguida e loira, tinha, na verdade, um ruidoso e festivo acordar de canários.

Quando o dia vem triunfalmente cantando por todas as gargantas de oiro dos pássaros, perfumado por todos os prados de rosas, rumorejando por todos os sonoros veios cristalinos de fontes, ela erguia-se também do leito, cantando, numa alegria comunicativa que iluminava tudo e ia para o piano soluçar no teclado, lindas barcarolas e valsas.

Quanta vez eu ouvi, e quantas outras a vi no rés do chão que enfrentava a minha morada, sempre com um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces.

Como era feliz, e que ruidoso e festivo acordar de canários tinha Ela!


Chegou, afinal, o inverno.

A emigração das andorinhas começa em vôos incisivos, que frisa o espaço translúcido de ruflagens d’asas...

Os grandes frios pedem as grandes capas de lã para as mulheres, os confortáveis regalos de pelúcia, as luvas, que agasalham, que protegem as mãos, os pardessus e os largos fíchus para a cabeça.

Desprende-se já do éter as fortes lestadas de vento e chuva, destruidoras e rijas, arrepiando e convulsionamente contorcendo os galhos das árvores, que amarelecem.

Amanhece-se tiritando sob o fulgurante ar frígido das geadas, que nevam os plácidos campos.

E, lá, à cima das serras altas, nas desprotegidas cabanas onde a miséria habita, tiritam também de frio e desamparadamente morrem, com uma chama azul no olhar vítreo, as loiras e morenas virgens tísicas que na estação passada levaram a trabalhar nos rudes amanhos da lavoura e a mourejar nas longas vigílias amargurosas da agulha.


A tísica! a tísica! Essa doença simbolicamente dolorosa e triste, que devasta os lares como os cortantes invernos devastam as searas! Doença artística e desolada, que dá um aspecto eminentemente romântico a todas as mulheres, como àquela violeta de Parma, flor dolente e venenosa do Amor, essa Margarida Gautier, roxo lírio inefável de melancolia plantado à margem de lagos furta-cores de quimera, e que a mais abrasadora paixão, a febre mais intensa, o tufão ardente de um fundo e desvairado sentimento para sempre emurcheceu e desfolhou!

Doença amarga! que soturnamente devorando os pulmões, põe em redor de quem a sofre um magoado impressionismo de saudade e uma névoa gelada de sepulcro...

E as virgens que morrem dessa doença tão atormentadora e serena ao mesmo tempo, levam para o túmulo, na crispação dos lábios entreabertos e violáceos, como derradeira e a mais pungente ironia da Dor, o desmaiado sorriso da última esperança, do último sonho, da última ilusão que tiveram sobre a Terra.


Há muitos dias já não a vejo, a lânguida Loira.

Não sei porque, mas a sua ausência inquieta-me.

Eu quisera sempre vê-la, como dantes, pálida, lânguida e loira, com um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces.

Porém, ela não aparece, não vai, como então, sentar-se ao piano, no luminoso purpurear das manhãs, fazendo soluçar no teclado lindas barcarolas e valsas. E isso punge-me n’alma de tal modo que eu procuro saber o que é feito dela e dizem-me que adoeceu.

— Adoeceu! E de que?

— Está tísica. O médico diz que não durará muito.

— Tísica! Tão moça e tão bela! E que ar festivo tinha ela. Como cantava! Que sonoridade de voz! E tudo isso agora acabar, morrer...


É certo, aflitivamente certo o que me disseram. Ela vai morrer!

Vejo-a continuamente de uma palidez clorótica, os olhos de um brilho cru, agudo, que faz febre; as orelhas diáfanas, muito despegadas do crâneo; o nariz cada vez mais afilado e desfalecido; toda ela de uma amarelada transparência de morte, de uma magreza hirta, como essas santas mártires do cilício que vivem nos claustros fechados e austeros de pedra, olhando entre grades para céus fuscos, com olhos cheios dos fluidos místicos do Panteísmo, e que parecem subir, através de nimbos, além, às empíreas regiões dos excelsos arcanjos alvos de luz...

Vejo-a constantemente, através de vidraças, sem brilho de vida quase, como um astro vesperal prestes a apagar para sempre todo o seu clarão diamantino e virgem.

E, no entanto, nos intervalos lúcidos da doença, que lhe abrem no peito, às Esperanças, como um esplendor de força nova, de vigorosa saúde, o piano vibra de quando em quando, , sob as suas mãos febris, trêmulas, nervosas e cadavéricas, alguma melodia triste de casuarinas gementes, um desvairamento histérico de lágrimas, a fina música nostálgica no fim de tudo - talvez essa suspirante serenata de Schubert, cujo ritmo saudoso tão profundamente nos invade a alma e a entristece e no qual parece haver gritos e soluços de amor entrecortados pela agonia torturante da Morte...