Til/III/XIV
Brincando e cantando, atravessava Berta os cafezais, já esquecida dos lances que passara, e contente por ter deixado Jão escapo.
Sobressaltou-a, porém, o ramalhar das árvores, agitadas por forte impulso; cuidando que a ameaçava novo perigo, voltou o rosto para descobrir a causa do rumor.
Devia ser ameaçador o que viu; pois desfechou numa carreira cega por entre o arvoredo, sem embaraçar-se com as vergônteas a lhe baterem no rosto, e os gravetos que rasgavam a saia de seu vestido novo de cassa.
Amiúde olhava para trás e redobrava de ligeireza, sentindo-se perseguida por um inimigo que vinha sobre ela com extrema velocidade e não tardaria a alcança-la.
Com efeito já o estrépito dos passos no chão se confundiam; e soava a seus ouvidos o sussurro da respiração que resfolgava com o esforço da corrida.
Ouviu-se um grito de susto.
Colhida em sua carreira, a gentil menina estremecia entre os braços de Afonso, como a rola nas mãos do travesso menino; mas não podia estanvar o riso brejeiro que, represo nos lábios mimosos, lhe estava borbulhando na covinha das faces e no gesto petulante.
— E agora! exclamou o rapaz apinhando os lábios num beijo papudo.
— Ai!
Soltando este chilro, a menina arrepiou-se toda, como para esconder-se em si mesma, e fechou os olhos.
Decorrido algum tempo, e admirada de não sentir na face calor algum, nem ouvir o estalo que esperava, abriu o cantinho do olho, e viu o camarada confuso, tímido, com a vista baixa e o rosto vermelho como um chichá.
O brincão do rapaz, tão desembaraçado e atrevido, quando bolia com Berta em presença da irmã ou perto da gente, agora que se achava só com a menina, a grande distância de casa e num sítio ermo, tomara-se de um súbito enleio, e mostrava-se constrangido.
Foi a muito custo e para disfarçar o acanhamento que ele, desviando o rosto, disse à menina:
— Você não me quer bem!
— Quero, sim! acudiu a moça que recuperara sua travessa isenção.
— E a Miguel?
— Também!
— Mas Miguel é quase seu irmão.
— E você?
— Eu não! replicou vivamente Afonso.
O dito de Berta sem dúvida o molestara; pois tão prontamente e com tamanho calor o contestou ele. Ficou séria a menina, a qual lhe tornou já amuada:
— É sim!
— Mas... arriscou Afonso titubeando, os irmãos... não... se casam, Berta.
— Porque não é preciso! replicou a travessa com um arzinho arrebitado, que enfeitiçava.
— Como assim? interrogou o rapaz cujos dezoito anos se maravilhavam da importante descoberta feita pela menina.
— Pois então! Os irmãos não vivem juntos? Não brincam diante de todo mundo, como nós fazemos? Quem não sabe que a gente se quer bem? Mas ninguém fala mal por isso. Casar para que? Agora, aqueles que estão longe, que tem vergonha de se gostarem, é outra coisa; carecem perder o medo. Como Linda e Miguel! Estes, sim, precisam muito!
— É verdade!
— Não vê como ela anda sempre desconsolada e ele tão macambúzio?
— Então nós, Berta... não precisamos? insistiu Afonso.
— Não sei! Linda há de estar cansada de esperar-me! respondeu a menina com jeito de afastar-se.
Atalhou-lhe Afonso o passo.
— Não deixo!
— Solte-me, Afonso! disse Berta querendo desprender o braço da mão do rapaz.
— Dá o que prometeu?
— Que sabido! Não prometi nada!
— Então eu tomo!
— É capaz? disse Berta em tom de desafio.
— Eu tomo mesmo!
E o maganão enlaçou com o braço a flexível cintura da menina, que dobrou-se com a haste da gracíola, para esquivar o rosto aos lábios cobiçosos do saboroso encarnado.
— Eu grito! Disse ela.
— Que me importa.
— Por vida de D. Ermelinda, Afonso!
— Não quer que eu tome à força? Pois me dê por sua vontade!
— Eu dou.
— Então venha.
— Logo.
— Há de ser já.
— Daqui a bocadinho.
— Assim não vale o ajuste. Dá ou não?
— Um só!
— Um para começar.
— Aonde?
— Espere, que eu lhe mostro!
— Não quero mostras, fale.
— Aqui!
— Na boca? Logo não vê!
— Que tem?
— Se quiser, há de ser no... no... na... Feche os olhos!
— Para que?
— Então não dou!
— Você quer me lograr?
— Palavra!
De arrogante que estava poucos momentos antes, tornara-se o Afonso novamente submisso, e tímido suplicava a carícia de que ameaçara a menina, prestando-se humilde a todos os seus caprichos e negaças.
Fechou ele os olhos, e Berta cerrando-lhe por cautela as pálpebras com a palma da mão esquerda, acenou um beijo, que derramou-lhe nas faces tépida fragrância. Mas antes que os lábios tocassem a macia penugem, caiu-lhe sobre a orelha um piparote, que por ser de unha rosada e faceira não deixou de doer, tanto como dói um espinho de rosa.
Quando Afonso, arrebatado ao enlevo da carícia que já libava no hálito perfumado, deu acordo de si, tinha-lhe fugido a menina dentre os braços, e uma risada fresca e límpida trinava ali perto, entre as moitas.
Este logro abateu o gênio folgazão do moço. Em vez de correr após a menina e desforrar-se da peça que lhe acabava de pregar, deixou-se ficar tristonho e aborrecido. Era o amor que assim esfumava com laivos de melancolia os brincos e travessuras da adolescência.
Vendo o camarada ressentido, não se conteve Berta que o ficara espiando, partida entre o prazer da pirraça e o susto da desforra com que ela contava.
Aproximou-se compadecida; e com uma graciosa inflexão da fronte docemente enrubescida e uma gentil expressão de ternura e bondade, pousou os lábios na face do mancebo.
— Está; não fique zangado!
Estremeceu Afonso. A fronte reclinando com o enlevo da carícia repousou lânguida sobre a formosa cabeça da menina, cujos cabelos anelados amaciava com a mão trêmula. Assim o cedro alterneiro, se o cortam pela raiz, entrelaça as ramas da copa frondosa às grinaldas do cipó florido.
Quanto a Berta, conchegada ao seio do mancebo, ria-se maliciosamente para disfarçar o rubor; e lançava de esguelha um olhar brejeiro ao semblante do camarada.
De chofre repeliram-se um ao outro.
Miguel estava em face deles.