Um Soneto

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Saí, hoje, de casa maquinando um soneto. Não foi culpa minha, mas obra do acaso. Lendo um jornal, depara-se-me, perdido no entrecho de uma notícia ordinária, em que se narrava a prisão de uma negrinha gatuna, este retalho de frase: "Toda a ilusão da triste Gabriela..." - Magia do número! Não foi sem razão, ó sombra venerável de Pitágoras! que a pressentiste por tudo nas esferas como nas almas. Repeti duas, três, dez vezes esse pedaço de frase vulgar, que é um verso inteiro e excitante. Gabriela alvejou-se-me e transfigurou-se-me logo na remota imagem de uma linda pessoa que de repente se vira nua de toda ilusão, nua como lady Godiva montada num asno, em meio da praça. Comecei a compor... não, começou a compor-se em mim um soneto:

Já não tens ilusão, ó Gabriela!
Nega-ta o amor, essa comédia triste.
Nega-ta a vida. E em tudo quanto existe,
O espinho do real se te revela.

Subi para o bonde a escandir mentalmente esses decassílabos, que para ser sincero comigo mesmo, não me pareceram maravilhosos. Mas alentava-me a esperança de que pudessem ir melhorando do meio para o fim do soneto. - O que me apepinava um bocado era que as rimas aproveitáveis não se deixavam pegar como frangos de pés amarrados. A memória, afeita a servir-me os torresmos do vocabulário trivial, só me deparava coisas como fivela, moela, espinhela, chiste, alpiste, que não se coadunavam à pura nobreza da inspiração. Encolhi-me, cerrei as pálpebras e atirei-me à caça de boas rimas, exercício muito útil, para refrescar as idéias e especialmente indicado como passatempo higiênico e divertido para homens atarefados, nas horas vagas.

Ia engolfado nesse labor - Cellini do verso! - quando senti que uns dedos me bicavam no ombro. Voltei-me, era o meu amigo Fabiano Alves, prático de farmácia meu vizinho. Bom homem, mas confiado, e ainda com a particularidade esquisita de se achar sempre numa temperatura espiritual completamente diversa da minha.

- "Está calculando?" indagou.

Tive ganas de lhe perguntar que conta lhe fazia que eu estivesse calculando ou voando muito acima do lodaçal do mundo, onde patejam os boticários sem alma.

- "Vem tão concentrado, mexendo com os lábios."

- "Cá umas coisas."

Fabiano entrou imediatamente a explicar que era tapadíssimo em questões de cálculo. Decididamente, não dava para essa especialidade. De uma feita, propuseram-lhe um problema, no clube de Periquitos, sua terra natal: "Um pássaro faz sete voltas em redor de uma torre de cantaria em quarenta segundos; quantas torres serão precisas para que sete pássaros façam uma volta..." Mais ou menos isso. Coisa à-toa, simples aplicação da regra de três; podendo-se também resolver rapidamente por análise. Pois levou mais de meia hora para dar com a solução! Uma vergonha.

- "Ainda assim, você é um bicho, Fabiano."

- "Não; em Matemática, serei bicho, mas de má qualidade: um burrego. De todas as ciências, a que dá com o meu feitio é esta" (e batia com a larga e magra mão sobre a capa de um livro de espiritismo) "é esta, a filosofia."

E Fabiano falou copiosamente sobre a doutrina espírita, "a mais consoladora de todas", e em particular sobre a moral, "sem discussão possível, a mais perfeita."

- "Fabiano" (lhe disse eu, apenas por dizer alguma coisa), "você conhece a moral de Sócrates?

Ele sorriu:

- "Esse, justamente, freqüenta o meu círculo. Um espírito evoluído. Adiantado!"

E dizendo "adiantado", Fabiano esticou os beiços para um assobio, que deixou subentendido. Mas eu, intrigado, questionei:

- "Como é isso, ó Fabiano? Então Sócrates freqüenta..."

Ele sorriu com bonomia, explicando:

- "Manifesta-se, compreende? Está desencarnado há muitos anos, desde um desastre que houve aqui na Central. Saiu com as pernas esmigalhadas. Nesse mesmo dia visitou uns nossos irmãos, no Pará; por sinal que fez o pobre do aparelho gritar com dores nas pernas!"

Fabiano discorria, discorria. A certeza da verdade dava-lhe um ar de beatitude. "Ele já parecia respirar o eterno, planava além de todas as coisas perecedouras, que vão da molécula às estrelas. Este prático de farmácia, que acabava de largar o almofariz para ir comprar uma porção de calomelanos à drogaria, achava-se absolutamente integrado nos planos perpétuos da vida e do movimento universal. E o curioso é que se consolava com isto.

Ia sorrindo, no bonde, como sorriria um arcanjo na sua biga de chamas, através do infinito, assistindo ao florir e ao despertar das constelações pelos abismos sem fundo. Ou como uma criança contemplando um queimar de rodinhas e traques.

Com isto, deixei de fazer o meu soneto. Quando pretendi reinvocar a inspiração, ela havia batido as asas. Um acaso ma trouxera, um outro ma levou.

Assim acontece com tantas coisas belas e boas da alma! Nascem e morrem por aí na sombra e na bruma da vida larvada. Nascem por acaso, por acaso morrem. E nós caminhamos sobre as flores mortas dos nossos jardins interiores, como um cordão de porcos-do-mato sobre uma camada de pétalas, na época da inumerável florescência dos manacás. Mas entre a preta Gabriela e o boticário Fabiano, minha alma teve um momento de ventura inocente, embalada no berço dos ritmos e dos timbres. E, se não chegou a perpetrar nada, tanto melhor.

O melhor da poesia e de tudo quanto se lhe parece é a elaboração, o estado de graça, a embriaguez esporeante, a doce liberdade interior em que vive quem a elabora ou rumina. Talvez que o mais alto poeta seja um simples ruminante mudo de formas, O mais, vaidade e pretexto. Bendita a Gabriela, e bendito o Fabiano.