Til/IV/VI

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Terminara a festa.

A escuridão profunda de uma noite brumosa envolve a casa das Palmas e os edifícios adjacentes.

Do borralho acamado sobre as extintas fogueiras apenas escapam raras fagulhas, que esfoliam-se no ar e se apagam.

Soa ao longe tropel de animais, intercalado às vezes por trechos de alegre descante. São ranchos de convidados que tornam às casas.

Da várzea, entre o zumbir dos insetos noturnos, perpassavam nos sopros da brisa as rascas da viola, que à porta da palhoça ainda arranhava por despedida algum caipira saudoso.

Pouco mais era de meia-noite. A função que prometia prolongar-se até lá pela madrugada, esfriara de repente, com bastante pesar dos velhos comilões, os quais não puderam atolar-se na lauta ceia, pois o tempo mal lhes chegou para fartarem-se uma só vez de cada prato.

Ferida nas duas cordas mais delicadas de seu coração, no amor de esposa e mãe, D. Ermelinda, apesar de grande esforço e do habitual disfarce que o trato da boa sociedade prescreve como regra de cortesia, não pode abafar a tristeza que lhe transbordava dos seios d’alma.

O amortecimento das maneiras afáveis e da graciosa amabilidade da dona da casa derramou nos convidados um súbito constrangimento; a festa perdeu desde logo a sua expansiva alegria; os mais desconfiados, ou os mais paulistas, cuidaram em retirar-se, que não acharam a costumada e carinhosa resistência.

Então começou a debandada. Ainda tentou Luís Galvão reanimar a folia; mas um olhar de sua mulher e o abatimento que se pintava em seu gesto, o demoveu logo do propósito de reter os amigos e prolongar os folguedos.

Já todos se haviam acomodado para dormir; só D. Ermelinda, com o mesmo traje da festa, que não despira ainda, velava imóvel no seu toucador.

Atirada ao fundo de um sofá, na sombra que projetava um vaso de porcelana colocado diante da vela para quebrar a luz, tinha os olhos ficos na imagem de N. S. das Dores, que se via sobre a cômoda em um nicho de jacarandá.

Talvez pedisse à Mãe de Deus, à divina consoladora dos aflitos, um conforto para sua alma, atribulada naquele instante por pensamentos que a enchiam de horror e angústia.

Nunca passara pela mente de D. Ermelinda pedir a seu marido contas de um passado que não lhe pertencia, e até por melindre natural evitara sempre folhear aquela página da mocidade de Luís Galvão. Advertia-lhe o coração das desilusões que ali a aguradavam; e por isso preservara a sua ignorância como um véu protetor contra as suscetibilidades e zelos de sua alma.

Subitamente, porém, quando menos esperava, surge-lhe aquele passado, dentre as alegrias de uma festa, e lança em seu espírito uma certeza fatal, a que por muitos anos e tão cuidadosamente se esquivara.

E sobre esse golpe, outro ainda mais cruel talvez para almas como a sua, apuradas por uma suprema delicadeza e uma esquisita sensibilidade. A forma rude e baixa por que se tinha revelado o passado de Galvão, sobretudo a magoou profundamente.

Se lhe contassem da mocidade de seu marido alguma afeição pura e generosa, no meio do seu desencanto, teria ao menos o doce consolo de haver delido d’alma de Luís aquela imagem querida, gravando sobre ela a sua.

Mas a notícia de uma aventura galante, própria de um libertino, além de arranca-la à querida ilusão de ter sido o primeiro amor, lhe derramara n’alma uma agrura, como nunca sentira.

O caráter que até ali respeitara, descia de repente em seu conceito; e ela enchia-se de pavor quando sua imaginação, exaltada pelo sofrimento, lhe abria as profundezas insondáveis onde podia se precipitar o homem a quem ligara sua sorte.

Depois, por uma natural associação, recordando-se da intimidade de Linda com Miguel, no coração da mãe caíam as gotas acerbas que vazavam do coração da esposa. Pensava D. Ermelinda, que a filha criada por ela com tanto esmero, sucumbia à fatalidade e ia arrastada por um pendor irresistível, que o pai lhe transmitira de herança.

Assim como Luís uma vez deslizara da honra que pautara sempre os atos de sua vida, e a nobreza de seu caráter se eclipsara ante a sedução de uma moça, Linda cuja alma ela se comprazera em colocar numa esfera elevada, se inclinava a um rapaz de posição muito inferior.

E aqui a sua fantasia, convolvendo as torturas da esposa com ânsias de mãe, esvairava por modo que ela, espavorida de sua própria mente e não podendo sofreá-la, asilava-se contra esse delírio numa oração fervente a Nossa Senhora.

Luís Galvão, inquieto com a demora da mulher, a chamara; e, não recebendo resposta, veio acha-la na mesma posição.

— Que tem você, Ermelinda?

Estremeceu a senhora; e toda ela pulsou, como se a dor que tinha calcado dentro da alma se agitasse para refluir aos lábios. Mas a boca descerrando-se deixou escapar apenas um ofego, e ficou muda.

A palavra é estreita para dar passagem às mágoas amassadas no coração, quando se arremessam no primeiro ímpeto e de um só jato.

— Nada! respondeu D. Ermelinda.

— Por que não se deita?

Nesse instante repercutiu no aposento o som de três pancadas fortes, secas e breves, dadas rapidamente uma sobre outra.

Abriu Galvão a janela do canto, que ficava na ala direita do edifício, para observar o terreiro, donde viera o estrépito. Mas este cessara bruscamente com a última pancada; e o silêncio de todo se restabelecera.

Debruçando-se à janela, o fazendeiro lobrigou uma sombra que parecia resvalar ao longo da parede.

— Quem está aí?

Não houve resposta. Julgando ter-se enganado em tomar por vulto humano o vôo de um morcego ou qualquer outro pássaro noturno, ainda mais o convenceu disso um guincho de curiau, que estrugiu para o lado da senzala.

Não se enganara, porém, o fazendeiro. Foi de fato um homem, que se coseu à parede e se encaixou no vão de uma porta, onde permanecia imóvel e esticado para dissimular a saliência do corpo.

Tendo fechado por fora os pajens e capangas no repartimento que eles ocupavam, cuidou Faustino de impedir-lhes a saída por uma das janelas que não tinha grades. Para esse fim munido dos instrumentos necessários, encostou-se a ela para prega-la.

A esse tempo arrumava-se ao muro uma trouxa negra que avançara pelo terreiro aos pinchos como um sapo. Era o Monjolo que já havia furtado as chaves da senzala e vinha ter com o pajem.

O africano ruminava a idéia de suprimir desde logo o Faustino, a fim de lograr ele só os proventos do trama. Naquele curto instante correu o pajem sério perigo de que o salvou o rumor da janela ao abrir-se.

Afastando-se ligeiro para a senzala, soltou o Monjolo o guincho que tranqüilizou o fazendeiro, e entretanto era o sinal do trama sinistro.

Acabava Luís Galvão de correr o trinco da janela quando no canavial a primeira labareda se arremessou nos ares, enroscando-se como uma serpente de fogo.