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Til/III/IV

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Um grito espantoso retumbou, que estremeceu o assassino e o lançou espavorido fora do aposento.

Antes de sumir-se, porém, viu assomar no quadro da janela o vulto pavoroso de Jão, que de um arremesso atirou-se a ele para despedaçá-lo.

Nesse instante trespassou a alma do Bugre uma voz exausta, que se desprendia a custo do arquejante soluço:

— Jão!...

Prostrou-se o rapaz aos pés da moça, que o Ribeiro deixara agonizante, com o corpo atirado sobre um baú, e a cabeça pendida como o lírio, cuja haste o vento partiu.

Julgando-a morta, Jão só tivera um pensamento, a vingança; não eram lágrimas, mas o sangue do assassino que ele queria derramar sobre aquele despojo do que unicamente amara neste mundo.

— Nhazinha!... soluçou ele de mãos postas.

— Minha filha, Jão, minha... Ele... matá-la!

Concentrara a pobre moça todas as forças naquela ânsia, truncada pelas vascas. Nesse já frio cadáver ainda palpitava o coração materno.

Precipitou-se o Bugre em busca da menina. Zana alucinada apertava convulsamente nos braços contraídos, e com o fito de esconde-la ao seio, quase a sufocava. Foi preciso luxar-lhe os ossos para arrancar a criança.

Quando Jão outra vez ajoelhou aos pés de Besita com a menina ao colo, a mísera mãe, soerguendo o busto num arranco supremo, lançou os braços já hirtos aos ombros do rapaz e cingiu no mesmo abraço Berta e o fiel amigo que a salvara. Arrojou-se então para dar à filha o beijo extremo; mas fugindo-lhe já a luz dos olhos, vacilava a fronte, e os lábios gelados a esmo roçaram pelo rosto da criança, como pelas faces de Jão.

Ao toque desse beijo, desmaiou o Bugre; mas embora lhe fugissem os espíritos, seu corpo não tombou; somente desabou sobre si mesmo, como um penhasco, minado pela base, que soterra-se em seu próprio âmbito.

Passada a vertigem, a vista ainda baça do rapaz lobrigou através de uma névoa escura o vultozinho de Berta, que brincava com a mão gelada de Besita, chilrando como um passarinho.

Aquele beijo fora o supremo adeus da mãe. Besita estava no céu.

Ofegou o peito de Jào com uma ânsia que parecia rompe-lo; e o pranto se arrojou para os olhos sombrios; mas todo esse arremesso de uma dor imensa veio estalar na gorja, e tombando de novo nas profundezas da alma socavada pela dor, deixou apenas escapar uma surda estertoração, semelhante ao estrépito da torrente que se precipita da garganta da serra no abismo dos algares.

Aí, entre o cadáver da mulher a quem adorara, e o corpo frágil da criancinha órfã, se quedou o rapaz um momento, procurando reatar em seu espírito o fio das recordações subitamente apagadas. De repente soltou um brado, e arrojou-se.

Valera-se o Ribeiro da demora que tivera Jão ouvindo a voz exausta de Besita, para fugir e pôr-se fora do alcance de seu perseguidor. O assassino, que tinha maquinado friamente a sua vingança, se preparara para a fuga, no caso de perigo.

Havia cerca de dois anos que esse homem partira de Santa Bárbara, deixando sua esposa no dia seguinte ao do casamento, para Itu, salvar avultados interesses comprometidos. Apesar da pronta determinação, o negociante, seu devedor, já se tinha ausentado; e suspeitava-se que se dirigia a Curitiba.

Foi-lhe no encalço o Ribeiro; e tão feliz que obteve cobrar boa parte da soma. Vendo-se rico de repente, não resistiu o moço à tentação de gozar dos prazeres com que o seduziam a cada instante as gabolices dos tropeiros e marchantes.

Afinal, ao cabo de dois anos, lembrou-se da mulher que deixara ainda noiva, no dia seguinte ao do casamento; e dirigiu-se a Santa Bárbara. Remordia-lhe a consciência; como era natural encheu-se de desconfianças.

Às ocultas aproximou-se da casa; e ficou à espreita. Viu Besita com a filha ao colo; e suspeitou de uma traição. Ao cair da tarde, quando a moça cismava com os olhos engolfados no céu, ergueu-se diante dela irado e ameaçador.

A infeliz prostrou-se de joelhos a seus pés e confessou-lhe tudo, o engano fatal de que fora vítima, e a desgraça irreparável que a separara para sempre dele e do mundo.

A resposta foi um escárneo.

— Ele já era teu amante!

Tomado por um acesso de fúria, deitou as mãos ao alvo colo da moça, e enleando-o com a madeixa, a estrangulara. Acabava essa cruel vingança e pensava em imolar também ao seu rancor a inocente criança, quando o bramido do Bugre o estremeceu de horror.

Sem hesitar ganhara o mato pelos fundos da casa, e embarcando na canoa que o esperava, desceu o Piracicaba com a rapidez que dava a enchente à correnteza das águas.

Pressentindo que o perseguia o ódio profundo e implacável de Jão, ou talvez acossado apenas por um remorso dilacerante, não descansou o Ribeiro enquanto não transpôs o oceano, colocando-o entre si e a terra onde exercera sua vingança.

O Bugre o procurou por toda a parte, mas debalde: o homem estava em Portugal.

Berta fora recolhida por nhá Tudinha, cujo marido ainda vivia. Voltando do povoado a boa mulher ouvira um forte choro de criança que vinha da casa de Besita; e levada por uma curiosidade compassiva, aproximou-se para espiar disfarçadamente pela janela.

Viu Jão que desajeitadamente ninava a criança, desesperada de fome por falta de mama. Tentava o rapaz inutilmente que a menina chupasse a ponta de um pano embebido em café; e vendo sem resultado seu desvelo, caíam-lhe as lágrimas dos olhos em bagas.

Surpreendida com esta cena e assustada com a imobilidade do vulto de Besita, que ela via deitada sobre a cama, nhá Tudinha animou-se a entrar e soube do Bugre o lúgubre acontecimento. Não hesitou desde esse momento em considerar Berta sua filha.

Apesar de ser Miguel muito mais velho do que Berta, ainda nhá Tudinha tinha leite; e ali mesmo acalentou a infeliz órfã dando-lhe de mamar.

O nascimento de Berta e a morte de sua mãe eram um mistério para a gente do lugar. Zana enlouquecera, e Jão, única testemunha daqueles acontecimentos, só por alto os referiu a nhá Tudinha, que nunca revelou o segredo.

A casa onde nascera Berta ficou abandonada, e estava reduzida a tapera, onde vivia a doida, que depois de tantos anos ainda via na sua alucinação desenhar-se a cena pavorosa da morte da senhora.