Ubirajara: lenda tupy/V

Wikisource, a biblioteca livre

V

SERVO DO AMOR

Jurandyr, conduzido pela virgem, caminhou ao encontro de Itaquê e disse:

— Grande chefe dos tocantins, Jurandyr não veiu á tua cabana para receber a hospitalidade; veiu para servir ao pai de Aracy, a formosa virgem, a quem escolheu para esposa. Permitte que elle a mereça por sua constancia no trabalho, e que a dispute aos outros guerreiros pela força de seu braço.

Itaquê respondeu:

— Aracy é filha de minha velhice. A velhice é a idade da prudencia e da sabedoria. O guerreiro que conquistar uma esposa como Aracy terá a gloria de gerar seu valor no seio da virtude. Itaquê não póde desejar para seu hospede maior alegria.

Desde esse momento, Jurandyr não foi mais estrangeiro na taba dos tocantins. Pertencia á oca de Itaquê, e devia, como servo do amor, trabalhar para o pai de sua noiva.

Os guerreiros, captivos da belleza de Aracy, conheceram que tinham de combater um adversário formidavel; mas seu amor cresceu com o receio de perder a filha de Itaquê.

Jurandyr tomou suas armas e desceu ao rio. Era a hora em que o Jacaré boia em cima das aguas como o tronco morto; e a jaçanan se balança no seio do nenuphar.

O manaty erguia a tromba, para pastar a relva na margem do rio. Ouvindo o rumor das folhas, mergulhou na corrente, mas já levava o arpéo do pescador, cravado no lombo.

Jurandyr não esperou que o peixe ferido desenrolasse toda a linha. Puxou-o para terra; e levou-o ainda vivo á cabana de Itaquê, onde tres guerreiros custaram a deital-o no giráo.

As mulheres cortaram as postas de carne e os guerreiros cavaram a terra para fazer as grelhas do biariby.

Jurandyr partiu de novo e entrou na floresta. Ao longe reboavam os gritos dos caçadores, que perseguiam a féra.

Pelo assobio o guerreiro conheceu que era um tapyr. O animal zombara dos caçadores e vinha rompendo a matta como a torrente do Xingú.

As arvores que seu peito encontrava caíam lascadas.

Jurandyr estendeu o braço. O velho tapyr, agarrado pelo pé, ficou suspenso na carreira, como o passarinho preso no laço.

Nunca até aquelle momento encontrára força maior que a sua.

Uma vez descera á lagôa para beber. A sucury, que espreitava a caça, mordeu-o na tromba. Elle fugia, esticando a serpente; e a serpente, encolhendo-se, o arrastava até á beira d'agua.

Assim tornou uma, duas, três vezes. Mas o tigre urrou de fome. O velho tapyr disparou pela floresta; e a sacury com a cau da presa á raiz da arvore arrebentou pelo meio.

O velho tapyr rompeu a serpente como se rompe uma corda de piassaba; mas não pôde abalar o braço de Jurandyr, mais firme do que o tronco do guaribú.

O estrangeiro tornou á cabana com a caça. Nenhum dos guerreiros da taba, nem mesmo o velho Itaquê, pôde aguentar com as duas mãos a fera bravia.

Então Jurandyr obrigou o animal a agachar-se aos pés de Aracy e disse:

— O braço de Jurandyr fará cair assim a teus pés o guerreiro que ouse disputar ao seu amor a tua formosura, estrella do dia.



Nunca a abundância reinára na cabana sempre farta do chefe dos tocantins, como depois que a ella chegára o estrangeiro.

Jurandyr era o maior caçador das florestas, e o primeiro pescador dos rios. Seu olhar seguro penetrava na espessura das brenhas, como na profundeza das aguas.

Nada escapava á destreza de sua mão. Onde ella não chegava, iam as unhas de suas flechas certeiras, que rasgavam o seio da victima, como as garras do jaguar.

O estrangeiro soubera de Aracy, qual era a caça que Itaquê preferia e qual o peixe que elle achava mais saboroso. Desde então nunca o velho chefe sentiu a falta do manjar predilecto.

Si não era a lua propria do peixe desejado, Jurandyr sabia onde podia encontral-o. Não tornava á cabana sem a provisão necessária para a refeição do dia.

Depois da caça e da pesca, Jurandyr trabalhava nas roças de Itaquê. Fazia no taboleiro os matumbos, para que Jacamim enterrasse as estacas da maniva e semeasse o feijão, o milho e o fumo.

Entre os filhos das florestas, a plantação devia ser feita pela mão da mulher, que era a mãi de muitos filhos; porque ella transmittia á terra sua fecundidade.

A semente que a mão da virgem depositava no seio da terra dava flôr: mas da flôr não saía fructo. E si era um guerreiro que plantava, a aypim endurecia como o pau de arco.

Nas vasantes do rio, Jurandyr capinava a terra coberta de relva e outras plantas e só deixava crescer o arroz, o inhame e as bananeiras.

Quando o estrangeiro partia pela manhã, Aracy o acompanhava de longe pela floresta. Sua vontade a levava apoz elle.

O costume da taba não consentia que a virgem desejada pelos servos de seu amor preferisse um guerreiro, antes de saber si elle a obteria por esposa.

A filha de Itaquê não queria pertencer a outro guerreiro. Mas lembrava-se que a virgem deve merecer o esposo por sua paciencia; assim como o guerreiro merece a esposa por sua constancia e fortaleza.

Então voltava ao terreiro: emquanto os outros guerreiros espreitavam sua vontade, ella tecia as franjas para a rêde do casamento.

Sua mão subtil urdia com o alvo fio do crauatá a fina penugem escarlate. Os noivos cuidavam que era a do peito do tocano; mas ella sabia que era do peito da arára e que tinha as côres de seu guerreiro.

Quando o sol chegava ao cimo dos montes, ouvia-se o canto de Jurandyr que voltava da caça. A virgem seguida pelos guerreiros ia ao encontro do estrangeiro.

Então desciam ao rio. Era a hora do banho. Aracy cortava as ondas mais linda que a garça côr de rosa; e os guerreiros a seguiam de perto, como um bando de galleirões.

Mas nenhum, nem mesmo Jurandyr, que nadava como um boto, podia alcançar a formosa virgem. Ella parecia a flor do mururê que se desprendeu da haste e passa levada pela corrente.

Uma vez a filha das aguas soltou um grito e desappareceu no seio das ondas. Jacamim cuidou que o Jacaré tinha arrebatado a filha de seu seio. Os guerreiros mergulharam para salval-a; mas não a encontraram.

Todos a julgavam perdida, quando appareceu Jurandyr que trazia nos braços o corpo da virgem formosa. Pisando em terra, ella correu para a cabana, onde foi esconder sua alegria.

Desde então era no banho que Aracy recebia o abraço de Jurandyr, sem que os outros guerreiros suspeitassem da preferencia dada ao estrangeiro. No seio das ondas ninguem a adivinhava a não ser o ouvido subtil de Jurandyr, a quem ella chamava com o doce murmúrio do irerê.

Encontravam-se no fundo do rio, emquanto durava a respiração. Depois desprendiam-se do abraço e surgiam longe um do outro.



Á tarde, voltando da caça, Jurandyr viu na floresta um rasto, que elle conhecia.

Chegado á cabana, entregou a Jacamim o veado que matara e sahiu para visitar os arredores. Nada encontrou de suspeito; o rasto, que o inquietava, não chegára até ali.

No outro dia, ao romper da alvorada, logo depois do banho, os guerreiros partiram para a caça e para a pesca. Só ficaram na cabana Jacamim e as mulheres de Itaquê.

Aracy tomou o arco e entrou na floresta. A imagem do guerreiro amado fugia naquelle instante de seus olhos; elles buscaram entre as folhas o signal de seus passos e não o descobriram. Lembrou-se a virgem que Jurandyr gostava da polpa do guaranan adoçada com o mel da abelha; e colheu os fructos encarnados que pendiam dos ramos da trepadeira.

Nesse momento a arára cantou no olho do périjá. Aracy precisava de suas plumas vermelhas, para o cocar que ella tecia em segredo.

Era o cocar do amor, com que desejava ornar a cabeça de seu guerreiro senhor, no dia em que elle a conquistasse por esposa.

A virgem armou o arco e seguiu a arára rompendo a folhagem. Quando ia disparar a setta, ouviu ao lado um rumor desusado.

Jurandyr estava perto delia e segurava o braço de uma mulher, que ainda tinha na mão a macana afiada.

Aracy conheceu a virgem araguaya, pela facha de algodão entretecida de pennas, que lhe apertava a curva da perna; e adivinhou que era Jandyra a noiva do guerreiro.

— Filha de Magé, tua mão quiz matar a virgem que Jurandyr escolheu para esposa. Tu vais morrer.

— Desde que Ubirajara abandonou Jandyra, ella começou a morrer, como a baunilha que o vento arranca da arvore. Acaba de matal-a; para que sua alma te acompanhe de dia na sombra das florestas e te fale de noite na voz dos sonhos.

— A virgem araguaya ameaçou a vida de Aracy; ella lhe pertence; disse a filha de Itaquê.

Jurandyr cortou na floresta uma comprida rama de imbê e atou as mãos de Jandyra.

— Jandyra é tua escrava. Não lhe dês a liberdade. Ella tem a astúcia da serpente e seu veneno.

— Eu era a cobra d'agua, amiga do guerreiro, que habita sua cabana e a guarda contra o inimigo. Quem foi que me fez cascavel venenosa, que traz nos labios o sorriso da morte?

Jurandyr não respondeu. Nesse momento elle teve saudade de sua cabana e lembrou-se do tempo em que, joven caçador, seguia na floresta a formosa virgem araguaya.



As duas virgens ficaram sós no claro da floresta.

Já o rumor dos passos de Jurandyr se apagára ao longe e ainda tinham ambas os olhos captivos uma da outra.

Jandyra pensou que ella não podia dar a Ubirajara a formosura da filha de Itaquê. Aracy receiou que o amor do guerreiro se voltasse outra vez para a linda, virgem araguaya.

A filha de Magé preparou-se para morrer á mão de sua rival, mas ella preferia a morte ao supplicio de contemplar sua belleza.

Aracy, a estrella do dia, cantou:

— O amor do guerreiro é a alegria da virgem; quando elle foge, a virgem fica triste como a várzea que perdeu sua relva.

«Por isso Jandyra está triste: o amor do guerreiro fugiu della; e a deixou solitaria como a nambú, a quem o companheiro abandonou.

«Mas o amor do guerreiro é como o orvalho da noite. Quando o sol queima a varzea, elle desce do céo para cobril-a de verdura e de flôres.

«Aracy está alegre; porque o amor do guerreiro voltou-se para ella; e Jurandyr vai fazel-a companheira de sua gloria e mãi de seus filhos.

«Quando a esposa de Jurandyr não tiver mais belleza para dar a seu guerreiro, ella consentirá que Jandyra durma em sua rêde.

«E o orvalho da noite descerá do céo para cobrir a varzea de verdura e de flôres. E Jandyra achará outra vez seu sorriso de mel. »

Assim cantou Aracy, a estrella do dia; e a virgem araguaya respondeu:

— A arvore que morreu não soffre quando o fogo a queima. Jandyra prefere a morte á vergonha de ser tua serva e á tristeza de ver a cada instante a formosura da estrangeira que roubou seu amor.

«Aracy, a estrella do dia, é mais bella do que Jandyra, mas não sabe amar o guerreiro, que a escolheu para mãi de seus filhos.

«Nunca Jandyra offereceria sua rêde de

esposa a outra mulher; e aquella que recebesse o amor de seu guerreiro morreria por sua mão.

«Ella amaria seu esposo tanto que sua graça nunca se retirasse della; pois saberia morrer quando não tivesse mais belleza para dar.

«A nação araguaya nunca levanta a taba do valle onde acampou, sinão quando a terra já não póde dar-lhe mais fructos.

«Assim é o guerreiro. Elle não retira seu amor da esposa que habita, sinão quando ella já não sabe alegrar sua alma. »

Tornou a virgem tocantim:

— A cajazeira depois que dá seu fructo perde a folha; o guerreiro busca a sombra de outra arvore para repousar.

«Mas vem a lua das aguas e a cajazeira outra vez se cobre de folhas; sua sombra é doce ao guerreiro.

«A esposa é como a cajazeira. Quando o guerreiro não acha alegria em seus braços, ella soffre que busque outra sombra e espera que lhe volte a flor para chamal-o de novo ao seio.

«Aracy ama seu guerreiro, como Jacamim ama Itaquê. A cabana do grande chefe dos tocantins está cheia de servas; mas seu amor nunca abandonou a esposa.

«As servas deram a Itaquê muitos filhos; mas os filhos da velhice, foi só Jacamim quem os deu ao grande chefe; porque o primeiro amor do guerreiro não morre nunca.

«Elle é como a grama que nunca mais deixa a terra onde nasceu: pódem arrancal-a que brota sempre.

«Aracy quer apagar a tristeza da tua alma e beber o teu sorriso de mel, para que o esposo ache mais doces seus lábios, quando os provar.

«Tu serás irmã de Aracy e lhe darás um filho de Jurandyr, tão valente, como os que seu amor ha de gerar no seio da esposa.

Jandyra afastou os olhos da virgem dos tocantins, para desviar della sua ira.

«Tua palavra dóe como o espinho da jussara, que tem o côco mais doce que o mel.

«As flechas do teu arco não matam mais do que os sorrisos que o amor do guerreiro derrama em teu rosto, estrella do dia.

«Ubirajara deixou-me por ti; mas foi a Jandyra que elle primeiro escolheu para esposa, quando ainda era joven caçador.

«Nos campos alegres, onde vão os guerreiros quando morrem, elle me chamará; e o guanumby virá buscar a minha alma no seio da flôr do manacá para leval-a a seu amor.

«Mata-me ou deixa que eu morra para não ver mais tua belleza e não ouvir o canto de tua alegria.

Aracy caminhou para Jandyfa e desatou-lhe os pulsos.

— O amor do guerreiro não pertence á mulher que seus olhos primeiro viram; mas áquella que elle escolheu.

«Apanha teu arco; e morra aquella que não souber defender seu amor e merecer o esposo.

Aracy disse, e tirou da uiraçaba uma setta. Jandyra ficou immovel, com os pulsos cruzados, como si ainda estivessem presos.

— A vontade de Ubirajara atou os braços de Jandyra; ella rejeita a liberdade dada por ti. Aracy póde ser preferida; porém, não será mais generosa do que a filha de Magé.