Til/IV/X

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Sabe-se por que preço obtivera Jão Fera o dinheiro necessário para desempenhar a palavra dada ao Barroso.

O Chico Tinguá, incumbido de negociar a entrega do capanga mediante cinqüenta mil réis, dirigiu-se à fazenda de Aguiar, e fez sua proposta ao fazendeiro.

Desconfiou este do caso, como era natural; mas estando ali um camarada, conhecido do Tinguá, que assegurou ser Jão Fera um homem capaz daquela façanha, decidiu-se Aguiar a dar a soma, curioso de ver o resultado.

— Aí tem o dinheiro. Mas, olhe lá, que, se o patife não vier, quem paga é você.

— Não tenha medo que ele falte.

Marcou-se o dia. O fazendeiro mandou chamar o Filipe com sua gente, e aumentou a capangada para receber a visita do Bugre.

Antes de partir quis Jão Fera despedir-se de Berta e com esse pensamento dirigiu-se para a casa de nhá Tudinha. Levava a alma a transbordar e carecia nesse instante supremo da eterna separação vaza-la no coração da menina.

Berta cosia, sentada em seu canto habitual, à sombra do oitão da casa. O Bugre avistou de longe e parou oculto pelas árvores para contempla-la com religiosa adoração.

Passando o primeiro enlevo, quando lembrou-se do pensamento que o trouxera, não se animou a dar um passo e aparecer à menina.

Pressentia o horror que deviam ter causado em Berta as mortes por ele perpetradas na noite de São João, e a abominação que desde aí lhe votava aquele coração puro e santo.

Se a menina soubesse da trama urdida pelo Barroso contra Luís Galvão, talvez lhe perdoasse tamanha atrocidade, cometida na ocasião de salvar uma existência tão querida para ela.

Mas a menina ignorava, e não seria ele decerto quem lhe havia de revelar o terrível segredo, confessando a sua vergonha de salvar o mais vil dos homens.

Não foi este, contudo, o mais poderoso dos motivos que lhe tolheram o impulso. Berta naturalmente lhe perguntaria a causa da sua estranha resolução de entregar-se à prisão; e seria necessário tudo revelar.

A idéia de que a menina se pudesse afligir por ter causado, embora involuntariamente, a sua perda, o assustava. Ignorasse ela sempre quanto custara o juramento que lhe dera, de poupar a vida de Luís Galvão; e não sondasse nunca os antros profundos dessa consciência onde rugia o desespero.

Fechou os olhos o Bugre para subtrair-se ao encanto da gentil menina, e, arrancando-se com esforço àquele sítio, sumiu-se no rumo de Campinas.

Eram quatro horas da tarde, quando um homem à pé e coberto de pó chegava à tronqueira da fazenda do Aguiar.

Da janela do sobrado, onde por um excesso de prudência se fora postar, avistou o Aguiar ao caminheiro, em quem os capangas, agrupados no pátio, já tinham reconhecido Jão Fera.

Ligeiro calafrio correu pela medula desses homens valentes e avezados ao perigo.

Abriu o Bugre descansadamente a tronqueira, e avançou com a costumada pachorra para o terreiro, como quem entrasse por sua casa. Aí chegando, saudou o fazendeiro e outras pessoas com um toque no chapéu.

— Tenham todos boa-tarde.

Tão surpresos ficaram os outros daquele sossego, que nem se lembraram de responder à saudação.

— Aqui estou eu, meus senhores, na forma do prometido, tornou o Bugre com um triste sorriso.

O Filipe trocou um olhar com o patrão e acenando à sua gente, avançou para o Bugre.

— Pois renda-se, homem, que é o melhor.

— Alto lá, camaradas! disse Jão Fera vendo os capangas se aproximarem com intenção de agarra-lo. Não se cheguem muito.

— Deixe-se de partes!

— Os senhores sabem se eu tenho palavra. Estou aqui por minha vontade; e do mesmo modo irei para onde quiserem. O ajuste foi entregar-me; e me entrego mesmo. Mas se algum me puser a mão, está tudo perdido.

Retraiu o Bugre o pé esquerdo; e os ombros agitaram-se com uma ligeira contração, enquanto nos olhos torvos fuzilava um relâmpago.

Os capangas hesitaram; e a um aceno do fazendeiro, que do sobrado assistia à cena, Filipe acomodou a coisa.

— Está bom, camaradas, não zanguemos o homem.

— Para onde me levam? É para Campinas? Pois vamos lá! disse Jão Fera.

— Não há pressa. O senhor pousa aqui e amanhã com a fresca da madrugada nos botamos para lá.

O Bugre fez um gesto que exprimira indiferença; e sentando-se no ressalto da calçada, que havia no terreiro, preparou um cigarro e começou a pitar.

Mas nenhum dos capangas se animou a aproximar-se. Através do ar negligente e absorto da fisionomia do Bugre pressentiase a viva atenção, que exercia em torno uma vigilância incessante.

À noite o Filipe convidou Jão Fera para cear com os outros camaradas. Ele, porém, recusou, contentando-se com um trago de aguardente.

Seriam nove horas e estavam todos acomodados no rancho, que ficava à direita do sobrado, quando Filipe sorrateiramente ergueu-se e passou fala aos camaradas.

— Enquanto não amarrarmos o danado, não sossego!

Convieram os outros e às agachas se foram acercando de Jão Fera, para cair sobre ele e segura-lo.

O capanga que não dormia, como eles pensavam, recebeu-os de frente:

— Ah! Vocês querem brincar? Pois vá lá!

Com o arrojo e destreza que ele possuía no mais alto grau, e o multiplicava, lançou mão de uma estava do rancho e espancou a troça do Filipe.

Depois de os ter sovado em regra, quando ia já em retirada, ouvindo a voz do Aguiar a perguntar pelo que havia, gritou-lhe de longe:

— A sua gente rompeu o ajuste; minha palavra está livre. Passe bem; mas fique descansado que eu lhe darei o pago deste desaforo. Há de ver se é bom ser amarrado como um negro fugido!

Deixando a fazenda encaminhou-se Jão Fera para Santa Bárbara, donde saíra aquela manhã, cuidando que nunca mais voltaria àqueles lugares.

O desfecho da traição do Aguiar o entristecia, e dentro de sua alma lamentava não estar àquela hora preso na cadeia de Campinas, ou enterrado no rancho da fazenda, onde algum dos capangas podia tê-lo facilmente prostrado com um tiro de melhor pontaria.

Incutia-lhe esse pesar o profundo pavor que dele se apoderava, pensando no seu encontro com Berta, e na indignação que sua presença devia causar à menina.

Por vezes parou, hesitando se devia retroceder.