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Tudo o que você sempre quis saber sobre a urna eletrônica brasileira/Prefácio

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PREFÁCIO

O livro “TUDO O QUE VOCÊ SEMPRE QUIS SABER SOBRE A URNA ELETRÔNICA BRASILEIRA”, escrito pela jornalista Fernanda Soares Andrade, com apoio do Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais na Área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial, baseia-se, sobretudo, no depoimento de servidores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, do Instituto de Estudos Avançados - IEAv e da Justiça Eleitoral. O livro é de grande importância, porque revela o dia a dia da execução dos trabalhos, inclusive aqueles de suporte, como os de instalação de redes e cabos especiais, indispensáveis ao funcionamento da urna eletrônica. Os trabalhos começaram e se desenvolveram no ano de 1995, que marcam a criação da urna, a licitação e a entrega das primeiras máquinas, que vai de janeiro a maio de 1996.

O Tribunal Superior Eleitoral, quando decidiu implantar o voto eletrônico, procurou apoiar-se no que havia de melhor no ambiente científico brasileiro, no campo do direito e da ciência política, na experiência dos Tribunais Regionais e seus servidores da área de informática, seja em áreas técnicas especializadas, como o INPE e o Ministério da Aeronáutica, através do IEAv, dos serviços de informática do Exército, da Marinha e da Telebras. A urna eletrônica haveria de resultar de ampla cooperação do mundo científico brasileiro.

Foram formalizados dois convênios sendo um deles entre o TSE e o INPE, para o fornecimento de apoio técnico. Como resultado desse convênio, o INPE colocou à disposição do TSE os especialistas em informática, servidores daquele Instituto, Mauro Hashioka, falecido em 1998, Antônio Ésio Salgado e Paulo Nakaya. Em outro convênio, formalizado com o Ministério da Aeronáutica e com o mesmo objeto — fornecimento de apoio técnico — o servidor Oswaldo Catsumi Imamura do IEAV, Instituto que faz parte do antigo Centro Técnico Aeroespacial - CTA, hoje Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial - DCTA do Ministério da Aeronáutica. Em ambos os Convênios, o TSE custeava as despesas de deslocamento e hospedagem dos servidores em suas vindas semanais a Brasília, pois eles trabalhavam e residiam em São José dos Campos SP. Os convênios representavam notável cooperação tanto do INPE quanto do Ministério da Aeronáutica à Justiça Eleitoral e, em última análise, à democracia, dado que se procurava conseguir, com a urna eletrônica, expurgar das eleições as fraudes que maculavam a vontade popular. Bons tempos aqueles, tempos de sol.

Os convênios permaneceram vigentes mesmo após a implantação da urna eletrônica, dado que, a cada eleição que se seguia a 1996, procurava-se, como se procura, aperfeiçoar a urna eletrônica. O convênio com o Centro Técnico Aeroespacial – Instituto de Estudos Avançados encerrou-se em abril de 2005 e, com o INPE, em junho de 2013.

Artigo publicado no Estadão de 27.01.2021, trouxe à lume, em síntese apertada, os motivos que levaram a sociedade brasileira, sob a liderança do Tribunal Superior Eleitoral, a instituir o voto informatizado. As eleições na Primeira República, lembra Velgane Oliveira Carvalho, eram organizadas pelos governos locais, que se incumbiam da contagem dos votos; e a confirmação dos resultados era exercida por comissão do Poder Legislativo.[1] As eleições, na verdade, não expressavam a vontade dos eleitores. Faziam-se a bico de pena e levavam o apelido jocoso de eleições do “bicório”. No bojo da Revolução de 1930, vinha o desejo de os pleitos eleitorais expressarem a vontade popular. A solução seria a judicialização do processo eleitoral. Criou-se, então, pelo Código Eleitoral de 1932, a Justiça Eleitoral, com a missão básica de preparar, realizar e apurar as eleições. O Código, que está completando 90 anos, introduziu, ademais, o voto secreto, o voto das mulheres e a representação proporcional.

A Carta outorgada em 1937, que simplesmente dava forma jurídica à ditadura do Estado Novo, extinguiu a Justiça Eleitoral, que foi restaurada, em 1945, com a redemocratização.

O ativismo da Justiça Eleitoral, no fazer cada vez mais limpas e legítimas as eleições, tem sido constante, acentuei. Por exemplo, por proposta do TSE, criou-se, em 1955, a cédula única, que eliminou a “marmita” eleitoral, e a folha individual de votação que aboliu o uso do título falso; o Código Eleitoral vigente, que é um bom código, resultou de anteprojeto elaborado pelo Tribunal Superior Eleitoral, em 1965; implantou-se, na presidência do ministro Néri da Silveira, em 1986, o cadastro eletrônico eleitoral, e realizou-se, no TSE, nas eleições de 1994, na presidência do Ministro Sepúlveda Pertente, o processamento eletrônico do resultado das eleições.

E chegamos à urna eletrônica.

Presidindo o TSE (1994-1996), convocamos juristas, cientistas políticos e especialistas em informática a trabalharem conosco. Constituímos, então, em 1995, o que a mídia denominou de “comissão de notáveis”, que foi dividida em cinco subcomissões temáticas: a) Código Eleitoral, presidida pelo ministro Marco Aurélio, então vice-presidente do Tribunal, relator o professor da UnB, Roberto Rosas, ex-ministro do TSE; b) reforma partidária, presidida pelo ministro Diniz de Andrada, relator o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, da USP; c) sistema de voto (proporcional, distrital), presidida e relatada pelo ministro Torquato Jardim; d) financiamento de campanhas eleitorais, presidida pelo ministro Pádua Ribeiro, relator o professor Egídio Ferreira Lima, de Pernambuco; e) informatização do voto, presidida pelo ministro Ilmar Galvão, relator o técnico em informática Paulo Camarão, do TSE. Essas comissões produziram trabalhos que foram encaminhados ao presidente da República e aos presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal.[2]

Em seguida, ainda em 1995, firmadas as diretrizes, técnicas e jurídicas, pela subcomissão do voto informatizado, foi criado grupo de trabalho a fim de tornar realidade a urna eletrônica, criando-se o seu protótipo e o edital de licitação para sua aquisição. Esse grupo de trabalho, presidido pelo Secretário de Informática do TSE, Paulo Camarão, que fora o relator da subcomissão temática presidida pelo Ministro Ilmar Galvão, foi integrado pelo juiz Jessé Torres, hoje desembargador do TJ/RJ, especialista em direito das licitações, e pelos técnicos em informática Antônio Reader (TSE), Ésio Salgado, Mauro Hashioka e Paulo Nakaya (os três últimos do INPE), Oswaldo Catsumi (IEAV), major Elifas Gurgel do Amaral (Exército), capitão de corveta Luís Otávio Botelho Lento (Marinha), José Antônio Milani (Telebras), Roberto Siqueira e Gilberto Circunde (TRE/MG), Roberto Fonseca (TRE/MT), Célio Assumpção e Mário Colaço (TRE/SC) e Jorge Lheureux de Freitas (TRE/RS).[3] As Forças Armadas, convidadas pelo TSE, mandaram os especialistas em informática acima mencionados.

O grupo de trabalho criou o protótipo da urna eletrônica e elaborou o edital de licitação, que foi concluída em 14 de março de 1996, homologada a adjudicação da vencedora em 19 do mesmo mês.

Por que o voto informatizado?

É que, registrei -- e os que vivenciaram as eleições anteriores a 1996 certamente se lembram --, campeava, nas apurações com cédulas de papel, o “mapismo”, fraude abominável que “elegia” e “deselegia” candidatos, o aproveitamento, mediante fraude, de votos em branco, e a falsificação de cédulas, dentre outras mazelas. Ocorreu, nas eleições de 1994, no Rio de Janeiro, extensa fraude. E recursos, alegações de fraude, impugnações, eternizavam as apurações efetuadas manualmente, tumultuando a vida política e econômica do país. Era preciso, portanto, que a Justiça Eleitoral se engajasse na revolução dos computadores(o que, aliás, já vinha ocorrendo), informatizando o voto, com o afastamento da mão humana das apurações.

As urnas eletrônicas, que não estão sujeitas à ação dos hackers, porque não estão “online”, são auditáveis antes, durante e depois das eleições. Elas vêm sendo utilizadas há 25 anos, sem qualquer evidência ou indício de fraude.

Os softwares ou programas são elaborados pelo TSE, sob a fiscalização dos partidos políticos e nos seis meses anteriores às eleições, ficam à disposição dos partidos, do Ministério Público, da OAB, de entidades técnicas que se interessarem e dos cidadãos de modo geral. A carga dos programas nas urnas, com sua adaptação às seções eleitorais, é feita pelos Tribunais Regionais Eleitorais, entre 10 e 15 dias anteriores ao pleito, sob a fiscalização dos partidos políticos, do Ministério Público, da OAB e dos cidadãos que se interessarem.

No dia da eleição, o presidente da mesa receptora dos votos imprime, antes de começar a votação, na presença dos fiscais dos partidos, o boletim denominado zerésima, que comprova que na urna há zero voto. Esse boletim é entregue aos fiscais dos partidos.

O eleitor, ao votar, isto é, ao digitar o número do seu candidato, vê surgir na tela o nome, o partido e a fotografia do candidato. O eleitor confirma, então, o seu voto. Se os dados e a foto do seu candidato não conferirem, porque teria se equivocado ao digitar, pode ele efetuar a correção, apertando a tecla de cor laranja, que começa tudo de novo.

Terminada a votação, o presidente da mesa receptora de votos imprime, na presença dos fiscais, o boletim da urna, que contém os votos dados a cada um dos candidatos, em várias vias. Uma destas é entregue aos partidos políticos. Outra é afixada na porta da seção eleitoral. O pen drive, criptografado, num envelope lacrado e assinado pelo presidente e outros membros da mesa, é levado ao órgão central da Justiça Eleitoral ou a um posto mais próximo, onde é transmitido ao TSE. Esses boletins, logo que chegam ao TSE, são lançados na internet. Recorde-se que os partidos políticos têm em mãos os boletins de urna, que receberam imediatamente após a votação. Já poderiam ter feito as suas contas. Então, quando o TSE divulgar a soma dos votos, poderão conferir com as suas contas.

Haveria algo mais transparente? E sem carimbos ou coisas que tais, inexistentes em tempo de inteligência artificial. Tudo feito sob a responsabilidade da Justiça Eleitoral, com a fiscalização dos partidos políticos, do Ministério Público, da OAB e da cidadania, com absoluto respeito ao sigilo do voto, garantia constitucional da independência do eleitor, pressuposto de eleições limpas.

Este é mais um livro que conta um pouco da história da urna eletrônica, com base no depoimento de servidores que estiveram na linha de frente dos trabalhos de sua criação e dos seus seguidos aperfeiçoamentos. Prestará o livro, portanto, serviço relevante. Cumprimento a autora, a jornalista Fernanda Soares Andrade, e o Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais na Área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial, que deu apoio logístico para a concretização da ideia.

Brasília, DF, 25 de fevereiro de 2022.


Carlos Mário da Silva Velloso

Carlos Mário da Silva Velloso é advogado. Ministro aposentado, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (1999-2001) e do Tribunal Superior Eleitoral (1994-1996 e 2005-2006); Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral (1985-1987); é professor emérito da UnB e da PUC/MG, em cujas Faculdades de Direito foi professor titular de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito Público. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e da Academia Mineira de Letras.

Este trabalho é regulado nos termos da licença Creative Commons - Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

 


  1. Carvalho, Volgane Oliveira, “Os 90 anos do nosso primeiro Código Eleitoral”, “O Estado de S. Paulo”, 25/02/2022
  2. Velloso, Carlos Mário da Silva, “Urnas Eletrônicas - um pouco de sua história”, em “Balanço das Eleições/2014”, livro editado pelo TSE, Brasília, DF, 2015. Nesse trabalho, são revelados os nomes dos integrantes da “comissão de notáveis”, das subcomissões temáticas e do grupo de trabalho que estabeleceu o protótipo da urna eletrônica, produto da criatividade científica dos brasileiros.
  3. Os servidores da Justiça Eleitoral, Roberto Siqueira e Gilberto Circunde (TRE/MC), Roberto Fonseca (TRE/MT), Célio Assumpção e Mário Colaço (TRE/SC) e Jorge Lheureux de Freitas (TRE/RS) integraram a Subcomissão Temática presidida pelo Ministro Ilmar Calvão, relator o técnico em informática Paulo Camarão e não o Grupo de Trabalho. Impõe-se, portanto, a retificação. Velloso, Carlos Mário da Silva, "Urnas Eletrônicas- um pouco de sua história", ob. cit.ps.70 e 84-85.V. nota anterior.