Turbilhão/VIII

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VIII

 

Eram nove horas da manhan quando D. Julia foi bater á porta do quarto do filho, chamando-o. Paulo levantou-se de mau hunior.

— Que é, mamãi?

— Está ahi o cobrador da casa.

— Que historia! Diga-lhe que eu vou levar o dinheiro, que ainda não recebi.

— Por que não falas tu mesmo? Eu tenho tanta vergonha...

— Vergonha de que? Tambem a senhora tem vergonha de tudo. Que espere um pouco; eu não hei de inventar dinheiro.

— E a joia? perguntou ella baixinho.

Paulo resmungou:

— Hontem não foi possivel, tive muito que fazer. Vou hoje.

A velha afastou-se e Paulo, deitando-se de novo, a fumar, recapitulou o desastre da véspera: quase todo o dinheiro perdido ao jogo, num só número, o 28. Como sair daquele aperto? A quem recorrer? Não lhe lembrava o nome de um amigo, de um conhecido. Como derradeira e única esperança ocorreu-lhe o do velho Fábio. Não tinha coragem de o procurar. Se lhe escrevesse? Mamede levaria a carta. Com tal idéia voltou-lhe a calma, serenou como se já houvesse recebido a quantia e, assobiando, saltou da cama, sentou-se à mesa e pôs-se a redigir uma carta aflita referindo-se, com grandes queixas, à Violante "única culpada daqueles embaraços em que se viam".

O pedido era de duzentos mil-réis e, acrescentava, mentindo, que: "tendo conseguido um emprego vantajoso, no mês próximo saldaria o débito, ficando eterna a gratidão". Animado, vestiu-se, fechou a carta na gaveta e passou à sala de jantar. Dona Júlia, sentada à mesa, cerzia uns pares de meias e, quando o viu aparecer, disse-lhe lentamente, sem levantar os olhos:

— Olha, Paulo, vai ver esse dinheiro. O homem ficou aborrecido.

— Aborrecido, por quê? Não dei fiador? Que espere!

Foi ao banho e, tomando apenas uma xícara de café, vestiu-se saindo para a estalagem. Mamede recebeu-o sorrindo e, como ele lhe falasse da carta, pôs-se imediatamente à sua disposição.

— Vosmecê quer esperar a resposta aqui ou na cidade?

— Como quiseres.

— Aqui é melhor.

— Pois sim.

— Eu vou num pulo. - Vestiu-se às pressas e pronto, com um bengalão debaixo do braço, despediu-se, dizendo, a rir: Eu sei que vamos ter cena; aquilo é agarrado que nem ostra, mas manda, para vosmecê ele manda, afirmou convencido, a enrolar um cigarro. Então até já, nhozinho.

— Até já, Mamede.

Deixou-se ficar a um canto, e, vendo um velho almanaque em cima da mesa, tomou-o, pôs-se a folhear as páginas amarelecidas e rotas, procurando anedotas. As lavadeiras, em zaragalhada, chalravam, cantavam, batiam a roupa, ao sol; pequenos, em fraldas de camisa, empinavam papagaios. Na casa contígua uma máquina de costura estrepitava e a voz rouca de um homem cantarolava amores. Ritinha, que não aparecera, pouco depois do mulato haver saído, perguntou do fundo da casa:

— Quer uma xícara de café?

Paulo estremeceu ao ouvir-lhe a voz e, sorrindo, respondeu vagaroso:

— Não sou pobre soberbo.

E, entre os dois, com a cortina de permeio, travou-se um curto diálogo.

— É o senhor que fugiu daqui?

— Não...

— Por que não tem aparecido?

— Trabalhos.

— Faço idéia!

— Palavra. Estou com os estudos.

— Então não pode tirar uma hora, ao menos, para ver a gente?

— Vontade não me falta.

E, folheando distraidamente o almanaque, sorria.

— Gosta com muito açúcar?

— Não muito.

Soaram passos no corredor e Ritinha, afastando a cortina, passou o braço roliço oferecendo a xícara de café. O estudante, não lhe podendo ver o rosto, perguntou:

— Está com vergonha de mim?

— Uê... Vergonha? Vergonha por quê? Eu, não!

— Então por que não aparece?

Um risinho infantil foi a resposta, logo depois, o rosto risonho da mulata mostrou-se, com os olhos muito pretos e vivos, a boca vermelha e úmida entreaberta descobrindo os dentinhos brancos que reluziam.

— Quem é bonita assim não se esconde.

— Bonita! Eu?! coitada de mim! Quem perdeu boniteza para eu achar?

Paulo tomou a xícara e pôs-se a chuchurrear o café lentamente, sorrindo para a mulata que se bambaleava dengosa.

— Mamede foi muito longe?

— Ao Engenho Novo.

— Nossa Senhora! Fazer o quê?

— A negócio...

— Negócio...! - e esticou o lábio carnudo, mordendo-o depois, com um sorvo, d'olhos faceiramente revirados. Por fim, derreando a cabeça, num quebranto, esticou o braço para receber a xícara. O rapaz fitou-a abrasado.

— Que é que está me olhando? Deixe ver a xícara.

Paulo ardia em volúpia. Adiantou um passo, ainda indeciso, hesitante, com medo. Ela baixou os olhos fingindo-se distraída. De repente, como se o houvessem impelido, achou-se no corredor, face a face com a rapariga. Ela encolheu-se, colada à parede, os braços cruzados como a defender o colo; estava em mangas de camisa, com uma saia de ramagens.

— Que é isto? O senhor está doido!? - exclamou arrepiada, retraindo-se.

Paulo ficou a contemplá-la, sem uma palavra, trêmulo, farejando o cheiro sensual que se desprendia daquela carne de mestiça, viçosa e árdega. Adiantou-se com a humildade de um vencido, balbuciando tremulamente:

— Ritinha.

— Que é? fez ela, toda lânguida, d'olhos úmidos, inclinando a cabeça sobre o ombro nu, reluzente.

Ele estendeu a mão, ela curvou-se, arisca, encolhida:

— Olhe Mamede...! Não se fie. Ele, às vezes, diz que vai aqui, ali quando menos se espera, aparece.

Dobrou-se, agachou-se, fazendo-se pequenina, evitando as mãos que a procuravam.

— Não faça isso...

Coleava e ria, nervosa.

— Não brinque assim... Eu quebro a xícara.

De repente, muito séria, murmurou:

— Olhe que podem ver... Essa gente da estalagem é muito bisbilhoteira.

Paulo, porém, insistia e a mulata, a torcer-se com as cócegas, às gargalhadas nervosas, amolecia.

— Fique quieto... Fique quieto...

A xícara rolou tinindo. Fora, o canário cantava estridulamente e estalava a roupa que as lavadeiras batiam.

Mamede, logo ao entrar, alagado em suor, atirando o chapéu para cima da mesa, irrompeu contra o velho: "Que era um cigano, um unhas-de-fome, um malcriadão".

— Olhe, nhozinho, eu não fiz uma estralada naquela biboca por causa de vosmecê. A minha vontade foi mandar a testa nos queixos daquele sujo e varrer aquilo tudo a pé. Mas Deus é grande! Está agora cheio de empáfia, um porcaria que eu conheci pindaíba que nem tinha um casaco decente para vestir.

— Não mandou...?

— Qual nada! Disse que vai falar com a velha. E não imagina os desaforos que atirou em cima de vosmecê. E veio todo o mundo para a sala, e todo o mundo falou, uma porção de mulheres, uma corumbada de meter medo. A sua carta andou de mão em mão, e eu na porta, em pé, rachando debaixo do sol. Nem, por delicadeza, me mandaram entrar. Aquilo, nhozinho...! Eu nunca me enganei com aquele cabuloso. Qual! gente de muita conversa é assim mesmo, não vale nada. Vosmecê escreva: não vale nada. Quem quer dar não faz discurso.

Paulo baixou a cabeça, sucumbido, e ficou a retorcer nervosamente o buço enquanto o mulato, já em mangas de camisa, examinava garrafas. Ritinha apareceu:

— Ah! Mamede... que horas! E eu aqui sem almoçar.

— E eu? Quem sabe se você pensa que fui brincar? Pois tira o almoço.

Virou, de um trago, o codório e, passando a mão pelos duros bigodes, disse, pigarreando: Nhozinho também ainda não almoçou.

— Ainda não; mas não tenho fome.

— Não tem fome! - Desatou a rir. - Está amofinado. Ah! nhozínho, bem se vê que vosmecê está entrando agora no mundo. Isso é uma canalha! É uma canalha! Quanto mais rico, pior. Não ligue, faça como eu. Se eu me aborrecesse por causa dessas coisas... então...! Dinheiro? dinheiro é nada; tenha a gente saúde, o mais...

Ritinha, encostada ao umbral da porta, olhava distraidamente o céu, muito azul, quando Mamede falou:

— Ó dengues, tira esses troços duma vez que eu ainda tenho que fazer, e é quase meio-dia.

— Já vou, - disse ela, deixando escapar um suspiro.

À mesa, os três conversaram alegremente, e Paulo, balançando a perna, encontrou um dos joelhos da mulata, e, durante todo o almoço, sentiu-o, afagou-o voluptuosamente. Refeito e esquecendo a avareza do velho Fábio, decidiu-se a tentar a sorte com o pouco que lhe restava e, distraindo-se, enquanto Ritinha retirava os pratos e a toalha e Mamede mudava a camisa, assobiando, pôs-se a imaginar uma grande sorte. uma repetição, e via os montes de fichas, ouvia-lhes o estrépito e acumulava cartões: Eram plenos sobre plenos, uma fortuna! Tirou do bolso o dinheiro que tinha e, folheando as notas por baixo da mesa, com cuidado de usurário, achou trinta e cinco mil-réis; guardou-os, pôs-se de pé, mas a mulatinha reteve-o com um sorriso.

— Já quer sair? Não toma café?

Mamede falou do quarto, em sobressalto:

— Espera um instante, nhozinho.

— Sim.

Ritinha encaminhou-se para o corredor e Paulo, vendo-lhe os quadris carnudos, que bambaleavam, adiantou-se em pontas de pés, as mãos estendidas; ela parou, como fascinada. Ele atiroulhe os braços ao pescoço e, mesmo de costas, a mulata derreou a cabeça e as bocas ficaram coladas num beijo muito longo. De repente apartaram-se: ela fugiu surdamente pelo corredor, ele foi ficar à porta, olhando as lavadeiras que, ao longe, com as saias arregaçadas, mostrando as pernas fortes, estendiam a roupa nos coradouros ou em cordas que vergavam.

Um sino soava gravemente ao longe e, percorrendo a estalagem, ao vivo sol, um homem com uma caixa à cabeça, pintada a listas de várias cores, soprava uma cometa fanhosa.

— Pronto! - exclamou o mulato saindo do quarto com umas calças de brim e uma lustrosa camisa de chita. Enrolava um cigarro e, chegando-se muito ao estudante, sussurrou:

— Nhozinho tem aí uma de cinco que me empreste até amanhã? É só até amanhã.

Paulo não teve ânimo de negar - meteu a mão no bolso, escolheu uma cédula e entregou-a ao mulato.

— E só até amanhã, nhozinho.

— Ora...

— Vosmecê não quis aparecer mais em casa do Cordeiro? Desconfiou com o trombone? Pois olhe: Eu, noutro dia, fiz um estrupício doido no pequeno. E estava só dizendo: Ah! se nhozinho estivesse aqui chamava uma cobreira grossa desses manos.

Depois do café saíram. Paulo, porém, para livrar-se do mulato, despediu-se ao portão, tomando um bonde.

Dona Júlia passou o dia em torturas, preocupada com o aluguel da casa. Se um bonde parava perto, logo alarmada, invocava Nossa Senhora, receando a presença do cobrador, temendo o escândalo.

"Que diriam aquelas mulheres da vizinhança, a gorda, principalmente, que ria de tudo?" Dava-lhe maior cuidado a opinião dos vizinhos do que o próprio vexame. Resignava-se a todo sofrimento, mas a idéia de ser tida por uma caloteira, amofinava-a. Lembrando-se, porém, do filho, animou-se. Ele, por certo, já entregara o dinheiro à senhoria, e como até à tarde ninguém aparecesse, tranqüilizou-se.

Até horas altas da noite esteve a pensar, acotovelada à cômoda, diante dos santos, mas, cedendo à fadiga, deitou-se e adormeceu, acordando de madrugada, em sobressalto, como se houvesse sido sacudida por alguém. O seu primeiro pensamento foi para o filho: 'Teria ele entrado? Quem lhe abrira a porta? Felícia..." Levantou-se, foi ao quarto negra que já enrolava a esteira:

— Paulo veio, Felícia?

— Não senhora.

— Não veio!?

— Que eu visse, não, senhora.

Ficou parada à porta do quarto a olhar. Era a primeira vez que o filho pernoitava fora. Que teria acontecido?

— Hein, Felícia?

— Senhora...

— Paulo... Quem sabe se aconteceu alguma coisa?!

— Qual o quê, minh'ama. Nhonhô é moço, ficou com algum companheiro.

— Não...

Apreensiva, deixou-se estar à porta do quarto, pensando.

— Homem não tem perigo, minh'ama.

Sem responder, a velha foi caminhando para a sala. Lembrava-se do desaparecimento de Violante. Que fatalidade era essa que assim lhe ia levando os filhos, um a um? Que grande crime teria ela cometido para que Deus a condenasse a tão duro castigo? Abriu com cuidado a porta do quarto do filho e espiou: a cama estava feita, com os lençóis muito esticados, alvejando. "Que teria acontecido, Deus do céu!" E entrou, com olhares pelos cantos, como se procurasse alguma coisa.

Aquela companhia do Mamede dava-lhe cuidado. Conhecia-o bem. No tempo do falecido volta e meia era um recado, um pedido: porque o mulato fora preso num barulho ou apanhado numa casa de jogo.

Duma feita, deixando um homem por morto, com uma navalhada, respondera a júri, sendo absolvido à força de empenhos, que até políticos haviam trabalhado por ele. E Paulo que o não deixava! Vão ver que andou por aí de pagode com o perdido. Suspirou.

— Qual! Deus não tem pena de mim...

Eram onze horas quando bateram à porta. Felícia não estava, tinha ido à venda. Dona Júlia estremeceu: "Quem será, meu Jesus..." Espiou por entre as rexas da rótula e empalideceu reconhecendo o cobrador da casa. Para evitar o escândalo abriu a porta, convidou-o a entrar, muito vexada, dizendo "que o filho saíra para receber".

O homem mirou-a sacudindo o berloque da corrente.

— Mas eu não posso estar a fazer esta caminhada todos os dias, minha senhora. Anteontem a senhora disse-me que seu filho iria levar-me o dinheiro: não foi... Francamente, isto já parece caçoada.

— Tenha paciência; a vida está hoje tão difícil...

— Ah! sim...

— Ele vai hoje, talvez já tenha ido.

— Eu é que não volto cá; diga-lhe isto mesmo. E, com um risinho mau: Começa bem, não há dúvida: logo no primeiro mês. Ao sair, declarou: Que iria ter com o fiador se até a tarde não recebesse o dinheiro.

— Tenha paciência, meu senhor.

— Passe bem.

Deu as costas e foi resmungando. Dona Júlia ficou como sufocada e fechando a porta, atirou-se ao sofá, soluçando. Caindo a noite sem que houvesse notícia de Paulo, numa resolução desesperada, ela foi à caixa em que guardava as jóias e pôs-se a escolher algumas para levar ao penhor.

Quais haviam de ser? Tinha o crucifixo de ouro, velha relíquia de família, que fora de sua mãe; beijou-o e, veneradamente, pô-lo de parte, sobre o travesseiro. Tomou uma medalhinha esmaltada - os "olhos de Santa Luzia", figas de coral, de azeviche, que as crianças haviam usado contra o quebranto; depois uma grossa pulseira, dos anéis com pedras, uma fivela de ouro e a medalha do falecido com o monograma a brilhantes. Mirou-a muito tempo, com remorso, supesou-a, abriu-a: em cada uma das faces, sob lâminas de vidro, enroscava-se um anel de finos cabelos louros: eram dos filhos; retirou-os e, fechando a medalha, suspirou. Felícia acabava de limpar a cozinha, quando ela a chamou, dizendo: que iam sair. A negra encarou-a, espantada:

— Paulo não aparece, não sei por onde anda e eu não quero esse homem da casa aqui todos os dias. Vou empenhar umas jóias e, como não conheço as ruas...

— Se fosse de dia a gente podia ir ao Monte de Socorro, mas de noite, só nessas casas. Minh'ama quer ir assim mesmo?

— Vamos.

A negra foi vestir-se e, pouco depois, saíam muito juntas, conversando tranqüilamente. Felícia não conhecia as casas de penhores e esteve a dar voltas pelo Largo do Rocio, atarantada, a olhar, até que resolveu perguntar a um homem que lhe indicou uma travessa, mostrando-lhe a casa iluminada. A negra, que deixara Dona Júlia à espera, junto ao teatro, correu a buscá-la.

— Vamos, minh'ama. - A velha seguiu-a, muito tímida, evitando os transeuntes, cosendo-se com a parede até que alcançaram a casa. - É aqui. Vosmecê entre; eu espero na porta.

Dona Júlia entrou, metendo-se em um dos cubículos. Ao lado falavam, era um murmúrio vago de palavras indistintas, pronunciadas como no mistério da confissão. Um súbito receio gelou-a: "E se o homem, vendo-a tão pobre e com aquela jóia rara, tomasse-a por uma ladra?!"

Trêmula, pôs-se a desembrulhar a medalha e foi com um fio de que respondeu à pergunta: "que precisava de quatrocentos mil réis. "O homem retirou-se com a medalha e, à luz, abriu-a, examinou-a detidamente, virando-a, revirando-a, sacudindo-a na palma da mão; pesou-a numa pequena balança, depois, tomando ao balcão, disse secamente:

— Duzentos mil-réis.

— Só!? exclamou a viúva espantada.

— Os brilhantes são muito pequenos.

— E trezentos?

— Duzentos.

E ia deixando a medalha quando ela suspirou resignada:

— Leve. Os senhores não têm pena da gente.

O homem retirou-se e ela, sentindo fortíssimas agulhadas nas pernas, encostou-se ao tabique e ficou a olhar a parede fronteira cheia de relógios - uns parados, outros trabalhando, quadros, vasos artísticos em peanhas, um oratório de jacarandá, com um fundo azul de céu.

Eram os reféns da miséria que ali se juntavam, eram as alegrias do pobre que ficavam cativas pelo pão e pelo remédio, e ela pensava em outros infelizes, quantos! sofrendo mais do que ela, por esse mundo vasto e descaridoso.

Sentindo que empurravam a porta do cubículo voltou-se assustada e viu um velhinho engelhado, com um embrulho debaixo do braço. O intruso atrapalhou-se, murmurou uma desculpa e passou adiante. O homem apareceu com um livro para que ela assinasse: tomou da pena e, tremulamente, deixou o nome, a rua e o número da sua casa. Esteve ainda algum tempo à espera até que ele reapareceu com a cautela e o dinheiro.

Felícia esperava à porta, a olhar os carros estacionados junto á calçada.

— Então, minh'ama?

A velha murmurou caminhando:

— Duzentos mil-réis, Felícia, por uma medalha que custou ao velho uma fortuna. Eu sei: ele viu-me assim pobre... - E suspirando: E eu que contava levar todo o dinheiro de que careço. Nem chega para te pagar. Tem paciência até o princípio do mês, quando eu receber do Tesouro.

— Não faz mal, minh'ama: eu tendo para o meu fumo...

— Agora se precisas de alguma coisa...?

— Não, senhora; eu vou-me arranjando. Quando vosmecê receber.

— Pois sim. O que eu quero é ficar livre daquele homem. Não sei dever, não está em mim: fico que só Deus sabe. E Paulo não se emprega. Não sei que há de ser de nós. Amanhã, bem cedo, hás de levar o dinheiro à senhoria.

— Sim, senhora. Mas vosmecê não se amofine, minh'ama; Deus é muito grande!

— E Paulo? Onde andará? Pois então aquele menino não sabe que sou doente? Como é que sai assim sem dizer uma palavra? Isto até parece castigo de Deus. Pois eu nunca fiz mal a ninguém...

— Não é só minh'ama que sofre.

— Ora o quê? mas como eu tenho sofrido, Felícia?!

— Deus é grande! Mais tem ele pra dar, minh'ama.

Quando chegaram a casa a vizinha, que cantarolava à janela, disse "que o moço estivera ali muito tempo, batendo". As duas mulheres ficaram perplexas.

— E para que lado foi, minha senhora? perguntou a velha.

— Ele subiu. Creio que tomou um bonde.

— E agora, Felícia?

— Ele volta, minh'ama.

Efetivamente, como se rondasse perto, à espreita, pouco depois delas haverem entrado, Paulo bateu. Dona Júlia apressou-se e, vendo-o, iluminou-se-lhe o rosto. Longe de o recriminar recebeu-o contente, sorrindo. O estudante, deixando o chapéu sobre a mesa, sentou-se esparramadamente no sofá, abrindo os braços no encosto:

— Com certeza já estava aflita com a minha demora?

— Ah! não... não havia de estar.

— Pois eu andei na lida: a procurar a senhora minha irmã.

— E então?

— Qual! Um companheiro do Mamede, maquinista da Estrada. disse que a vira em Mendes, com um estrangeiro. Fui lá. Efetivamente encontrei uma moça muito parecida com ela, um pouco mais cheia. - Entrou no quarto e declarou desanimado: Qual! aquela não aparece tão cedo, se aparecer... O velho Fábio esteve aqui, mamãe?

— Não. Por quê?

— Avarento! - rosnou reaparecendo em mangas de camisa.

— Estiveste com ele?

— Não, senhora. Escrevi uma carta pedindo-lhe uma quantia para não empenhar o broche; respondeu que viria trazer o dinheiro à senhora.

Riu com sarcasmo, repoltreando-se no sofá, com as pernas muito abertas.

— E não empenhaste o broche?

— Que remédio! O dinheiro está aí. Deu pouco: cento e cinqüenta. Pois é verdade, - derreou-se atirando palmadas às coxas: o nosso amigo Fábio é um excelente conselheiro. Em conselhos chega a ser perdulário. Quando eu lhe dizia...

— Ele também é pobre, coitado!

— Então para que vive a arrotar grandezas? O homem da casa voltou?

— Esteve aí.

— E então? ameaças, desaforos...

Ela conteve-se, suspirando; por fim disse:

— Ah! meu filho, nós não podemos continuar a viver assim. Não imaginas a minha vergonha. - E meiga, fitando-o: Sabes onde fui com Felícia? Fui empenhar uma jóia. Não aparecias...

— E empenhou?

— Então?

— Não faça mais essas coisas, mamãe; a senhora devia ter esperado. Não é vergonha dever.

— Pois sim, mas... é comigo que eles se entendem, sou eu que ouço os desaforos. E tu não te lembras dos vizinhos? essas mulheres, então, que não saem da janela. Não, assim é melhor. Vamos agora trabalhar, cada um por seu lado. As jóias não me fazem falta; não saio. Lá ao menos estão seguras.

— Sim, mas vencendo juros.

— Ora! mais vale a minha tranqüilidade.

Paulo acendeu um cigarro e pôs-se a medir a sala a largas passadas, meditando. Dona Júlia indagou: "Se já havia jantado?"

— Jantei na cidade.

— Então chegaste hoje?

— Há pouco.

Ficaram algum tempo calados. Ele, numa alegria transbordante, cantarolava, assobiava, d'olhos altos, as mãos para as costas, indo e vindo. A mãe atreveu-se a perguntar:

— Nunca mais foste à policia?

— Para quê? Perder tempo? Um agente com quem falei pediu-me logo dinheiro. Estou farto de gastar com essa súcia.

— Então é assim?

— Se é...! - Sentou-se e falou vagarosamente, em tom de certeza: Para mim Violante não está no Rio, foi para São Paulo ou para a Europa, quem sabe? Vamos nós tratar da vida. Já perdi muito tempo. Este ano foi-se, não alcanço mais os colegas, mesmo não tenho cabeça para estudos, assim como ando. Não quero mais saber de jornais: são noites perdidas, aborrecimentos, por uma ninharia. Se eu pudesse conseguir a cadeira de história no Externato Meireles... O diabo é que há mais de vinte candidatos.

Soprou uma baforada e, vendo a mãe curvar-se a esfregar a perna, gemendo, quis saber se estava sentindo alguma coisa.

— Tenho sofrido muito nestes últimos dias. É da umidade... e hoje andei tanto!

— Eu também não tenho passado bem: dores de cabeça, fastio... É fadiga. Também, com a vida que levo não é para admirar: não paro.

— É, precisas ficar um dia em casa descansando.

— Pudesse eu! - suspirou encaminhando-se para o quarto. - Mamãe pode arranjar-me uma xícara de café?

— Sim.

A velha levantou-se pesadamente e foi devagar, claudicando, a amparar-se pelas paredes do corredor. Paulo entrou no quarto, deu mais luz ao gás e sentou-se à beira da cama, esfregando as mãos. Esteve algum tempo a sorrir seguindo um sonho. De repente levantou-se, ficou junto à mesa, a olhar a pasta de oleado que rebrilhava. Tomou o colete, o casaco e pôs-se a esvaziar os bolsos tirando cédulas amarfanhadas, em bolos.

Para não ser surpreendido fechou a porta à chave e tirou das algibeiras das calças dois gordos maços de notas, abriu-os, pôs-se a contá-los: achou seiscentos e vinte mil-réis. Separou cento e cinqüenta, embrulhou-os cuidadosamente com a cautela do broche e deixou-os na gaveta. Depois de guardar o resto do dinheiro sentou-se na cadeira e, fincando os pés na parede, pôs-se a balançar-se com os olhos no teto, pensando:

Fora covarde abandonando a sorte, devia ter ficado para outra banca: só na repetição de 20 ganhara trezentos e cinqüenta mil-réis; devia ter continuado, aumentando o jogo. Tivera palpite de jogar o máximo na repetição do 20, mas começaram a falar - "que o número estava mau, que a banca estava de sorte". Escarapelou-se, aborrecido. "Qual, quem joga não deve dar ouvidos a outros... Vão para ali peruar, com inveja de quem ganha, e é isso... Podia ter saído com uma fortuna." Assentando na cadeira, tomou um lápis, pôs-se a fazer cálculos, somando lucros fantásticos. Era a sua mania.

Se comprava bilhetes, imaginando tirar a sorte, distribuía a fortuna, não em sonho vago, mas escrevendo parcela a parcela, a empregar o dinheiro: tantos contos para um prédio, edificado a seu gosto, entre pomar e jardim, em arrabalde tranqüilo; tantos para móveis d'estilo, objetos d'arte, alfaias, livros. Uma parte para a aquisição de propriedades que lhe dariam segura renda; o resto em conta corrente, num banco.

Até o dia seguinte vivia regaladamente daquela ilusão, gozando a vida repousada e farta dos ricos, com amantes caras, um grupo de amigos para os saraus de literatura e arte, e a fortuna a multiplicar-se com a facilidade avassaladora com que as sementeiras crescem nos campos, alargando-lhe ainda mais a ventura. No dia seguinte, quando percorria a lista desanimadamente, procurava o final, já com o sonho desfeito, contentando-se com o mesmo dinheiro que lhe dava a esperança de poder, na loteria seguinte, alcançar a sorte desejada.

Com a roleta, porém, "eram mais seguras as probabilidades". Conhecia um rapaz que dissipava, a mãos rotas, como um milionário. Tinha as melhores amantes, vestia-as com fausto, cobria-as de jóias. Diziam que a sua casa, nas Laranjeiras, era como um palácio de lenda: bronzes raros, telas preciosas, tapetes mais altos que relvagens, móveis antigos, armas autênticas, carro na cocheira e cavalos de raça, com tratadores ingleses.

Gastava como um nababo, só à custa da roleta e do dado, porque os prêmios que os seus parelheiros levantavam mal cobriam as despesas com o trato, com o aderenço, com os jóqueis.

O seu ideal era viver como o Junqueira, o impassível Junqueira que, com um charuto na boca, balançando a perna, perdia dezenas de contos com a mesma serenidade, com a mesma superior indiferença com que estourava as bancas em dias felizes. Afinal - com quanto entrara? com vinte mil-réis, tendo perdido dez na espelunca do Cordeiro.

Não tornava àquele antro, onde se falava uma geringonça impenetrável e o ar era todo fumo e despejados bafos d'álcool. A gente era uma canalha: capoeiras, gatunos, até um Castro, por alcunha o Faísca, que era dos mais assíduos, sempre obsceno, e bravateador, mostrava navalhas célebres, entre elas, uma mais querida, de lâmina gasta, que rasgara ventres. Não lhe convinha aquilo.

Falar com o Junqueira era até chic, porque sempre o via em boas rodas, mas cumprimentar qualquer daqueles tipos do antro, era uma vergonha que o comprometia. Na outra casa eram todos homens limpos, rapazes colocados, de nome; eram relações que ficavam e serviam; depois a banca era outra. Decidia-se e havendo calculado uma diária modesta de quinhentos mil-réis - coisa fácil - levantou-se feliz, esticou os braços e pôs-se a cantarolar. Bateram à porta. "Entre!" disse, sem lembrar-se de que a fechara à chave. Empurraram.

— Está fechada, disse a velha.

Correu a abrir. Dona Júlia entrou com o café.

— Toma, enquanto está quente; - e deixou-se cair na cadeira, cansada. Ele bebia o café a pequenos sorvos.

— Mamãe já pagou à Felícia?

— Ainda não. O dinheiro que tenho mal chega para a casa. E ela bem precisa, coitada!

— Eu tenho algum, disse ele com superioridade.

— Pois sim. - E afirmou com enternecimento: Olha, meu filho. como essa não achamos outra: não é uma criada, é uma amiga. Quanto mais vou conhecendo o mundo mais me afeiçôo à pobre velha. Outra fosse ela e andaria por aí a resmungar, de trombas, mas não: é sempre a mesma e pra tudo.

— É uma boa velha, isso é, concordou.

— Eu é que sei, que vivo com ela.

— Pois se quer o dinheiro...

— Não te faz falta?

— Não, senhora.

Abriu a gaveta, contou trinta mil-réis e, com o pacotinho em que tinha guardado os cento e cinqüenta e a cautela do broche, entregou-os à mãe. Ficou um instante parado a contemplar o dinheiro que reservara, mas teve um movimento de bondade: tomou uma nota de cinqüenta e deu-a à velha.

— Isto é para a senhora.

Ela abriu muito os olhos, espantada.

— Onde arranjaste? Foi o Fábio?

— O Fábio...! - Riu escarninho. - Que idéia! Recebi no jornal, - explicou, numa inspiração instantânea.

— Mas tu podes precisar, meu filho.

— Fico com o bastante, descanse.

— Olha lá!

— Ora, mamãe, eu faço cerimônias com a senhora?

— Está bom, obrigada. E que Deus te proteja.

— Amém!