Til/IV/XVI

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Descamba o sol.

Berta sentada à sombra do oitão da casa de nhá Tudinha, deitou sobre os joelhos a camisa que estava cosendo para Jão, e embebeu no azul diáfano do horizonte um olhar profundo, coalhado de lágrimas.

A seus pés, Zana agachada na esteira, contempla extática o rosto da menina; e de vez em quando o prazer íntimo que ela sente, derrama-se em sua fisionomia, e banha-lhe o rosto de um riso baço.

Ao lado, o Brás contempla Til com surda inquietação, que se trai a espaço pela contração dos músculos faciais e pela extrema mobilidade da pupila espantada.

Algumas braças distante, Jão curvado sobre a enxada, carpa a terra preparando as leiras para a plantação do feijoal. De vez em quando pára um instante, enxuga com a manga da camisa o suor abundante que lhe escorria da testa, e sopra os calos de que o trabalho já lhe encruou as mãos. Nessa ocasião crava com desassossego um olhar em Berta.

Miguel assomou à porta da casa, e desprendendo-se do estreito abraço em que o cingia a mãe lacrimosa, dirige-se para o lugar onde estava a menina.

Importantes acontecimentos tinham passado na última semana decorrida depois da confissão que Luís Galvão fizera à sua mulher.

Berta recusou obstinadamente reconhecer Luís Galvão como seu pai. A todos os rogos e instâncias respondia com um meigo sorriso:

— Não acredito, estão me enganando; meu pai é Jão. Foi ele quem teve dó de minha mãe, e quem me criou!... Não tenho outro senão ele!

Assim em compensação de tantas míseras crianças abandonadas por aqueles que lhes deram o ser, houve então um pai enjeitado.

Muitas vezes Luís Galvão insistia em reconhecer a filha e leva-la para a sua casa, onde acharia em D. Ermelinda uma terna e boa mãe:

— Mãe, dizia Berta, não quero outra senão aquela que me está esperando no céu. Mas há uma coisa que me faria muito feliz. Esse lugar que não pode ser meu, eu dou a Miguel. Ele quer tanto bem à Linda!...

Não teve Luís Galvão coragem para resistir ao pedido de Berta. Parecia-lhe que assim cumpria um voto de Besita. D. Ermelinda condescendeu prontamente com o desejo do marido, ansiosa por vê-lo restituído à sua tranqüilidade e arrependida da confissão que provocara.

Combinou-se que Miguel iria estudar a São Paulo; e dois anos depois se efetuaria o casamento naquela cidade para onde a família devia partir logo.

E quem sabe se voltaria mais às Palmas?

Chegara a véspera da partida. Miguel fora despedir-se da mãe para seguir lá pela madrugada com a família caminho da capital. Luís Galvão lhe pedira ainda uma vez empregasse todos os esforços para resolver Berta a acompanha-los.

P moço ao chegar anunciara sua intenção de levar Berta, e daí o desassossego que transparecia no semblante do Bugre, e no olhar do idiota, confiado à guarda de nhá Tudinha durante ausência do tio.

Dirigiu-se Miguel a Berta e apertou-lhe ambas as mãos.

— Então, Inhá?...

E seu olhar exprimia uma súplice interrogação. A menina moveu lentamente a gentil cabeça.

— Fica?

— É preciso, Miguel. Quem há de consolar sua mãe?

— Coitada! murmurou o moço.

E afastou-se da casa para não ouvir os soluços de nhá Tudinha. Berta o seguiu.

Por algum tempo caminharam os dois em silêncio, par a par escutando as emoções que falavam dentro d’alma opressa. Uma lágrima tremia-lhe nas pálpebras prestes a estalar.

— Se você tivesse querido, Inhá, disse timidamente Miguel, poderíamos ser tão felizes!...

— E você não é, Miguel? perguntou Berta fitando nele um olhar melancólico.

— Sou! respondeu o moço com um suspiro.

Houve um novo e longo silêncio. Foi Miguel quem outra vez rompeu:

— Meu sonho era viver aqui nesta casa onde nasci, com minha mãe e você, Inhá. Por muito tempo sorriu-me esta doce esperança; mas você não quis!

— Não diga isto, Miguel! exclamou Berta com a voz afogada em lágrimas.

— Quem me separa destes lugares e talvez para sempre?

Curvou Berta a cabeça e balbuciou:

— Lembre-se de Linda!

— Lembro-me daquela que foi companheira de minha infância, com quem folguei os primeiros anos da vida, e cuidei que havia de repartir minha pobreza e humildade. Quantas vezes supliquei a Deus que nos conservasse unidos sempre, e esquecidos aqui neste canto do mundo. Mas ela tomou para si unicamente a existência tranqüila e feliz que eu pedia para ambas, e aparta-me de si para longe!

— Miguel!...

Olhares ansiosos seguiam Berta, que afastava-se lentamente de Miguel na direção das Palmas.

Jão, vergado sobre o cabo da enxada e agitado por veemente comoção, parecia despedir-se de si, para se precipitar aos pés da menina. Brás, cavado o semblante por violentas contorções, arrancava os cabelos da grenha ruiva, e mordia o beiço para não gritar. Zana estendia os braços hirtos, e no afã de alcançar Berta e aperta-la ao seio, rojava-se pela grama.

Miguel falava com fervor, e a fronte gentil da menina pendia com lânguida e meiga inflexão, como nenúfar que se debruça à beira do regato e não tarda a ser levada pela corrente que o enamora.

Afinal o moço enlaçou com o braço a cintura da menina, e a atraiu sem que ela lhe opusesse a mínima resistência. Pousando a cabeça trêmula no ombro de seu companheiro de infância, deixou-se Berta levar, embalada por um sonho fagueiro.

Cortou os ares um grito de angústia. Brás caíra ao chão como fulminado, e estrebuchava em uma violenta convulsão, soltando uivos estridentes.

Berta desprendeu-se dos braços do moço:

— Não, Miguel. Lá todos são felizes! Meu lugar é aqui, onde todos sofrem.

E rompendo o doce enlevo que a prendia um momento antes, soluçou:

— Adeus!...

Correu então para o mísero idiota e sentando-se na grama para deita-lo ao colo, ocupou-se em afaga-lo.

Quando moderou o acesso e que ele pode ouvi-la, falou-lhe com profunda comoção:

— Eu sou Til!... Til só!...

Compreendeu Brás a significação destas palavras, e adivinhou quanta sublime abnegação exprimiam elas?

Nesse instante Miguel voltou-se além, na extrema do caminho onde ia sumir-se, e a brisa trouxe um eco de sua voz:

— Adeus, Inhá!...

Os lábios de Berta murmuraram frouxamente:

— Para sempre!

Jão de pé em face dela esmagava com os punhos as bagas que lhe saltavam dos olhos; enquanto o peito lhe estertorava com o pranto que tentava sufocar.

Berta pousou nele o seu brando olhar e disse-lhe com um sorriso:

— Vai trabalhar, Jão!...

Entrou em casa para consolar nhá Tudinha; e instantes depois se restabeleceu a cena plácida e melancólica do começo da tarde.

Quando o sol escondeu-se além, na cúpula da floresta, Berta ergueu-se ao doce lume do crepúsculo, e com os olhos engolfados na primeira estrela, rezou a ave-maria, que repetiam, ajoelhados a seus pés, o idiota, a louca e o facínora remido.

Como as flores que nascem nos despenhadeiros e algares, onde não penetram os esplendores da natureza, a alma de Berta fora criada para perfumar os abismos da miséria, que se cavam nas almas, subvertidas pela desgraça.

Era a flor da caridade, almasóror.