Turbilhão/XIX

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Ao jantar Paulo insistiu com a mulher para que ficasse. Sentaram-se à mesa. O corpo ficou solitário na sala, entre as quatro velas, com Cristo à cabeceira.

Mamede fez pilhéria a propósito de um guisado de miolos: "Não, o que tinha na cabeça bastava, não queria mais..." e afastou, com repugnância, para a borda do prato, a porção que lhe haviam servido. E foi pretexto para que todos falassem de comidas, expondo, cada qual, os seus gostos.

Paulo apenas defendeu a cozinha francesa, mais saborosa e mais delicada. E reprovou a mania do empanturramento que caracteriza o brasileiro: um nunca acabar de pratos, tudo a esfriar. Perde-se até a vontade de comer.

— História, nhozinho. A gente vê logo tudo, come do que gosta. Eu não tenho paciência para estar esperando e quando vem a comida é um nadinha, no fundo do prato; é preciso a gente ter boa vista para enxergar um bife. Não há como a nossa mesa, deixe falar. Isso de francês pode ser muito bonito, mas ninguém come com os olhos. A moda é para a roupa, agora para o que diz com a barriga prefiro os costumes da nossa terra.

— Pois eu não.

— Ah! vosmecê é moço elegante.

A vizinha pensava como Mamede. "Nada de luxos. Comer é comer. Isso de pasteizinhos, saladinhas, não era com ela."

Escurecia. Mamede acendeu o gás. Só, então, lembraram-se da finada. Paulo propôs que o café fosse tomado na sala para que o corpo não ficasse sozinho. Ritinha, a pretexto de medo, pediu à vizinha que a acompanhasse.

— Não sou medrosa, mas hoje não que tenho - estou só vendo coisas, só ouvindo estalos. Parece que vou encontrar a maluca lá perto do fogão resmungando.

— Pois eu fico com a senhora.

— É favor. - E foram as duas para a cozinha.

Violante chegou às nove horas da noite, de carro. Ao entrar, vendo o cadáver hirto, de negro, as mãos enclavinhadas ao peito entre as quatro velas, ficou atarantada, a olhar para um e para outro. De repente, com um grito, arremessou-se para o corpo e derrubada sobre o peito, já rígido, da defunta, os braços molemente atirados, gania estorcegando-se, aos surdos arquejos trágicos, chamando a mãe em altas vozes. Um homem apareceu à porta, pedindo licença, muito cortês. Todo de flanela clara, botinas brancas, gravata frouxa com as pontas soltas, esvoaçando: deteve-se cerimonioso.

Já as duas mulheres, com muita meiguice, procuravam arredar Violante, cujos gritos longos, percucientes, vibravam. Levaram-na em braços para o quarto do irmão, deitaram-na, afrouxaram-lhe as roupas. Ela debatia-se, esperneava, escabujava rolando, a rilhar os dentes com um ofego d'agonia.

O homem, perplexo, torcia nervosamente os bigodes; sentindo, porém, a porta abrir-se com o vento logo a fechou, receoso de que o vissem da rua e, mais calmo, dirigindo-se a Paulo que o rondava, suspirando e limpando lágrimas, perguntou com interesse:

— Como foi?

O rapaz, com a voz sacolejada, descreveu a morte, toda a agonia da infeliz, lamentando a grande perda, a sua solidão no mundo. De repente, porém, a um grito mais agudo da irmã, notando que o homem afligia-se, franqueou-lhe o quarto:

— Entre, sem cerimônia. Minha pobre mãe!... - e precedeu-o, afastou-se escancarando a porta.

O homem agradeceu e, chegando-se ao leito, inclinou-se sobre Violante, chamando-a. As duas mulheres arredaram-se e Mamede, muito solícito, impondose, perguntou - "Se queriam alguma coisa da botica. Ia num pulo." O homem tranqüilizou-o:

— Isto passa, e sentou-se à beira da cama, afagando Violante, enxugando-lhe o rosto.

Houve um momento de calma, ela pareceu haver adormecido. De repente, porém, rompeu a chorar e todos desabafaram: "Agora sim. Era disso que ela precisava." E, discretamente, retiraram-se, deixando-a só com o irmão e o amante.

Quando ela recobrou os sentidos, quis ver a mãe, o homem opôs-se:

— Tem tempo. Estás muito nervosa. Descansa.

Ela, então, indagou como fora; e ao irmão:

— Por que não me mandaste dizer que ela estava tão mal? Coitada de mamãe! A que horas foi? E o enterro?

O amante consolou-a:

— Não te preocupes, há de arranjar-se tudo à tua vontade.

Paulo esmoía desculpas, muito humilde.

Só muito tarde, providencialmente, Mamede aparecera. Não tinha uma pessoa para mandar - estavam os dois sós, acompanhando-a - ele e aquela moça; a vizinha chegara depois. Demais, fora tudo tão rápido. Ainda na véspera ela conversara até tarde, muito calma; até pedira café. Uma coisa inexplicável!... e passeava arrepelando-se. Vendo, porém, que o homem sentava-se à beira da cama, oferecendo o ombro para que Violante repousasse a cabeça, retirou-se. Chegando-se, então, ao cadáver, descobriu-lhe o rosto, inclinou-se com o cotovelo fincado na tábua, a fronte nas mãos, e ficou numa atitude desolada, imóvel, como pesando para uma alegoria fúnebre.

Quando Violante reapareceu todos se puseram de pé, olhando-a. Ela caminhou vagarosamente e, diante da mesa, com as lágrimas nos olhos, ficou esquecida, em contemplativa mudez. Paulo fitou-a e disse surdamente:

— Estamos sem mãe, Violante.

Mas o homem passou por ele, tocou-lhe de leve no braço.

— Dê-me o atestado, eu encarrego-me de tudo. O senhor, no estado em que está... Basta que vá à pretoria, é perto. - E, referindo-se à Violante: É melhor distraí-la. Vamos levá-la lá para dentro.

Ele concordou:

— Como queira; - e foi oferecer-lhe o braço.

Ritinha lembrou o café, era necessário para passarem a noite.

As dez horas o homem retirou-se. Violante acompanhou-o à porta, segredou muito tempo sobre o enterro, coroas, um vestido para mudar. E ele, afagando-a, desculpou-se:

— Bem sabes que não posso ficar contigo...

— Já fazes muito, meu velho. Vai, e não te esqueças. O vestido preto, sabes?

— Sei. Até amanhã. Cedo estou aqui. E descansa.

— Até amanhã.

— Até amanhã. - E, ao entrar no carro: Linda noite, hem?

— É verdade.

O homem fizera sensação. Quando, depois do café, de novo reuniram-se para a vigília, Violante tomou-se o alvo de todas as atenções.

Sentada no sofá, muito quieta, mal respondendo às palavras do irmão, que referia pormenores tristes, de quando em quando suspirava. As duas mulheres, muito juntas, cochichavam.

Mamede passeava ao longo da sala, parando de instante a instante junto à mesa para espevitar uma das velas ou arranjar uma dobra do vestido da finada. A rua caíra em silêncio, o próprio mar parecia dormir.

Na pequena sala, nublada de fumo, tresandando a cera, o calor sufocava. Mamede ousou propor abrir uma janela.

— Não é melhor?

Paulo consultou a irmã.

— Que achas?

Ela encolheu os ombros:

— Se quiserem...

Logo o mulato escancarou as janelas. Uma lufada de ar entrou curvando as compridas chamas das velas e enfiou pelo corredor levando papéis esparsos.

Dentro uma porta bateu com estrondo.