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Til/II/X

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Tirando do balaio uma varinha de peroba em forma de flecha, que lhe servia para esticar o pano, quando tomava o ponto às meias ou cerzia a mais roupa, Berta começou a traçar no chão as letras do alfabeto.

À proporção que Brás acertava com o nome de cada letra, a ia apagando a mestra gentil com a ponta do pé buliçoso e faceiro, para escrever outra e outra até o fim do abecedário, como se costuma nas escolas sobre a ardósia.

O grande esforço, que faz o idiota para decifrar as letras e sílabas, ressalta-lhe do rosto contraído. As feições de ordinário balordas e flácidas, como abandonadas à sua materialidade pela ausência do espírito, as confrange neste momento a tensão violenta do bestunto porfiando romper a rija crosta que o empederniu.

Assim pasmam-se, em uma fixidez espantosa, as pupilas vagas e amortecidas; a belfa caída sempre como a mandíbula de um animal, a arreganhar a boca, dava-lhe uma expressão lorpa; mas agora comprime fortemente o lábio superior, e a ponto que rangem-lhe os dentes e nas ventas sibila o sopro da respiração ofegante.

Às vezes parecia que, extenuado por esse afã, o bronco entendimento do rapaz ia desfalecer e sucumbir; pois perpassava-lhe no semblante uma ânsia repentina e seus olhos apagavam-se, como se a enorme cabeça vacilasse.

Nesses momentos de obliteração, porém, o doce olhar de Berta sustinha aquele espírito titubeante prestes a submergir-se nas trevas. Entrelaçando o rude labor da lição com sorrisos e meiguices, que orvalhavam a alma enferma do mísero idiota, a carinhosa mestra não só incutia-lhe o ânimo de perseverar no insano esforço, como iluminava com um vislumbre de sua alma a densa caligem daquele cérebro granítico.

— Esta letra, Brás!... Não se lembra?... Olhe para mim, olhe bem! O que estou fazendo?...

— Rindo?

— Então que letra é?

— Erre?... dizia o rapaz depois de lenta cogitação.

— Isso mesmo.

Outras vezes, para dirigir o entendimento de Brás, e despertar-lhe a embotada reminiscência, contava Berta uma história, imitava o canto de um pássaro, ou inventava um brinquedo que suscitasse a noção esquecida.

Embora já tivesse Brás percorrido quase toda a carta de leitura, de súbito, e não obstante esse adiantamento, faziam-se em seu entendimento profundos eclipses. Dir-se-ia que apagava-se de todo o morno lampejo da inteligência bruta; e que esse crânio vazado em molde humano descia abaixo de uma caveira suína.

Por isso Berta o obrigava a repetir constantemente tudo quanto já havia aprendido, no intuito de, à força de hábito, por uma espécie de atrito contínuo, gravar-lhe profundamente no boçal engenho os rudimentos que tinha ensinado com admirável paciência. Só de tal sorte conseguira ela inserir nessa bruta animalidade algumas ideias, que aí permaneciam como inscrições lapidárias abertas em lousa.

Era Brás filho de uma irmã de Luís Galvão, a qual falecera três anos antes, ralada pelos desgostos que lhe dera o marido, e pelo suplício incessante de ver reduzido ao lastimoso estado de um sandeu, o único fruto de suas entranhas.

Quando morreu, já era de muito viúva a infeliz senhora; e, pois, com a sua perda, ficou Brás sem outro arrimo, a não ser Luís Galvão, seu tio e mais próximo parente, que o trouxe imediatamente para casa e desvelou-se como pôde, pela sorte da mísera criança.

Compreende-se quanto devia custar a D. Ermelinda, ciosa em extremo da morigeração de seus filhos, o receber no íntimo seio da família um menino até certo ponto estranho, e não só baldo de toda a educação, como incapaz de recebê-la. Mas compenetrara-se a digna senhora que seu marido, recolhendo o sobrinho órfão e servindo-lhe de pai, cumpria um rigoroso dever; e tanto bastou para que não suscitasse a menor objeção. Resignada ao mal inevitável, socalcou sua repugnância.

Somente exigiu de Luís Galvão, e isso o fez com autoridade de mãe, que, recebido Brás e tratado como filho da casa, se evitasse contudo seu íntimo contato com Afonso e Linda, conservando-os, quanto possível, alheios à existência do primo, e impedindo o menor trato e convivência com ele.

Consentia D. Ermelinda em ser-lhe mãe e cercá-lo de toda a solicitude, apesar da natural repulsão que deviam causar à sua índole tão delicada os modos brutais e parvos do idiota. Não lhe sofria porém o coração que seus filhos vissem nesse menino mal-amanhado e grosseiro um camarada e um parente, quanto mais um irmão.

Apesar de convencido da inutilidade de seus esforços, não os poupava Luís Galvão para reparar a desgraça do sobrinho ou pelo menos atenuá-la. Havia em Santa Bárbara uma aula pública de primeiras letras, a qual ainda o vulgo pelo costume antigo tratava de escola régia. Servia de mestre um latagão de verbo alto e punho rijo, que fora outrora ferrador e a quem chamavam Domingão.

Fiel às tradições da antiga profissão, entendia ele lá de si para si que um bom processo de ferrar bestas devia de ser por força excelente método de ensinar a leitura e a tabuada; e fossem tirá-lo dessa ideia! Assim encaixava o abecê na cachola do menino com a mesma limpeza e prontidão com que metia um cravo na ferradura. Era negócio de dous gritos, um safanão e três marteladas.

Tal era o professor, a quem foi incumbida a tarefa de ensinar a ler ao Brás. Depois dos três primeiros dias de indulgência, pôs o ferrador em prática o seu método repentino, que desta vez, com pasmo seu, falhou completamente. “Nunca, em sua vida, dizia ele, tinha encontrado um jumento de casco tão rijo”.

Debalde o Domingão brandiu a pesada palmatória de guaratã, e ferrou uma chuva de formidáveis carolos na cabeça do Brás; não conseguiu dele em um mês que repetisse o nome das três primeiras letras. Quando lhe puseram nas mãos a carta pregada em uma tábua, o menino percorreu todos aqueles hieróglifos com olhos pasmos e botos, e só deu sinal de atenção, em descobrindo o til.

Então expandiu-se-lhe o estúpido semblante com um riso alvar, que estertorou na gorja, e, tomado por súbita alacridade, ele, de ordinário soturno e pesado, começou a fazer trejeitos e gatimonhas ao pequeno sinal ortográfico, procurando imitá-lo à uma com os dedos, com a boca, e até com todo o corpo nos saltos extravagantes que dava pela casa.

Toda a escola disparou a rir; e o mestre no primeiro momento não se pôde conter; mas logo refazendo a carranca magistral, pôs cobro ao escândalo.

Sem embargo, repetiu-se ele ao outro dia, e em todos que se lhe seguiram. Em apresentando-se a carta ao marmanjo, era a mesma indiferença para tudo, e a mesma festa grotesca ao til.

Com as mãos doídas das palmatoadas, e a cabeça empolada dos coques de régua, fugia o pobre do Brás para o mato, onde ia descobri-lo o pajem, que diariamente o acompanhava pela manhã da fazenda à escola e vinha buscá-lo por volta de uma hora da tarde.