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Til/IV/III

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(Redirecionado de Til/II/XVIII)

Berta erguera-se, relanceando em torno um olhar sôfrego.

O que procurava ela?

Um brinco, um prazer, uma alegria, onde se refugiasse da tristeza que ia apoderar-se de sua alma. Mas, no meio daquela festa que a envolvia, ela sempre tão jovial, ela em cujo lábio o sorriso borbulhava como onda perene, não encontrou um folguedo que a atraísse.

Descobrira, porém, acocorado contra o ressalto do alicerce, Brás, que roia um sabugo de milho assado, cujo grão já tinha devorado. Nessa ocupação, esgrimindo os queixos e coaxando a língua, não desprendia ele os olhos do rosto de Berta, cuja melancolia se refletia na obscuridade de sua alma, como se reflete na face da terra a sombra da nuvem que intercepta os raios do sol.

Chegou-se a menina pressurosa para junto do idiota; o conforto, que não encontrara nas folias que a cercavam, ali estava na afeição generosa e compassiva que lhe inspirava aquela mísera criatura. O desânimo a invadira, acreditando estar só no mundo; mas já não o sentia, pois sua alma tinha ainda uma dedicação para a ocupar, e sacrifícios em que derramasse os mananciais inexauríveis de sua bondade e ternura.

Afagou o idiota com as palavras meigas, de que seu lábio tinha o condão; e ficou ao seu lado para o consolar do isolamento em que o deixavam. Já que não podia caber àquele ente infeliz outro quinhão nessa noite de tamanho regozijo para todos, ao menos lhe reservava ela seu carinho.

Não se teve, porém, a menina que não volvesse outra vez os olhos para o lindo grupo formado pelos dois namorados. Linda, com os estremecimentos íntimos da planta que a manhã orvalha, e a fronte de leve pendida, embebia-se na palavra apaixonada de Miguel, que reclinava-se por detrás da haste da palmeira para falar-lhe ao ouvido.

De novo aflou o seio de Berta com um suspiro, que ela, como ao primeiro, recalcou; mas já não pode desprender o pensamento das cismas em que se enleara, a ponto que não viu o Brás esgueirar-se pela sombra e sumir-se.

Que passava na alma da menina?

Não fora ela quem aproximara Miguel de Linda, e com admirável paciência durante meses urdira a teia delicada que envolvia os dois namorados?

Não era obra sua esse amor, que ela própria embalara como um filho querido, nutrindo-o de suas carícias, enfeitando-o com seus encantos, vivendo e sorrindo-se nele?

Como agora, obtido o êxito de seus desvelos incessantes, em vez da satisfação de ver realizado um voto querido, confrangia-se-lhe o coração com o quadro suave do mútuo afeto, que ainda naquela manhã luzia-lhe na imaginação qual doce esperança?

Parecerá excêntrica e até incompreensível esta situação da alma de Berta naquele instante: entretanto nada mais lógico e natural.

Tinha a menina por Miguel uma dessas afeições de infância, puras, calmas e serenas, primeiros botões, dos quais ninguém sabe que flor vai sair, se uma doce amizade, se uma paixão ardente.

Adivinhando um dia que Linda gostava do moço, em vez de zelos sentiu contentamento de ver querido seu irmão de leite e companheiro de infância. Talvez que ela com sua ingênua admiração bafejasse, no coração da amiga, aquele afeto nascente, retocando com os lumes de sua graça o nobre perfil do mancebo.

A natural esquivança de Miguel trouxe as desconsolações de Linda, que se julgava desdenhada, e vertia no seio da amiga a confidência dessas mágoas. Agoniava-se Berta com essas névoas de melancolia, que ensombravam a fronte da moça; e, para desvanece-las, ia pedir um olhar, uma palavra ao mancebo.

Apesar de ter recebido uma instrução regular, que sua inteligência brilhante desenvolvia com o estudo possível ao lugar onde habitava e às suas condições de fortuna, conservava Miguel certos hábitos que, durante a infância, se incrustam na individualidade, da qual dificilmente os arranca mais tarde a própria vontade.

Esses cacoetes de caipira molestavam o tato delicado de Linda, a quem a educação esmerada, que recebera de sua mãe, dera a fina flor das maneiras e imprimira o tom da mais pura elegância.

Quando Miguel a tratava de mecê, ou enrolava diante dela a palha de um cigarro, o coração da menina apertava-se com agastura indescritível, e ela sofria desgosto igual ao que lhe causaria uma nódoa caindo no mais bonito e faceiro de seus vestidos.

A repetição dessas pequenas decepções acabaria sem dúvida por delir completamente n’alma de Linda a imagem de Miguel. Berta o percebeu, e desde então empenhou-se em desbastar as asperezas que magoavam o melindre da filha de D. Ermelinda.

Não lhe era difícil transmitir os toques da elegância que, ao contato de Linda, prontamente se comunicara à sua alma, de tão pura gema como a dela, embora não a polisse o amor de mãe prendada e rica.

A dificuldade estava em sofrer o gênio esquivo de Miguel esse desbaste de costumes e maneiras, que se tinham impregnado em sua natureza, que faziam parte de sua pessoa, e o tinham formado à semelhança de seus patrícios e camaradas. Mudar esses modos era quase renegar o exemplo de seu pai, as tradições de sua terra, e envergonhar-se de ser paulista, o que bem ao contrário lhe inspirava um justo orgulho.

Não resistiram, porém, estas suscetibilidades ao encanto de Berta. Soube ela provar a Miguel que, antes de ser paulista da gema, era homem e devia render preito à beleza e ao capricho da mulher. Com que raciocínios chegou a essa conclusão, bem se adivinha; o cérebro feminino é uma roda movida pela manivela do coração.

Nessa metamorfose de Miguel, cuidou Berta que apenas a movia o desejo de contentar Linda; mas, sem o sentir, era também levada pelo prazer recôndito de ver seu irmão de leite subir na estima geral e primar entre os outros moços.

Queria-lhe muito bem, a ele, como era então; porém, mais lhe havia de querer, quando fosse o que ela desejava.

Tudo isso fizera Berta para que Miguel e Linda se amassem; fora ela quem, diligente abelha, fabricara, sugando as flores de sua alma, aquele mel perfumado, de que os dois amantes libavam a fina essência.

Mas iludira-se!

Enquanto aquele amor fluía e refluía nela, como uma onda que banhava seu coração; enquanto Linda e Miguel se queriam dentro de sua alma, através de seu olhar ou de seu sorriso, identificara-se por tal forma com essa afeição, que a sentia duplamente, por si e pela amiga.

Era ela quem amava Miguel; mas por Linda. Era Linda a quem Miguel amava; mas na pessoa dela, Berta.

Agora que na delícia das primeiras efusões, nesse egoísmo sublime do amante que se convolve em si para dar-se todo ao objeto amado; quando Miguel e Linda a esqueciam, e, absorvidos no mútuo afeto, a deixavam só, erma de seu pensamento, órfã de seu mútuo afeto, ela suspirava.

E esse suspiro era a tímida confidência que lhe fazia o coração, de um amor que ela sentia pela vez primeira, no momento de o perder para sempre!

— Agora vou eu! gritou Afonso perto do mastro.

Ao mesmo tempo soava o alarido dos rapazes, e Berta corria arrebatadamente para Linda.

Alguma coisa de extraordinário sucedera.