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Turbilhão/XVII

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Habituada a viver entre valentes, homens atrevidos que não recuavam diante de perigo algum, achava desprezível o seu novo amante.

Percebera-lhe a fraqueza, o medo, e aborreceu-a. Lá fora estava o homem destemido, o capoeira apontado por todos como um herói. As suas façanhas eram célebres, os próprios companheiros respeitavam-no e, pensando nele, sentiu-se atraída. Deu d'ombros e, levantando-se, abriu resolutamente a janela e debruçou-se. Mamede avistou-a; sorriu, um sorriso mau, de ameaça. Ela fez-lhe sinal, chamando-o.

O mulato atravessou a rua, carrancudo, gingando e parou diante da janela:

— Que é que você quer?

Ela abriu a porta.

— Entra. Vem ver. Você pensa que estou de pagode, não é? Vem ver.

O mulato entrou.

— Lá não te disseram nada?

— A mim? Que haviam de dizer? resmungou.

— Pois eu pedi para te dizerem.

Sentou-se. Mamede, de pé, encostado à mesa, balançava a perna.

— Eu estava mesmo pensando em sair para procurar um cômodo, porque não podia mais com a amolação de seu Lisboa, que não me deixava a porta, quando seu Paulo me apareceu chorando, pedindo para eu vir para cá, fazer companhia à velha que estava nas últimas. Eu disse que estava devendo a casa, ele emprestou-me dinheiro, ofereceu-me um cômodo para guardar os meus trastes. Você não aparecia, eu vim. E estou aqui.

— Fazendo quarto? - troçou o mulato com ironia.

— Você não acredita; pois vem ver...

— Quero lá saber de histórias... Não pense você que eu vim aqui pelo faro. Mulheres, minha filha, isso é coisa que não falta. O que me arrancou do meu sossego foi o desaforo.

— Mas se eu estou dizendo a verdade, Mamede. Vem comigo.

Tomou-o pela manga do casaco, o mulato repeliu-a com um safanão.

— Sai! Você não vai com cachorro não sei por quê. Fica, eu vou-me embora, Eu só queria olhar essa cara. O outro não perde por esperar, só se eu não sou filho de minha mãe. Não pense você que eu tenho rabicho, o que eu tenho é vergonha, não engulo afronta. Vocês são todas umas vagabundas.

— Se você começa com má-criação eu vou-me embora.

— Pois vai! Quem te pega? Vai e diz ao menino que tome tento. Porcaria!

— Mas vem ver, rapaz. Deixa de estar dizendo desaforo à toa. Vem ver. Se for mentira minha...

Encaminhou-se para o corredor, ele resolveu-se a segui-la. Quando Paulo o viu aparecer no quarto ficou lívido e chegou-se tanto à cama, tão estabanadamente que o corpo da moribunda estremeceu. O mulato ficou espantado, a olhar, e ouvindo o estertor, meneou com a cabeça, compadecido. Paulo rompeu a chorar, nervoso, entre a angústia piedosa e o medo covarde.

— Tem paciência, nhozinho; consolou Mamede penalizado.

O rapaz desoprimiu-se e transbordou:

— Não imaginas como a coitada tem sofrido, Mamede. E eu só... Nem sei que seria de mim se não fosse Ritinha, tão boa. Ela já te disse, não? Pois foi, meu velho. Felícia fugiu, deixou-me só. Não tenho uma pessoa para ir avisar Violante.

Depois dum silêncio, ele falou lentamente, cedendo:

— Eu vou, nhozinho. Onde é? - Ele deu-lhe o endereço, foi buscar dinheiro. Fazia maior a aflição, deixando as lágrimas correrem livres, com soluços altos, muito humilhado de dor. Defendiase entrincheirado no desastre, opunha à fúria do mulato o corpo da agonizante e vencia, triunfava à custa da sofrimento. - Então vai e volta, vem ficar conosco. Não tenho cabeça para nada. Não demores... Nem sei se Violante ainda a encontrará com vida. Olha, passa primeiro pelo médico, aqui na Rua da Lapa; dize-lhe que ela está assim.

O mulato acenava com a cabeça. Saiu, Ritinha acompanhou-o e na sala, tomando-lhe a frente, sentindo-se justificada, exclamou:

— Então? Acreditas agora?

— Dá cá um fósforo.

Ela foi ao quarto, trouxe uma caixa de fósforos.

— É aí que você está dormindo? - perguntou ele chegando à porta e olhando o leito ainda desmanchado.

— Dormindo... É aqui que eu descanso; ninguém dorme nesta casa.

Acendeu vagarosamente o cigarro e tomando a chapéu:

— Bom, vou ver a menina.

A mulata prendeu-o, com um grande desejo dele, contorcendo-se de volúpia, mole, a entregar-se. Ele afastou-a:

— Deixa disso, criatura. Você está maluca?

Abriu a porta e saiu. Com as pernas bambas, nervosa, irritada, vibrando, ela deixou-se cair em uma cadeira e, quando sentiu os passos de Paulo, nem forças teve para levantar a cabeça derreada no espaldar. O rapaz fez um sinal interrogativo.

— Foi-se embora, - disse ela molemente, com os olhos amortecidos.

— E então?

Ela sorriu. Os seus lábios úmidos reluziam, o peito arfava em ansioso desejo.

Estendeu languidamente os braços, deixando-se escorregar na cadeira. Paulo olhava-a sem compreender, atônito, d'olhos muito abertos. Ela sussurrou um apelo, retorcendo-se como um vime ao fogo, a remorder os lábios, cerrando os olhos lacrimosos. Súbito, como o pássaro atraído pela serpe, ele caiu-lhe nos braços.