Til/IV/V

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À direita do terreiro, adumbra-se na escuridão um maciço de construções, ao qual às vezes recortam no azul do céu os trêmulos vislumbres das labaredas fustigadas pelo vento.

Do centro dessa mole negra surge um longo penacho de fumaça, cujo cabo se tinge de escarlate com as línguas da chama quando ala-se. Escapa-se também um borborinho formado não só pelos ressolhos da labareda e crepitações da lenha, como por vozeio e vivas d’envolta com os retumbos soturnos do jongo.

É aí o quartel ou quadrado da fazenda, nome que tem um grande pátio cercado de senzalas, às vezes com alpendrada corrida em volta, e um ou dois portões que o fecham como praça d’armas.

Em torno da fogueira, já esbarrondada pelo chão, que ela cobriu de brasido e cinzas, danças os pretos o samba com um frenesi que toca o delírio. Não se descreve, nem se imagina esse desesperado saracoteio, no qual todo o corpo estremece, pula, sacode, gira, bamboleia, como se quisesse desgrudar-se.

Tudo salta, até os crioulinhos que esperneiam no cangote das mães, ou se enrolam nas saias das raparigas. Os mais taludos viram cambalhotas e pincham à guisa de sapos em roda do terreiro. Um desses corta jaca no espinhaço do pai, negro fornido, que não sabendo mais como desconjuntar-se, atirou consigo ao chão e começou de rabanar como um peixe em seco.

No furor causado pelo remexido infernal, alguns negros arremetiam contra a fogueira e sapateiam em cima do borralho ardente, a escorrer do braseiro.

Entre estes o primeiro e o mais endiabrado, foi Monjolo; tomando por sua parceira de batuque a própria fogueira, atirou-lhe tais embigadas, que a pilha de lenha derreou e foi esboroando-se. Entretanto o negrinho, a requebrar-se, abria o queixo e atroava os ares com esta cantiga:


Candonga, deixa de partes
É melhor desenganar,
Que este negro da carepa
Não há fogo pra queimar.


Salvo os rr finais que ele engolia e os ll afogados em um hiato fanhoso, tudo o mais era produção do estro africano e da sua veia de improviso.

Uma grossa anca resvalara da fogueira com as embigadas e viera cair junto aos pés cambaios do negro, que saltando-lhe em cima com ímpetos de possesso, começou de moer as brasas com os calcanhares, berrando:


Monjolinho soca milho
Bem socado, pa-ta-pá!
O mamãe[1], que dê a gamela
Pra juntar este fubá!
Tuque, tuque, tuque, tuque,
Tuque, tuque, zuque, zuque.


De vez em quando o garrafão de cachaça corria a roda. Cada um depois de mil trejeitos e negaças dava-lhe o seu chupão, e fazendo estalar a língua repinicava o saracoteio.

À parte, junto a um dos portões e sob o alpendre das tulhas que ficam a um canto do quadrado, estão em grupo os feitores e camaradas; uns de pé, arrimados aos esteios, outros sentados no pranchão que serve de soleira.

O Mandu arranha na viola uma chula, e o Pereira acompanha o toque com repentes que lhe acodem, enquanto os outros contam façanhas de caipira e vão-se impingindo limpamente um par de formidáveis carapetões.

Bem desejavam os sujeitos entrar na súcia e fazer uma perna no batuque; mas, impedidos pela disciplina da fazenda, contentam-se em olhar de fora e engraçar com as crioulas, que às vezes saem da roda para vir trocar lérias e receber, em paga dos milhos assados e batatas, algum descante neste gosto:


Não como inhame cozido;
Não gosto de milho assado;
Quem me quiser derretido
Me dê mendubi torrado.


Uma preta, porém, ali estava, que decerto não fora trazida por aquele motivo, pois recostada ao frontal do portão, com os olhos voltados amiúde para o lado da casa de morada do senhor, ouvia distraída as chalaças dos capangas.

Essa preta é a Florência: uma estátua de Juno, toscamente lavrada em mármore negro, e coberta com um cabeção de renda que lhe mostra o colo, e uma saia de riscado caída até o meio da perna musculosa.

O Mandu logo que ela chegara, atirou-lhe este mote.
Casca preta, bago branco,
Mas arde que não se agüenta:
Huê, que visaje é esta,
A fruita[2] virou pimenta?


— Qual, disse o Pereira. A moça está com sentido no pajem.

— Ora menina, deixe-se disso. O patife do Amâncio não vem cá!

— Está lá ao cheiro da cozinha! acudiu outro.

A crioula mordeu os beiços de cólera; e começou de rufar os dedos nas grades do portão. Quase ao mesmo tempo destacou na sombra um vulto, no qual logo se reconheceu o mulato.

— Não vem! exclamou a Florência voltando-se com ar exultante para os caipiras e mostrando-lhes o pajem.

— Como vai o pagode, por cá? disse o Amâncio.

Disfarçadamente a crioula arredou-se do grupo dos capangas, e encaminhou-se para a roda do batuque, lançando um olhar ao pajem. Não estava ainda de todo satisfeito o seu gostinho, que era fazer o Amâncio cair no samba rasgado.

Que triunfo para ela, negra da roça, se humilhasse a mucama Rosa, sua altiva rival.

Hesitou o mulato algum tempo, receoso de derrogar de sua nobreza de pajem misturando-se com a ralé da enxada, até que rendido pelos lascivos requebros da crioula, que já se espreguiçava ao som do urucungo, saltou no batuque.

No mais forte sapateado, porém, sentiu o pajem que lhe travavam da gola da jaqueta; e puxado para fora da roda com força, achou-se em face da mucama Rosa, que viera arranca-lo da dança, furente de ciúmes.

As duas rivais se afrontaram com o olhar, por diante da cara desfaçada do mulato. Os alvos dentes de Rosa brilharam engastados em um riso de escárneo, que lhe arregaçava os lábios carnudos, e dentre as fendas dos incisores partiu um rápido esguicho, que bateu em cheio na cara da outra.

Foi pronta a réplica de Florência. Vibrando no ar o braço habituado a manejar a enxada espalmou a mão na bochecha da mucama, que titubeou e decerto iria ao chão a não ampara-la o mulato.

Amâncio à vista do bofetão decidiu-se pela Rosa, e atirou à Florência uma cabeçada. Mas a preta agarrou-o pelos cabelos; e ele apertou-lhe as goelas a fim de livrar-se das garras daquela fúria. Entretanto a Rosa ferrava os dentes no ombro da rival, que defendia-se aos pontapés.

Os pretos da roça acudiram à sua parceira, insultada pela cambada de pajens e mucamas. Os capangas tomaram o partido de Amâncio por uma espécie de coleguismo; e assim tornou-se geral o banzé.

Agachado no meio do terreiro, bebendo seu pito, Monjolo que se retirara do batuque, observava com viva agitação aquela cena. Seus olhos saltados das órbitas, como dois lagartos negros quando pulam da toca, devoravam com uma volúpia feroz a figura de Rosa.

Felizmente acudiu o Faustino que ajudado de outros pajens, arrancou a mucama do sarilho; e levou-a à força para a casa.

À porta do administrador batia a sineta o toque de recolher.

Notas[editar]

  1. 1. Mamãe: chamam os escravos da roça as pretas rancheiras que preparam a comida.
  2. Fruta em São Paulo é a jabuticaba, pela sua excelência. Alguns dizem aportuguesadamente fruita.