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Til/II/XV

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Era véspera de São João.

Na Fazenda das Palmas, desde muito cedo que se faziam os aprestos para a festa daquela noite de folguedos. Já o pátio estava enramado de coqueiros; e no centro erguia-se uma pilha de lenha para a fogueira fatídica.

Nhá Tudinha se instalara na cozinha. Cercada de uma multidão de caçarolas, frigideiras, gamelas, alguidares e latas, a repolhuda comadre repimpava-se no cepo do pilão, para distribuir suas ordens pelas raparigas; mas não se podia ter que não saltasse logo do seu pedestal e acudisse aqui e ali, em toda a parte, com uma azáfama crescente, o que fazia dizer a crioula Rosa, em aparte ao Faustino:

— Gentes! Esta mulherzinha tem bicho-carpinteiro.

D. Ermelinda abdicara naquele dia em nhá Tudinha o governo da cozinha e despensa para ocupar-se exclusivamente com a recepção dos hóspedes que eram esperados à tarde.

Depois do almoço, Linda e Berta com os braços entrelaçados pelas cinturas, desceram ao terreiro por uma das escadas laterais e depois de percorrerem as ruas de coqueiros e o pavilhão de folhagem que tinham arranjado ao redor da fogueira, foram abrigar-se do sol na horta à sombra de uma latada, onde podiam conversar à vontade.

Linda parecia triste. A próxima festa, longe de enflorar, lhe desfolhava o brando e mavioso sorriso. Como o dourado inseto que se esconde entre as pétalas da rosa, havia um segredo a suspirar nesses lábios mimosos.

— Esta noite as moças ficam sempre tão contentes! disse a menina em tom de suave queixume.

— E você? tornou Berta com um sorriso.

— Eu não!

— Por que, Linda?

— Todas têm uma pessoa que pense nela.

— Então você não tem? perguntou Berta com um doce remoque.

Linda abanou a cabeça melancolicamente.

— E Miguel?

— Ele não gosta de mim! suspirou a menina com o lábio balbuciante, e uma lágrima a tremer na pálpebra.

Respondeu-lhe Berta com uma fresca risada, que debulhou mesmo nas faces da amiga, como os bagos nacarados e saborosos de uma romã.

— Olhem que sonsinha!...

— Nunca mais lhe direi nada, Berta! acudiu Linda, ressentida do modo por que recebera a amiga sua confidência.

— Pois, menina, você tem lembranças, que a gente não pode mesmo deixar de rir-se. Então Miguel não gosta da senhora? Era preciso que ele não tivesse olhos para ver essa carinha de feitiço.

— Há outra que ele acha mais bonita!

— Outra?... Qual?... perguntou Berta de todo confusa.

— Esta, que ele vê a todo o momento! replicou Linda, afagando o semblante da amiga com um gesto de triste resignação.

De novo disparou Berta a rir com a lembrança da amiga.

— Ai, que ciumenta, Jesus!

Retiniu perto o grito áspero do curiau. No meio do silêncio que reinava naquele sítio, como era natural, excitou esse brusco rumor a atenção das duas amigas, e arrancou-as à anterior preocupação. Berta sobressaltou-se com a lembrança de que ouvira o mesmo apito no dia da tocaia.

Conteve-se receando assustar Linda; mas, apesar da promessa que lhe fizera o Bugre, estremecia com a ideia de que Luís Galvão devia chegar de Campinas naquela manhã, e talvez ao passar na volta da Ave-Maria fosse vítima do assassinato que ela uma vez impedira. Em falta de Jão Fera, a oculta vingança que ameaçava a existência do fazendeiro, teria procurado outro instrumento.

— Vamos ao mirante, Linda? O Sr. Galvão não pode tardar.

— Papai só chega ao meio-dia, respondeu a moça erguendo-se para acompanhar a amiga.

Na ocasião em que as duas atravessavam a horta, um vulto se esgueirando por detrás dos pessegueiros, passava a cerca e sumia-se no canavial. Berta que o viu nessa ocasião, e apenas de relance, inquiriu de Linda para certificar-se.

— Não é o Faustino aquele?

A filha do Galvão, distraída, de nada se apercebera.

Não se enganara Berta. Era de feito o pajem Faustino, que saíra de casa sorrateiramente para acudir ao grito do curiau, sinal combinado com o Barroso. Atravessando três ou quatro talões do canavial, foi ele surdir justamente no lugar onde anteriormente, no dia da partida de Luís Galvão, estava de espreita o Monjolo.

Era um sítio escuso e sáfaro; ficava embaixo de uma barranca, escondido pelo maciço do canavial e pelo matagal embastido que já invadira o valado.

Aí estavam Barroso e o Monjolo, ambos com o ouvido à escuta de qualquer rumor que lhes anunciasse a chegada do pajem. O branco descansava encostado à barranca; o negro estava acocorado como gambá, junto a uma casa de cupim.

— Então o diabo chega, ou não chega? disse o Barroso ao Faustino, mal lhe pôs os olhos.

— Não tarda; antes do meio-dia está aí, sim senhor, respondeu o pajem.

— Eh! eh!... fez o Monjolo.

— Vem mesmo?

— Se vem!...

— Pois então, esta noite é o batuque. Estão ouvindo?

— Monjolo já está sacudindo, sim senhor! disse o africano fazendo jeito de saracotear.

— Tomara eu ver a dança! acudiu o pajem.

— Olhem lá! Cuidado em trancar a negralhada no quadrado, senão está tudo perdido.

— Isto é com Monjolo!

— Monjolo arranja tudo, deixa estar.

— Quando estiverem bem seguros é só dar o sinal, que o fogo rebenta cá no canavial. O diabo corre para acudir; e aí você, rapaz, tranca também a gente da casa, a mulher e os filhos, e espera, que eu não tardo, para arranjar a história. Ouviram bem?...

— Não tem dúvida! disse o Faustino.

— Você que é mais ladino, explica bem àquele pai.

Riu-se o Monjolo, com uma expressão bestial, que parecia confirmar o dito.

— Mas... replicou o Faustino. Eu cá é com a condição que o senhor sabe. Eu, forro; a Rosa, para mim, e o mulato surrado como canhambola.

— Pois está entendido! disse o Barroso. Foi o ajuste.

Fuzilou uma chispa na rúbida pupila do africano.

— E tu, paizinho?

— Monjolo não quer nada, senão jimbo muito para comprar fumo e cachaça.

— Fica descansado.

Separaram-se os cúmplices. O pajem voltou à casa, Monjolo à roça, e Barroso foi juntar-se a pouca distância ao Gonçalo Pinta, que o esperava com dous animais à destra.

Apenas se desvaneceu o rumor dos passos, que um galho murcho atirado a um canto da barranca se agitara, descobrindo a boca de um covão, talvez de tatu-canastra, de onde saiu de rojo meio corpo do Brás.

Daquele escondrijo, a que se acolhera para o não surpreenderem, ouvira o idiota a maquinação do Barroso, e, fato incrível, a compreendera, ou antes a sentira, porque não fora pela razão, mas por uma sorte de faro moral, que recebera essa percepção.

Adivinhara a intenção dos cúmplices, como o animal carniceiro conhece o desígnio do caçador e o acompanha para aproveitar dos despojos das vítimas.

Um riso, que ressumbrava brutal crueldade, arregaçou-lhe os beiços estúpidos.