Til/II/VII
O tal Gonçalo era um valentão; e tinha-se na conta do mais façanhudo espoleta de toda aquela redondeza.
Não acreditava, porém, a gente do lugar nas proezas de arromba que blasonava o pábulo; nem tomava ao sério as roncas e bravatas com que andava sempre a azoinar os ouvidos aos mais.
Para dar à sua pessoa um tom ameaçador e ao mesmo tempo disfarçar o senão do rosto, engendrara o Gonçalo sagazmente o apelido de Suçuarana, que a todo o instante atirava à barba dos outros, mostrando as pampas da cara.
Mas à exceção dele, ou de algum súcio que lhe filava a pinga, ninguém o chamava pelo tal apelido; senão pela alcunha de Pinta, que lhe tinham posto para o distinguir de outro Gonçalo carafuz, também morador no lugar.
Não aturava, porém, o valentão esse desaforo; e disparatava com quem o tratasse pela alcunha. Para não se meter em rixas, evitava a gente de o chamar daquele modo na presença, ainda que muitas vezes pelo costume lá escapava a palavra; mas o Gonçalo fingia não ouvir. Também, segundo contavam, já por vezes lhe tinham chimpado com o Pinta de propósito e mesmo na bochecha, sem que ele respingasse.
Todavia o que mais amofinava o Gonçalo era a fama de Jão Fera, de quem invejava não só a força e valentia, como o apelido, que lhe granjeara sua malvadeza, o terror que inspirava aquele nome, e até as mortes de que acusavam o outro, eram para ele façanhas de estrondo.
Chegava o zelo do valentão a ponto de consumir-se quando ouvia mencionar o Bugre como o maior criminoso de toda a província de São Paulo. Muitas vezes em seu despeito encavacou seriamente; e andava pelas vendas e ranchos com a canseira de provar que ele, Gonçalo Suçuarana, merecia cem vezes mais a forca do que Jão; pois as perversidades cometidas por este eram travessuras de criança comparadas com os seus espalhafatos.
O subdelegado sabia disso e fazia como o juiz de paz, a quem a lei o substituíra. Deixava bem descansado de seu o Gonçalo Pinta, que assim podia a salvo gabar-se de ser uma fama sem segundo na arte de matar gente.
Todavia enquanto vivesse Jão Fera, sabia o valentão que o nome deste havia sempre de ser o mais falado e temido de toda aquela redondeza, e por isso o tinha em grande ojeriza, apesar do serviço, que lhe prestara o Bugre, havia anos, livrando-o de um recruta que o levava preso.
Já ele teria dado cabo do rival, se pudesse, mas como não se atrevesse a atacá-lo de frente, espreitava a ocasião de atirar-lhe o bote certeiro, e desde muito rondava disfarçadamente pela venda do Chico Tinguá, que suspeitavam de ser o inculca e espia do capanga foragido.
Tais eram as disposições do Gonçalo quando chamou o Filipe para dizer-lhe em particular:
— O patrício quer mesmo pilhar o Jão Fera? perguntou ele.
— Mas decerto, homem!
— E não sabe onde ele se encafua?
— Qu'esperança! Pois ainda estava aqui?
— E se eu lhe ensinasse a toca do bicho?
— Abra o preço, amigo.
— Duzentos bicos?
— Topado.
— Mas há de ser com um ajuste...
— Diga lá.
— Isto fica entre nós dous só. Negócio de muitos não serve.
— É assim mesmo.
— Pois então moita. Toca pra dentro, antes que os camaradas aventem. Olhe que o Tinguá é ressabiado, hein! Vá andando por aí fora. Passando este morro, atrás do outro, há um rancho. Eu já me boto pra lá. É só enquanto avio aqui outro negocinho.
Este curto diálogo travara-se no canto da casa, junto da cerca, onde havia um grosso toco de árvore, denegrido pelo fogo da coivara que ali passara outrora. Ainda quando menos os preocupasse o assunto, dificilmente distinguiria qualquer dos interlocutores, ali a dous passos dele, o vulto decrépito de um negro, arrimado a uma brecha da cepa carcomida com a qual se confundia, como o escorço de uma sapopema.
Seguiu Filipe o aviso de Gonçalo, e, pagando a despesa à Nhanica, mulher do Tinguá, que fazia no balcão as vezes do marido, na ausência dele, pôs-se a caminho com os companheiros.
Partiam eles por um lado, que do oposto avistava-se um cavaleiro a galope. Era o Barroso que descambando o outeiro, na rápida guinilha do castanho, veio parar à porta da venda.
— Já está por cá? perguntou ao Gonçalo que o esperava no terreiro.
— Ora! O milho que a mula comeu quando cheguei já teve tempo de grelar! tornou o Gonçalo rindo-se da sua pilhéria.
— Pois bom proveito lhe faça a roça!
Retorquindo assim ao Pinta, dirigiu-se o Barroso à vendeira:
— Quede este homem?
— Ele não está, nhor não!
— Onde foi?
— Na vila, nhor sim.
— Quando volta?
— Volta logo.
— O diabo o leve e mais quem o ature.
Saiu o Barroso da venda fumando e a respingar contra o Chico Tinguá que lhe havia pregado um famoso logro; qual fosse, não o dizia ele; mas despicava-se em ferrar o dente no pobre do vendeiro.
— Que lhe fez cá o homem? inquiriu Gonçalo.
— É um refinado tratante, ele e mais o tranca do Jão Bugre.
— O patrão também tem negócio com esse danado? disse Gonçalo.
— Pois o negócio era com ele; mas o patife não ata nem desata; e já a cousa me cheira a caçoada.
— Que quer? O senhor foi se meter com ele; não tinha que ver!
— Então não é o que dizem?
— Qual! Gabolice tudo! Não deixa de ser valente. Lá isso é verdade. Mas onde vê, já o encostei, e só com este braço. Não é debalde que me chamam de Suçuarana!
— Contanto que me avie o diabo depressa.
— Não custa. É só falar; o mais fica por minha conta. Eu cá não sou lerdo como o Bugre. Ainda bem o ajuste não está feito, que eu já ando com a obra em meio.
— Pois vamos acabar com isto de uma vez.
Cavalgaram os dous de novo e seguiram pela estrada na mesma direção que havia tomado pouco antes o Filipe com sua troça.
Neste momento o casco da cabeça do negro, lisa como um quengo, surdia por cima da velha cepa queimada, e dous olhos que pareciam carbúnculos, se alongaram pelo caminho além:
— Eh! branco mesmo!... resmungou uma voz trôpega.