Ubirajara: lenda tupy/I

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I

O CAÇADOR



Pela margem do grande rio caminha Jaguarê, o joven caçador.

O arco pende-lhe ao hombro, esquecido e inutil. As flechas dormem no coldre da niraçaba.

Ora veados saltam das moitas de ubaia e vem retouçar na gramma, zombando do caçador.

Jaguarê não vê o timido campeiro, seus olhos buscam uni inimigo capaz de resistir-lhe ao braço robusto.

O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador tambem despreza o jaguar, que já cansou de vencer.

Elle chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fogem espavoridos quando de longe o presentem.

Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrivel, para vencel-o em combate de morte e ganhar nome de guerra.

Jaguarê chegou á idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela gloria do guerreiro.

Para ser acclamado guerreiro por sua nação é preciso que o joven caçador conquiste esse titulo por uma grande façanha.

Por isso deixou a taba dos seus e a presença de Jandyra, a virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa.

Mas o sol tres vezes guiou o passo rapido do caçador atravez das campinas e tres vezes, como agora, deitou-se além nas montanhas do Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.

A sombra vae descendo da serra pelo valle e a tristeza cáe da fronte sobre a face de Jaguarê.

O joven caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.

Nenhum guerreiro brandiu jamais essa arma terrivel, que sua mão primeiro fabricou.

Lá estaca o joven caçador no meio da campina. Volvendo ao céo o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.

O bramido rolou pela amplidão da matta e foi morrer longe nas cavernas da montanha.

Respondeu o ronco da sucury na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao desafio do caçador.

Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além, no grosso tronco da emburana.

A copa frondosa ramalhou, como as pal- mas do coqueiro ao sôpro do vento e o tronco gemeu até á raiz.

O caçador repousa á sombra de sua lança.



Salta uma corça da matta e veloz atra- vessa a campina.

Mais veloz a persegue gentil caçadora com a setta embebida no arco flexível.

Ergue-se Jaguarê.

Seu olhar ardente voou, soffrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.

Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.

Pela facha, côr de ouro, tecida das pennas do tucano, Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos tocantins, senhora do grande rio, cujas margens elle pisava.

A liga vermelha que cingia a perna esbelta da estrangeira dizia que nenhum guerreiro jamais possuirá a virgem formosa.

A corça veiu cahir aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da joven caçadora que a seguia de perto.

A virgem reconheceu o cocar da nação que na ultima lua chegára aos campos do Taary e da qual os pagés tinham dado noticia.

— Guerreiro araguaya, pois vejo pela penna vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente, si pisas os campos dos tocantins como hospede, bem vindo sejas; mas si vens como inimigo, foge, para que tua mãi não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.

— Virgem dos tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Elle pisa os campos de teus pais, como senhor. Tu és sua prisioneira. Não que vencer a corça timida seja gloria para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que elle espera.

— Si o veado te der a sua ligeireza, joven guerreiro, ella não te servirá senão para vêr o rasto de meu pé antes que o vento o apague.

A linda caçadora desferiu a corrida pela immensa campina. Apóz ella se arremessou Jaguarê, que muitas vezes vencera o tapyr.

Mas a virgem dos tocantins corria como a nandú no deserto e o caçador conheceu que seu braço nunca poderia alcançal-a.

Travou do arco e o brandiu. A setta obedeceu-lhe, pregando no tronco do assahy a facha que fluctuava ao sopro do vento.

— A filha dos tocantins tem no pé as azas do beija-flôr ; mas a setta de Jaguarê vôa como o gavião. Não te assustes, virgem das florestas; tua formosura venceu o impeto de meu braço e apagou a colera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.

— Eu sou Aracy, a estrella do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem em sua cabana para merecer que elle o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por esposa. Vem commigo, guerreiro araguaya, excede os outros no trabalho e na constancia e tu romperás a liga de Aracy na próxima lua do amor.

— Não, filha do sol ; Jaguaré não deixou a taba de seus pais, onde Jandyra lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo da virgem. Elle vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna á taba dos tocantins e dize aos cem guerreiros captivos de teu amor que Jaguaré, o mais destemido dos caçadores araguayas, os desafia ao combate.

— Aracy vae, pois assim o queres. Si fôres vencido, ella guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais bello caça- dor. Si fores vencedor, será uma alegria para a virgem do sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.

A virgem disse e desappareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo ligeiro da formosa caçadora, como o gua- chimim que rasteja a zabelê.

Quando ella desappareceu, o joven caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.



Do outro lado da campina assoma um guerreiro.

Tem na cabeça o kanitar das plumas de tocano e no punho do tacape uma franja das mesmas pennas.

E' um guerreiro tocantim. De longe avistou Jaguarê e reconheceu o pennacho vermelho dos araguayas.

As duas nações não estão em guerra, mas sem quebra de fé pôde um guerreiro, cansado do longo repouso, offerecer a outro guerreiro combate leal.

Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma setta, mensageira do desafio.

Respondeu o guerreiro disparando tambem uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.

Então os dois campeões caminharam um para o outro com passo grave e pararam frente a frente.

— Eu sou Jaguarê, filho de Camacan, chefe da valente nação dos araguayas, que vem de longe em busca da terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama do caçador; elle quer um nome de guerra, que diga ás nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Si tua nação te acclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; sinão, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape virgem de Jaguarê.

— O caraiba guiou teu passo ao encontro de Pojucan, o matador de gente, guerreiro chefe da terrível nação tocantim, que enche de terror as outras nações. Ha tres luas, desde que fugiram espavoridos os barbaros Tapuyas, que Pojucan não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucan se compadece de tua mocidade e consente em combater comtigo. Terás a gloria de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.

— Jaguarê agradece a Tupan que te fez urp grande guerreiro e o chefe mais feroz da grande nação tocantim, Pojucan, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaya e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos teus e o terror das outras nações.

Os dois campeões recuaram passo a passo até que se acharam a um tiro de arco.

Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram um contra o outro, brandindo o tacape.



Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuosas no remoinho da Itaoca.

Dez vezes as clavas bateram e dez vezes volveram para bater de novo.

Os animaes que passavam na floresta fugiram espavoridos, como si a borrasca ribombasse no céo.

Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.

— O ubiratan é forte; mas ha outro ubiratan que lhe resiste. Como o braço de Pojucan é que não ha outro braço. Já viste, joven caçador, o veado nas garras da giboia? Assim vais morrer.

— Si tu fosses a cascavel que sómente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria seu caminho. Mas tu és a giboia feroz e Jaguarê gosta de estrangular a giboia. Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.

Pojucan estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cingiu os lombos do guerreiro.

Cada um dos campeões poz na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da matta.

Ambos, porém, ficaram immoveis. Eram dois jatobás que nasceram juntos e entrelaçaram os galhos, ligando-se no mesmo tronco.

Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem agital-os; e elles permanecem quedos pelo volver dos tempos.

Um pagé que passou na orla da matta viu os lutadores e esconjurou-os, pensando que eram almas de dois guerreiros presos no abraço da morte.

Já a sombra se desdobrava pelo valle fóra e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.

Por fim affrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu adversario. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.

Conheceram que podiam lutar corpo a corpo a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.

— Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação tocantim. Mas Pojucan não consente que haja na terra quem resista a seu braço. É preciso que tu morras, Jaguarê, para que elle seja o primeiro dos guerreiros que o sol allumia. — Pojucan, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber si tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, elle quer que tua derrota seja a sua primeira façanha.

Disse e arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas caminhou outra vez para Pojucan.

— Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue ella vae beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.



Pojucan repelliu a lança que o joven caçador lhe apresentára.

— Jamais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversario desarmado; nem Pojucan precisa da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucan basta para te prostrar.

— O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão á corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejal-a.

O chefe tocantim cruzou os braços.

— Toma a lança, Pojucan, si não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará desarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaya, o grande Camacan.

O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê, que travou-lhe dos pulsos, e outra vez os dois campeões ficaram immoveis.

A noite veiu achal-os na mesma posição.

Três vezes cessaram a luta e de novo a travaram. Mas, afinal, se convenceram de que nenhum derrubaria o outro.

Então Pojucan disse:

— Guerreiro araguaya, é preciso acabar o combate. A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até á margem do rio. Aquelle que primeiro chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.

Assim fizeram os dois campeões. Chegados á margem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo impeto da desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucan.



O guerreiro chefe enrista desdenhosamente a lança e caminha para Jaguarê.

Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para immolar a victima.

— Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já si quizesse elle te houvera ferido com tua própria mão.

— Abandona a gloria do guerreiro, que não é para ti, nhengahiba. Pojucan te concederá a vida e te levará captivo á taba dos tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.

— Captivo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguayas para ajudar as velhas a varrer a oca.

Arremessou-se Pojucan avante e desfechou o golpe; mas a lança rodara e foi o chefe tocantim que recebeu no peito a ponta farpada.

Quando o corpo robusto de Pojucan tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê dum salto calcou a mão direita sobre o hombro esquerdo do vencido, e, brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triumpho:

— Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencível que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucan, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes delle.

— Si meu valor, que serviu para augmentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucan soffra mais um instante a vergonha de sua derrota.

— Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás á taba dos araguayas para narrar meu valor. A fama de Jaguarê precisa de um prisioneiro como o grande Pojucan na festa da victoria.

— Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo de que si tua arma traiçoeira feriu-me o peito, o supplicio não vencerá a constancia do varão tocantim, que sabe affrontar as iras de Tupan e desprezar a vingança dos araguyas.