Um Grande Egoísta
O meu amigo Heráclides, de ordinário benevolente, ia ontem azedo, no bonde. Observava exemplos de aspereza e grosseria de maneiras, aos quais via um sinal meteórico de barbarização, uma prova da decadência do senso de humanidade, que outrora a religião alumiava ainda nos mais incultos.
Heráclides apontou-me, sucessivamente, um passageiro que deixara de ceder lugar a uma senhora, apesar dos olhos compridos que ela deitava para o seu lado; um menor que se desarticulava no banco, como uma letra gótica, e soltava grossas baforadas de fumo na cara dos vizinhos; um cidadão bem trajado que disse dois desaforos ferinos ao condutor porque este se atrapalhara numa questão de troco, e um homem gordo, escarrapachado como uma foca, as perninhas roliças largamente jogadas para os lados, a direita a premir uma pobre moça, a esquerda, a bater no joelho de um velho magro, que fazia horríveis esforços por ocupar apenas a metade do espaço a que tinha direito e que lhe era necessário.
- "Veja, Trancoso, veja: todo esse pessoal tem, no fundo da alma, um desprezo absoluto pelo bicho homem, uma indisposição latente e injuriosa contra o gênero humano em massa."
- "Heráclides, estas pequenas coisas não têm a importância que você lhes quer dar."
- "Não têm importância? Então você acha que nada significa, nada, aquilo que aflora à periferia das personalidades, normalmente, ordinariamente, como o efeito imediato e espontâneo de uma fermentação? Então, se essa gente que ai vai tivesse outro fundo, esse fundo estaria a borbulhar cá fora dessa maneira? Deite dois dedos de açúcar puro num copo, encha o copo de água; que é que vem à superfície? gases sulfúricos? fragmentos microscópicos de potassa? traços de ácido prússico? bavas de sal de azedas?"
Curvei a cabeça, como quem cedia por ceder, para não discutir. Mas, no fundo, cedia completamente. Entretanto, não convém encorajar nos outros essas inclinações à clarividência. Nada tão inútil nem tão deletério como enxergar demais.
Heráclides calou-se, com os olhos perdidos no filme que se desenrolava por fora do bonde. Depois de uns minutos de silêncio, disse-me:
- " Quero-lhe fazer um convite. Você não gostaria de entrar para o Clube dos Egoístas?" - E antes que eu pedisse explicação: "O Clube dos Egoístas, um grupo que fundamos, eu o Gabriel, o Tomasinho, o Tinoco, ali no fundo do bar Kauffman. Reunimo-nos todas as noites para conversar, ou para não conversar, apenas para beber o nosso chope. Só se exigem duas condições: cada um paga a sua despesa, e deve ser um indivíduo sem espécie alguma de generosidade."
- "Que extravagância? Então pode entrar toda a gente."
"Está enganado, redondissimamente enganado. Pois não vê que este mundo anda cheio de indivíduos que se sacrificam pelo próximo? pelo bem da Pátria? prosperidade da lavoura? pela educação nacional? Pelo futuro da indústria petrolífera ? pela religião? pela família? pela humanidade? Não vê como pululam, como se embatem, como fervem as manifestações de caridade, as obras pias, os organismos de previdência e auxílio mútuo, as campanhas contra a doença, a ignorância e o vício? Não percebe como há uma infinidade de pessoas feramente devotadas a todas as nobres causas?
Pois, bem. Nós não nos preocupamos com essas causas: só nos preocupamos conosco mesmos. Só. Absolutamente só. Então, sucede que a nossa prosa, lá no bar, à noite, é deliciosa.
Cada um de nós é um poço de desencanto. Mas esse desencanto é um encanto. Tocamos com o dedo todas as misérias da hipocrisia e da mistificação. Intensificamos danadamente, com a nossa vida interior, a acuidade nevrálgica da nossa visão dos homens e dos acontecimentos.
Despojamo-nos de tudo que é vestimenta de idéias feitas, de preconceitos recebidos, de concepções correntes, de inclinações bem vistas. Somos homens diante de homens; homens, só homens, simplesmente, tristemente, heroicamente homens."
- "Mas que é que tem isso com o caso de que vínhamos tratando?"
- "Tem tudo. Tudo. Essa gente toda que você aí vê é gente que se desumaniza. É gente que não sabe ser egoísta. São anjos. Toda ela se move por puros ideais, por santas idéias, por altos princípios, por desígnios heróicos: batem-se, agitam-se, odeiam-se, caluniam-se, esgadanham-se por amor à família, por amor à pátria, por amor à ordem, por amor ao direito, por amor à cultura, por amor às letras, por amor à civilização e por amor ao próximo.
Por isso mesmo, nós mesmos os egoístas. Metidos conosco: nem filantropos, nem patriotas, nem heróis da família, nem paladinos de coisa alguma. Homens. Apenas homens. Lucidamente, miseravelmente e deliciosamente homens - livres e naturais como os peixes do fundo do mar.
Eu creio que a humanidade, hoje, não tinha nada melhor para fazer do que praticar e santificar o egoísmo - Você quer entrar para a tropa?"
- "Quem sabe! Depende."
Heráclides sorria, como a dizer: "Este ainda não está preparado", e de novo mergulhou no silêncio, fumando profundamente um cigarro de palha. E depois, meio assim como se falasse consigo mesmo:
- "O curioso é que este nosso egoísmo, pelo que vejo, acaba mal."
- "Por que?"
- "Porque tende, naturalmente, muito naturalmente, a transformar-se na coisa mais séria neste mundo: em religião.
As almas descascadas ficam todas tão semelhantes! À atitude que elas assumem diante da infinita miséria da condição humana é tão inevitavelmente uma só, de raiz! Uma sede única de verdade e sinceridade se apodera das gargantas. E um sentimento entranhando de fraternidade acaba brotando por si mesmo, como o grelo das batatas.
Nós, insensivelmente, já nos vamos querendo tanto bem uns aos outros que precisamos de fazer tremendos esforços para não resvalar na sinistra comédia mundana da amizade e de galantaria!
Porque nós, lá, não pretendemos ser senão irmãos."