Turbilhão/XII

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XII

 

Toda a noite, noite immensa e morosa, rebolcando-se na cama a esmagar os travesseiros ou espichado, a olhar o tecto, á luz tremula da vela, fumando seguidos cigarros, Paulo pensou em Violante com sympathia. Afinal, que podia ella esperar?

Pobre, casando não passaria da vida insipida que levam todas as mulheres, na monotonia enfadonha dos afazeres domesticos, mal amanhada, envelhecendo, mortificando-se no trabalho insano, arrastando a fecundidade penosa, sempre rodeada de filhos, talvez brutalisada pelo marido, soffrendo privações entre as quatro paredes duma casa.

Assini, não — era livre, tinha todo o gozo, podia saciar-se á larga, sem preoccupar-se com a sociedade com a qual rompera abertamente.

Era uma revoltada. Tinha, para impor-se, a mocidade e a beleza - que importava o resto? A sociedade só despreza a miséria - as desonras que vexam são a fome, a nudez e as moléstias; o dinheiro tem sempre o seu prestigio, ninguém lhe pede a origem... e ela nadava em ouro.

Resolveu visitá-la na manhã seguinte para conhecer todos os pormenores daquele romance. E gozava, imaginando a vida solta da irmã, sempre em festas, deslumbrando com a sua formosura, disputada pelos argentários, amante de influências, podendo até protegê-lo, impô-lo à fortuna.

Sentia uma ponta de orgulho comparando-a às outras mulheres fanadas que a remiravam com despeitada inveja. "Vai longe!" murmurou num bocejo, estrincando os dedos.

Lembrou-se, porém, do dinheiro que guardara na gaveta. Saltou da cama, tomou-o e, espalhando-a na mesa, com volúpia de avaro, pôs-se a contá-lo separando as notas pelas respectivas valores. E imaginava compras: um farto fornecimento para a despensa, roupa, livros, o resgate das jóias.

A vida pareceu-lhe de facilidade suave. "Agora sim, a questão era ter um pequeno capital para começar..." E pensou em Ritinha.

A mulata havia de ceder porque, afinal, a vida de expedientes de Mamede não lhe garantia a tranqüilidade. Quando ela o visse com dinheiro não relutaria. Repôs os maços na gaveta, bem acamados, deu volta à chave, deitou-se, soprou a vela e, na escuridão silenciosa, ainda pensou na fortuna, em amores, no futuro que se anunciava propício.

Já as carroças rodavam pesadamente quando adormeceu ouvindo o rumor grave, soturno das ondas aos rebolões na praia.

Acordou tarde e logo, deixando o gozo macio, a preguiçosa moleza tépida da cama, pôs-se de pé, com pressa e dirigiu-se ao banheiro. Dona Júlia falava à Felícia aconselhando-a e, quando ele reapareceu, esfregando a cabeça, a reclamar a café, ela disse-lhe que a negra se havia despedido.

— Por quê? Deve-se-lhe alguma coisa?

— Só as dias que estão correndo. Mas não é por dinheiro: Felícia está com a cabeça virada, vê coisas... Andou toda a noite pela casa resmungando. Diz que é o filho. Desde que viemos para aqui é isto. Não pode ver o mar. Se vai à rua fica um tempo enorme, às vezes volta sem as compras, perde o dinheiro. Tenho pena, coitada! mas o melhor é deixá-la ir.

— E quem há de fazer o serviço? Ela que fique até eu arranjar outra. Ponho hoje um anúncio. Mas quem sabe se não é bebida, mamãe?

— Ela não bebe. Está assim por causa do filho. De mais a mais foi meter-se com o espiritismo, ficou perdida de todo.

— Ah! então... Pois hoje mesmo eu ponho um anúncio, descanse.

E caminhou para o quarto.

Quando saiu esteve um momento à porta, hesitando entre ir à casa da irmã e descer à cidade. Era muita cedo. Tomou o bonde resolvido a fazer o sortimento. Foi uma prodigalidade. Queria tudo em abundância e do melhor - conservas, doces finos, vinhos, licores, queijos. Feitas as compras exigiu que lhas mandassem imediatamente a casa. Depois encaminhou-se para o hotel, almoçou desatento, com o espírito muito longe, preocupado com a visita que ia fazer.

Depois de haver percorrido lentamente a Rua do Ouvidor, parando diante das vitrinas a olhar as jóias cintilantes, os bibelots graciosos, os manequins esbeltos, resolveu-se a tomar um tílburi e mandou tocar para Botafogo.

A casa, de aspecto nobre, com todas as janelas fechadas, ficava ao lado de um jardim sombrio, de sinuosos caminhos areados de saibro escuro. Duas alvas figuras de mármore destacavam-se na sombra das ramagens. Hesitou um momento, impressionado com o silêncio, receando encontrar o "homem".

Despediu o tílburi e ficou parado ao portão a olhar, tímido, indeciso. Não aparecia ninguém; no interior, um silêncio de abandono. Seria ali? decidiu-se, por fim, a apertar a botão da campainha. Uma criada loura, de avental, apareceu à varanda, debruçou-se olhando por entre a folhagem da ipoméia que formava uma verde e florida empanada. Vendo-o, desceu ligeiramente e os seus passos vinham crepitando no saibro lucilante. Ele lembrou-se da recomendação da irmã e perguntou:

— Mademoiselle Diana?

A criada mirou-o dos pés à cabeça, e murmurou em tom de receio:

— Está; mas ainda não desceu. Pode dar-me o seu nome?

— Paulo, ela sabe.

Imediatamente a criada abriu o portão e, sorrindo, afastou-se dando-lhe passagem. Ele seguiu-a à varanda, entrou numa saleta luxuosa, que um alto tapete forrava. Pesados reposteiros coavam a luz filtrando suave claridade confidencial.

Duas cegonhas de bronze flanqueavam a otomana de damasco amarelo, vivamente ensangüentado a flores de púrpura. Pelas paredes, floridas a ouro, sobre aveludado fundo carmesim, acumulavam-se retratos, grandes quadros pendiam mostrando paisagens tristes - campos de trigo esfumados pela crepúsculo e gados que recolhiam e uma gravura idílica em que havia uma redouça, entre flores, unindo um jovem casal amoroso no mesmo balouço. O silêncio era absoluto como se tudo dormisse naquela casa. A criada reapareceu em passos surdos, como uma sombra.

— Pode subir. A senhora espera-o lá em cima.

Guiou-o ao longo de um corredor forrado de esparto e mostrou-lhe a escada.

— Sobe! convidou Violante.

Paulo sentiu viva emoção ouvindo a voz da irmã e foi com o coração aos esbarros que galgou a escada iluminada par uma clarabóia de vidros policrômicos.

— Entra e espera um instante na sala.

Dirigiu-se para o suntuoso salão atapetado.

O lustre cintilava a um raio de sol. O mobiliário era rico, adaptado à volúpia - moles divãs orientais sabre pelegos que formavam macia alfombra, de cores quentes; grandes almofadões de seda com borlas, fundas poltronas. Os consolos altos, esguios, com espelhos finos, eram todos dourados e rebrilhavam.

Cortinas escuras temperavam a luz, quebrando a violência do sol que entrava por quatro janelas abertas sobre balcões. Na mesa do centro, incrustada de marfim, dentro duma linda jarra de porcelana, morriam rosas. Aroma tépido e voluptuoso impregnava o recinto. Os rumores da rua chegavam abafados, ensurdecidos, como se viessem de muito longe.

— Espera um instantinho. Estou arranjando o cabelo. Vou já.

— Não te incomodes.

E, de pé, os braços cruzados, pôs-se a examinar os quadros, as estatuetas das peanhas. Uma sandália cor-de-rosa jazia no meio do salão embarcada. Sobre um dos divãs uma saia de rendas amarrotada parecia uma grande e estranha flor, murchando em abandono.

— Como vais?

— Vai-se indo. Estás num palácio!

— É. A casa é boa. Grande demais.

— Moras só?

— Sozinha.

Abriu a porta e apareceu deslumbrante, num penteador de rendas que a envolvia como em frocos de espuma. Os cabelos soltos cobriam-lhe as costas até a cinta. Nos braços, que as largas mangas deixavam nus, cintilavam pulseiras.

— Não repares, - disse sorrindo, como vexada. - Apareço assim para não te fazer esperar. Saí do banho. Senta-te. - Sentou-se muito encolhida, cruzando as pernas com desembaraço e Paulo viu-lhe as sandálias de veludo, um pouco da perna bem feita, carnuda. - Como vai mamãe?

— Como sempre.

— E Felícia?

— Felícia... Felícia está maluca. Despediu-se hoje.

— Maluca?

— Meteu-se com o espiritismo e anda a ver coisas. Fala com o filho.

— Que filho? Ela tem filho?

— Tinha. Era marinheiro. Morreu na revolta.

— Mas doida mesmo?

— Varrida.

Houve um silêncio. Os dois olhavam-se embaraçados.

— E tu? perguntou por fim Violante.

Paulo deu d'ombros.

— Por aqui, lutando sempre. De repente: Por que não vais ver mamãe?

— Tenho vergonha. Ela fala em mim?

— Se fala em ti...!

— Coitada!

— E tu não estás arrependida, Violante?

— Eu? - acenou com a cabeça negativamente. - Arrependida, por quê? Esta vida tem as seus aborrecimentos, tem; mas a gente não é obrigada a aturar um homem de que não gosta. Serve? muito bem; não serve? adeusinho. Sempre é outra coisa. Não nasci para o casamento... - e fez um momo de enjôo.

— Afinal... com quem saíste?

— Com um moço. Não conheces. Podia ter casado com ele - era bonito, rico e adorava-me; não quis. Não imaginas - uma fúria de ciúme. Eu não tinha licença de abrir uma janela. Sofri horrores! Hoje vivo tranqüila, nada me falta e tenho o melhor que é minha liberdade. Vou aonde quero, faço a que me dá na cabeça. Os outros... - encolheu os ombros com desprezo esticando um beicinho. - Não me importo com o mundo. Sei que falam, que não me poupam: que sou isto e aquilo, mas se eu fosse pedir aos tais um pedaço de pão viravam-me as costas. Conheço essa gentinha... Oh! se conheço! Um dos que mais falaram de mim não me deixa com recados e bilhetinhos... o tal boticário que queria casar comigo. Deus me livre! São todos muito honestos, por trás da cortina vão fazendo das suas. Eu não os incomodo nem os envergonho - quando passo por eles finjo não os ver. Não nasci para mãe de família, essa coisa com que os chamados homens de bem enchem a boca. Cada qual para o que nasceu. Nem todas as mulheres têm vocação para freira.

— Lá isso...

— Eu podia fazer o que fazem muitas - casar e depois andar por aí arrastando no lodo o nome do meu marido. Preferi sacrificar-me sozinha - em vez de duas desonras já apenas a minha. Sou uma perdida, as outras são virtuosas senhoras. Que lhes saiba. A Lola, que é hoje madame não sei quê, levou toda a vida a ajuntar dinheiro para comprar virtude e consideração para a velhice. Até arranjou uma filhinha. Eu já a conheci casada, mas em Buenos Aires contaram-me toda a história. Se tiver tempo e paciência farei o mesmo. - Riu. - Queres um cálice de licor? cerveja?

— Não, nada.

— Pois é assim. Não estou arrependida. Tudo me tem corrido bem. Às vezes tenho saudade, não da vida que levava: de ti, de mamãe, mas procuro distrair-me, disfarço e as horas levam os pensamentos tristes. A vida é muita curta - quem mais vive é quem mais goza, não achas? Falam no futuro, no dia d'amanhã. Eu vejo as outras, coitadas! umas, viúvas, cheias de filhos; outras, sofrendo horrores com os maridos. O amante é um escravo, o marido é um senhor. É como dizia uma argentina que conheci: "Os homens são encantadores, o homem é insuportável." Ter de aturar um sujeito toda a vida é o mesmo que não ter senão um vestido que vai envelhecendo e ao qual é necessário a gente ir pondo e sobrepondo enfeites para esconder as manchas e os remendos. Não me serve.

— Ainda gostas muito de romances?

— Leio. E tu? A tua mania era o casamento. Já tens noiva?

— Deus me livre!

— Deus te livre?! - Fez um momo faceiro. - Pensas que não te conheço.

— Não, estás enganada. Namorei por troça, passatempo apenas, Casar! upa!

E gravemente, com a entono da responsabilidade:

— Preciso cuidar da velha. Ela não tem mais ninguém no mundo, bem sabes.

— É verdade... Eu, compreendes, não tenho coragem de oferecer-lhe a minha casa, nem ela havia de querer.

Paulo não contestou.

— Enfim, sempre posso fazer alguma coisa... A questão é saber se ela aceita.

— Por que não? Não és filha?

— Talvez tenha escrúpulos: dinheiro mal ganho.

— Qual! histórias.

— Mamãe!? Tu não a conheces.

Levantou-se e, contendo um bocejo, perguntou:

— Queres ver o meu quarto?

— Vamos.

Ela caminhou direito às portas, abriu-as de par em par e afastou-se dando passagem ao irmão que parecia embaraçado, tímido.

— Entra. Tens vergonha? - perguntou sorrindo. - É um quarto como outro qualquer.

O tapete, alto e fofo, abafava maciamente os passos. A cama estendia-se sob um baldaquino de cujo fundo, dum amarelo de ouro, irradiando em pregas, pendiam sanefas e pesadas dobras de um pano de seda púrpura. Os móveis lampejavam lustrosos, com altos espelhos que refletiam, afundavam o aposento. As paredes eram ramilhetadas de ouro.

Um perfume cálido errava na ar. Havia no silêncio um quê de sedução, um convite misterioso: era o ambiente lascivo que sugeria e vergava ao amor. Paulo não se atrevia a avançar - olhava tolhido, perturbado, sentindo o prestígio inelutável da mulher, a influência poderosa da carne como se ali não estivesse a irmã, mas uma mercenária que o fosse arrastando, vencido, para a amor lúbrico que todo aquele interior aconchegado e discreto insinuava.

Violante abriu o guarda-vestidos - evolou-se uma bafagem aromal em que havia o perfume alucinante da carne e ele viu a policromia das sedas que escorriam dos cabides em saias esguias, plumagens ondulantes, nuvens de rendas. Abriu um cofre, mostrou-lhe as jóias, umas em escrínios, outras soltas.

No psichê ainda rolavam anéis, grampos e numa concha de nácar rebrilhava um escaravelho cravejado de rubis e uma grande pérola piramidal alvejando na encarna dum broche.

Ele olhava, mas a atenção fugia-lhe para o corpo lânguido, flexuoso, cujas formas desenhavam-se sob as rendas do frouxo penteador. Recuou, sentia-se abalado, começava a fraquear diante da mulher. Respirou largamente caminhando para a sala, como a fugir:

— Sim, senhora. - Logo pensou no homem e, com os olhos incendiados, perguntou numa voz presa em que havia desejo: E ele?

— Ele!... É uma excelente criatura. Muito delicado, quer-me muito. Dá-me tudo quanto quero, faz-me todas as vontades. É como um pai. Tem ciúme, mas isto é mal de todos. Não há remédio senão aturar um pouco. Vivo aqui como vês. Pouco saio. É lendo, dormindo, conversando.

— E já apareceste na Rua da Ouvidor?

— Eu? Quantas vezes!

— Então?

— Então, quê?

— Não encontraste conhecidos?

Ela deu d'ombros.

— Já te disse que não os vejo. Quero que não me aborreçam.

Deixou-se cair em um dos divãs, em derreado abandono. Paulo contemplava-a. Parecia-lhe outra - não era a mesma Violante. Se perdera aquela graça leve e arisca da donzela, ganhara beleza mais empolgante, o olhar tornara-se mais quente, a boca mais sangüínea, as faces mais coradas: desabrochara soberba.

Se ela o fitava sentia-se acanhado, o sangue subia-lhe ao rosto incendiando-o.

— Senta-te.

— Não. Vim apenas ver-te.

— Já vais?

— Tenho que fazer.

— Onde estás trabalhando agora?

— Por aí. Topo a tudo.

— Deixaste a jornal?

— Ora! Dias depois da tua saída.

— Por quê?

— Histórias...

Estendeu-lhe a mão.

— Espera, homem. Que pressa! - Levantou-se e, a correr, com um crespo ondular de rendas, foi ao quarto e voltou, momentos depois, com um envelope. - Dá isto á mamãe e dize-lhe que não seja má, que me venha ver.

— E tu, por que não vais até lá?

— Quando?

— Quanto quiseres.

— Só à noite.

— Pois sim, à noite. Hoje, por exemplo. Por que não vais hoje?

Ela pensou um momento, mordicando o lábio. Por fim disse:

— Pois sim. Hoje à noite.

— Eu previno-a para que ela não sofra um choque. Porque ainda não sabe que te encontrei.

— Ah! não?

— Não.

— Coitada!

— Às sete horas...

— Às sete, não; é muito cedo. Às oito e meia.

— Pois sim. Mas não faltes.

— Não falto.

— Então até logo.

— Até logo.

Acompanhou-o à escada. Ainda de baixo ele insistiu:

— Olha lá!

— Não falto.

Na rua, Paulo respirou desafogadamente como se houvesse escapado a um perigo e, cheio ainda da volúpia que lhe inoculara aquele ambiente, deteve-se na calçada sem ânimo de partir, como se uma força misteriosa o prendesse, o atraísse, o arrastasse, solicitando-o para o amor.

Por que teria ela insistido em mostrar-lhe o quarto com tanto despudor? por simples vaidade ostentosa ou para martirizá-lo vingando-se, com uma tortura sensual, de tudo quando ele lhe fizera: das pirraças, das violências, das grosserias, de todas as afrontas? Não compreendia aquela visita ao aposento íntimo senão como uma premeditada provocação, ainda agravada com aquela roupagem leve que mal pousava sobre as carnes, deixando visíveis todas os contornos, realçando todos os relevos, numa excitante exposição, apenas velada pela discrição de um leve tecido, de umas rendas soltas.

Teve um vivo movimento de revolta; logo, porém, lembrando-se do envelope que recebera, abriu-o e desdobrou uma nota de duzentos mil-réis. Guardou-a de novo. Passava um bonde, tomou-o, saltando à porta de casa. Dona Júlia recebeu-o com recriminações carinhosas.

— Tu estás doido, meu filho!? Para que tudo isto? Nem eu tenho lugar para meter tanta coisa. Isto vai estragar-se. Imagina o dinheirão que está aqui.

A mesa estava abarrotada de latas, frascos, embrulhos, pacotes; grandes sacos de papel espocavam repletos. Pelo chão, junto à parede, havia caixotes, gordos sacos acaçapavam-se, empilhavam-se latas. Paulo, de mãos nos bolsos, sorria superiormente.

— Estamos livres dos caixeiros, pelo menos durante dois meses.

— Tu não podes ter dinheiro na mão. E como foi? Tiraste alguma sorte?

— Ganhei.

— Onde?

— Por aí.

— Olha lá, Paulo...

Ele voltou-se arrebatadamente:

— Olha lá o quê, mamãe? Quem sabe se a senhora pensa que roubei?

— Não diga isto... Mas não quero que te sacrifiques por minha causa.

— Qual sacrifício! Fiz um bom negócio. Quando eu digo que a senhora não tem confiança em mim. Eu trabalho, mamãe, - afirmou com empáfia. - Entramos nos dias prósperos. Quer ver? Prepare-se para um choque. - E, tirando o envelope da bolsa, entregou-o. - Veja.

— Que é?

— Veja, insistiu.

Ela abriu, tirou a nota e, tomando-a em dois dedos, ficou a mirá-la.

— Duzentos mil-réis.

— Sim, senhora. Mas dou-lhe um doce se adivinhar de que mãos vem esse dinheiro.

— Do compadre.

— Pois sim.

Pôs-se a passear pela sala fumando.

— Adivinhe.

— Eu posso lá adivinhar.

— De Violante.

Ela estremeceu e, boquiaberta, os olhos escancelados, pálida, não teve uma palavra, não se arredou de junto da mesa, amparando-se, sentindo as pernas vergarem. Oscilava arquejando como se lhe faltassem o solo, o ar, a luz. Paulo precipitou-se, amparou-a:

— Então, que é isto, mamãe? Sente-se.

Foram-se-lhe os olhos enchendo d'água. De repente, dobrando-se sobre a mesa, rompeu a chorar, soluçando.

— Ora aí está! Trago uma notícia alegre e a senhora recebe-a assim.

Felícia apareceu à porta da sala atarantada, com a trunfa desfeita, olhando e sorrindo idiotamente. Contemplou um momento o grupo e, com um muxoxo, tornou para a cozinha. Dona Júlia levantou a cabeça e, fitando os olhos no filho, que a afagava, perguntou:

— Onde está ela?

— Em Botafogo.

— Boa?

— Forte e bonita como nunca!

— Como conseguiste descobri-la?

— Encontrei-a ontem no teatro.

E referiu toda a cena da Recreio; depois a visita que fizera à casa Botafogo, descrevendo tudo com entusiasmo, muito parcial da irmã, louvando-a, defendendo-a. "Fez muito bem. É feliz." Dona Júlia ouvia sem dizer palavra, cabisbaixa, e as lágrimas caiam-lhe dos olhos em grossas bagas. Quando ele anunciou a visita prometida para a noite, a velha levantou a cabeça e cravou nele os olhos, muda e comovida, com espanto.

— Ela vem cá?

— Prometeu. Vem, com certeza; afirmou.

— Eu não devia recebê-la, - disse, ressentida. - Depois do que fez...

— Ora, mamãe.

— Eu é que sei o que tenho sofrido, as lágrimas amargas que tenho chorado. Outra não a recebia. - Levantou-se, ficou um momento parada, indecisa, o olhar perdido e lacrimoso, e repetiu por entre soluços: - Não devia recebê-la.

— Pois é contar com ela logo à noite; e fazer o que eu fiz, se não quer que ela nos deixe de visitar.

— Que é?

— Nada de recriminações. Agora é tarde, o mal está feito e não há remédio. Estive com ela. Conversamos, mas não lhe fiz a menor censura.

— Violante! - murmurou a velha, como se falasse ao coração. - Enfim...

— Eu volto à cidade, tenho ainda que fazer. Venho jantar. E tenha calma. Hoje a nossa casa deve enfeitar-se como a do velho da parábola no dia do regresso da filha pródiga. Até logo.

Abraçou-a e saiu. Ela ficou encostada à mesa, pensando, a chorar; lentamente, dirigiu-se para o quarto, acendeu a lamparina diante dos santos, ajoelhou-se e, de mãos postas, balbuciou as primeiras palavras de uma oração, mas numa explosão de lágrimas, abateu no soalho e ali ficou, soluçando, com palavras de recriminação e palavras de carinho para a filha ingrata que, afinal, voltava, que ela ia, enfim, rever e beijar.

Nunca um dia lhe pareceu tão longo como esse. As horas arrastavam-se; por mais que buscasse afazeres para distrair-se, volta e meia lá estava na sala a olhar o relógio. Arranjava a casa para receber a filha, trazia vasos de plantas para a sala, sacudia os tapetes, mudava a roupa das camas, num afã satisfeito.

Não podia contar com Felícia, que resmungava enfezada, repelindo visões, bradando furiosamente a seres imaginários, ora na cozinha, ora no quintal, ao sol. A pobre debatia-se lutando com as trevas que se lhe iam adensando no espírito. Por vezes, num momento lúcido, ficava imóvel, pensando; logo, porém, o delírio a retomava e, trabalhando maquinalmente, sempre a murmurar, a esconjurar, sacudia-se, esfregava os olhos irritada, aspergia os cantos, a mancheias d'água, sapateando frenética, grugrulhando em desespero crescente.

Atirava punhados de sal ao fogo e desvairada, excitada pela crepitação, bradava expulsando os espíritos, apanhava-os no ar, lançava-os pela porta, injuriando-os, soprando-os, como se fossem leves plumas e, d'olhos altos, acompanhava-os imaginariamente, esconjurando-os.

Dona Júlia começava a temê-la. Quando lhe ouvia os gritos, estrangulados como ganidos, afastava-se, ia para a sala da frente, receando alguma violência, mas a negra não se arredava da cozinha, onde rolava em crises furiosas, escabujando, lutando com as larvas que os seus olhos assombrados descobriam.

Quando Paulo entrou, ao cair da tarde, Dona Júlia insistiu na necessidade de despedir Felícia. Não era prudente tê-la em casa naquele estado. Estava ficando furiosa.

— Hoje não me lembrei do anúncio. Também, com o dia que tive... Amanhã.

— Tu compreendes... eu sozinha em casa com uma doida.

— Sim, tem razão. Fique tranqüila, amanhã arranjo uma criada.

Jantaram. Felícia servia carrancuda, resmungando. Ia até à porta, retrocedia olhando airadamente, murmurando, às vezes rindo.

— Vai, Felícia.

— Uê! Então vosmecê pensa? É assim mesmo. Eles derrubam tudo, derrubam, mas a minha casa é sagrada. Curvou-se, traçou uma cruz na soalho. - Eu não... aqui ninguém bole! Uê!

Lá ia, a dar de ombros, chuchando muxoxos. Rompia a cantar, sapateando diante da fogão. Era necessária chamá-la. Paulo repreendeu-a:

— Que é isto, Felícia? Tu estás doida!

— Doida! Vá falando, vá falando. Vosmecê nem sabe. Eu não... Meu filho é meu filho. Quem foi que me deu ele? Olhe... - mostrava o céu. - Está lá em cima, foi Nosso Senhor. Quem foi que tirou ele? - inclinava-se prestando atenção ao rumor das andas. - Vosmecê esta ouvindo? Não fala não, nhonhô, mar está aí perto, pertinho. O melhor é vosmecê ficar quieto.

À noite, a aflição de Dona Júlia aumentou. Estremecia ao mais leve rumor, o coração batia-lhe precipitado, sentia o sangue fugir-lhe. Quando Paulo bradou da sala: "Está aí Violante", ela quis precipitar-se, correr, mas faltaram-lhe as pernas; levou ambas as mãos ao peito contendo o coração que parecia querer rebentar e foi indo, arrastadamente, já com os olhos rasos de lágrimas.

A parta da rua abriu-se e ela viu aparecer a filha agasalhada em uma capa que lhe chegava aos pés, com um grande chapéu de plumas negras. Encostou-se ao umbral da porta da corredor, chorando, abalada, sem forças para seguir. Violante precipitou-se e, abraçando-a apertadamente, pôs-se a acariciá-la com palavras meigas, levando-a devagarinho para a sofá. Quando se sentaram ela ficou sucumbida, em atitude humilde, sem coragem de levantar as olhos para a filha que a amparava.

— Então, mamãe? Não quer olhar para mim?

Ela encarou-a, então, com as lágrimas correndo em fios e sorriu tristemente, contemplando-a com toda a ternura da sua imensa saudade. Achou-a linda, mais forte.

— Sou eu, Violante.

— Ah! sim... Violante... Olha para mim, vê como estou magra, cheia de cabelos brancos.

O pranto tomou-lhe, de novo, a voz.

— Tu não tens pena de mim?...

— Ora, mamãe, - interveio Paulo, - assim Violante fica com medo de voltar.

— Por quê? Que mal lhe estou eu fazendo?

— Vamos conversar.

— Foi uma maluquice, mamãe, - disse Violante, - mas não falemos nisso.

— E não estás arrependida?

Ela meneou com a cabeça negativamente, sorrindo e, estouvada, tomando as mãos da velha, pôs-se a afagá-las às palmadinhas:

— Vamos falar de coisas alegres. Eu não vim aqui recordar tristezas. O que passou, passou. A senhora como vai? Tem tido saudades de mim? diga...

— Como vou...! esperando a morte. Não queres tirar a capa?

— Não, não posso demorar-me.

— Onde vais?

Ela sorriu, titubeou:

— Tenho visitas, amigas. Descanse; muito breve venha passar um dia inteiro com a senhora.

— Se eu ainda for viva.

— Ora, mamãe.

— Ora, hem? Não vês como estou inchada? Olha bem para mim.

— Não acho. A senhora não deixa as cismas.

— Cismas... Antes fossem. Mas que foi que te deu na cabeça, minha filha?

Deu d'ombros, fez um momo e dando à voz um tom infantil:

— Vamos falar de outra coisa. Assim eu fico triste... - E logo, fugindo ao assunto: E Felícia? É verdade que está maluca?

— Perdida duma vez. Não diz coisa com coisa, sempre resmungando, praguejando. Daqui para a Hospício. Ainda hoje, não imaginas o que fez.

— Por quê?

— Por causa do filho. Os filhos... vocês! acentuou.

— Eu não sabia que ela tinha filho.

— Tinha, era marinheiro; morreu na revolta.

— Coitada!

— E tu? como vives?

— Vivendo: ora alegre, ora triste. Mas nada me falta, graças a Deus.

— E não ficas vexada?

Ela tornou-se séria, sacudindo as borlas da capa:

— Vexada, por quê? É uma vida como as outras. Vai, talvez, mais ligeira, mas é mais agradável. Tristezas, todos as têm. Eu podia ter casado, não quis.

— Por quê?

— Porque sim. - impôs a mão ao peito e afirmou: - Não tenho coração.

— Isso sei eu.

Paulo, que se conservara calado, fumando, interveio.

— Se ela é feliz, que mais?

— Pois sim, mas eu penso em Deus.

— Deus... Bem se importa ele comigo.

Levantou-se.

Começava a sentir a melancolia daquele lar taciturno; aquele ambiente de tranqüilidade pesava-lhe, não era a seu elemento, sentia-se como sufocada. Fez menção de despedir-se, mas a mãe convidou-a a ver a casa. Cedeu submissa e seguiu-a olhando indiferente, sem curiosidade, com um sorriso artificial no rosto. Diante da quarto que lhe fora destinado houve maior demora: a velha levantou a vela, uma luz mais larga projetou-se.

— Este era o teu.

— Bem bom. A casa é pequena, mas muito cômoda. Muito melhor que a outra. E Felícia?

A negra preocupava-a. Queria ver a desgraça, sentir a miséria, contemplar a agonia.

— Deve estar na cozinha.

Paulo deu luz ao gás e avançou chamando a rapariga, aos berros. Não houve resposta.

— Ela, ás vezes, sai para a quintal, fica lá fora sentada, resmungando.

Paulo procurava. Uma senhora ergueu-se junto ao fogão e ficou imóvel. Violante adiantou-se e a negra esperou-a hostil.

— Ó Felícia! Como vai você? Então que é isso? Não me conhece mais?

A negra olhou-a muito, sem pestanejar; de repente, com uma rabanada, saiu da cozinha e sumiu-se no quintal, aos resmungos.

— Coitada! - lamentou Dona Júlia; - é melhor deixá-la.

Na sala de jantar Paulo insistiu com a irmã para que aceitasse alguma coisa; ela recusou: "Jantara tarde. Não tinha vontade." A velha procurava pretextos para ficar a sós com ela, Paulo, porém, rondava-as fazendo as honras da casa, muito solícito e franco. A mãe atreveu-se a pedir, carinhosa:

— Deixa-me ficar um instantinho com Violante, meu filha.

— Pois não.

Retirou-se contrariado. Foi para a sala. As duas olharam-se, caladas. Dona Júlia tomou uma das mãos da filha, a tremer; pôs-se a beijá-la, sôfrega. Súbito, como se lhe faltasse a equilíbrio, oscilou e teria caído se Violante não a amparasse. Cerraram-se-lhe os olhos, todo o corpo amoleceu, inerte, tombando sobre uma cadeira. Violante gritou; Paulo acudiu a correr:

— Que é?

— Mamãe... Olha como está. Não vá ser do coração, meu Deus.

— Eu já contava com isto.

Foi precipitadamente ao quarto, trouxe um vidro d'água sedativa. A velha não fazia o menor movimento; a respiração era estertorosa e cerrada.

— Nem há aqui uma pessoa para chamar um médico. Espera, eu mando o cocheiro. Aqui mesmo na Rua da Lapa há um.

Correu à sala, deu uma ordem. O carro partiu. Tornou para junto da irmão, atônita. Por fim, como se se habituasse, sentou-se calma.

— É o coração, - cochichou Paulo.

Violante fez um gesto de desânimo. O relógio bateu vagarosamente no silêncio.

— Nove e meia! - exclamou em voz surda, alarmada. - E eu que não preveni Lucília. O homem é capaz de pensar que ando por aí...

— Dize-lhe o que houve.

— E pensas que ele acredita? Pois sim. - Inclinou-se, pôs-se a chamar a mãe, não para aliviá-la, mas para libertar-se. - Não tens um pouco de éter?

— Não.

— A que horas vou eu sair daqui, meu Deus! E o médico? Ainda se ele chegasse...

— Se queres, vai. Eu fico com ela.

— Não! Isso não. Não quero que ela se zangue.

— Zangar-se, por quê?

— Se eu fosse livre, mas tu compreendes. - Ao rumor do carro Violante correu à sala, abriu a janela. Estava um homem parado à porta. - É o doutor?

— Sim, minha senhora.

Era um homem de idade, alto, magro, feição austera. Entrou vagarosamente e perguntou, em voz pausada, pela doente.

— É minha mãe, doutor. Está lá dentro, teve uma síncope. Nem tivemos tempo de a levar para a cama. Foi de repente. Entre, doutor.

Falava com grande volubilidade, voltando-se para o médico, que a seguia, sempre vagaroso. Justamente chegavam à sala de jantar quando Paulo sussurrava palavras meigas à mãe que parecia haver recobrado os sentidos. Efetivamente abria os olhos, balbuciava, movia a cabeça como atordoada. Violante precipitou-se:

— Então, mamãe? Está melhor? Olhe o doutor. É melhor deitá-la, a senhor não acha?

Lançou um rápido olhar ao relógio e franziu a fronte contrariada. O médico fez um ligeiro exame, receitou um calmante, recomendou repouso. Paulo segredou:

— Ela é cardíaca, doutor. Não há perigo?

— Sim, é preciso cuidado. Se houver alguma coisa mande-me um recado.

Despediu-se. Dona Júlia sentia-se alquebrada, faltavam-lhe as pernas, todo o corpo doía-lhe. Ampararam-na até a cama. Deitando-se, olhou para Violante enternecidamente, dizendo:

— Nem conversamos, minha filha. Isto está por pouco. Quando vocês mal pensarem estou morta. Também, que faz um trambolho como eu no mundo?

— Deixe-se disso, mamãe.

Violante ia e vinha, arranjava os travesseiros, estendia, alisava a colcha, aparentando cuidados que não encobriam a sua impaciência; animava-a, prometia ser muito assídua.

— Estarei aqui sempre, há de ver. Quando estiver triste venho para cá passar o dia ou a senhora vai lá para casa fazer-me companhia. Havemos de viver como dantes.

Sentou-se estabanadamente na cama, abraçou a velha que se conservava de olhos baixos, em atitude de humildade e de resignação.

De repente ergueu-se e, assustada, procurando o relógio entre as rendas soltas, exclamou:

— Dez e meia! Nossa Senhora!...

— Vai, minha filha. Deus te abençoe.

— A senhora não precisa de mim, felizmente. Até amanhã.

Beijou-a nas faces, beijou-lhe a mão. Saindo à sala, ouviu um estrupido surdo e uma voz soturna que resmoneava.

— Que é isso, Paulo?

— Que há de ser? É Felícia com as maluquices.

— Que agouro! Credo!

Ainda falou para o quarto: Até amanhã, mamãe.

— Vai com Deus.

— Adeus, Paulo. A que horas vou eu chegar a casa.

Seguiu ligeiramente pela corredor, com um rascante esfrolar de sedas, deixando um rasto de perfume. Paulo saiu à rua acompanhando-a ao coupé.

— Até amanhã.

— Até amanhã.